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20 anos no 25 de Abril 

Jorge Miguel Alberto de Miranda

Jorge Miguel Alberto de Miranda nasceu a 28 de maio de 1953 na Rua Azedo Gneco, em Lisboa, no bairro de Campo de Ourique. Frequentou o Liceu Pedro Nunes e depois a Faculdade de Ciências de Lisboa. Depois de um período marcado pela sua atividade no movimento associativo, licenciou-se em Física em 1981 e obteve o Doutoramento em 1990. Dedicou-se à investigação em Geofísica, com diversos trabalhos na área da Junção Tripla dos Açores, da Geofísica Marinha e dos Riscos Naturais. Integrou a coordenação de redes de excelência europeias na área do mar e o painel de Ciências do Sistema Terrestre do European Research Council. Dirigiu o Instituto Português do Mar e da Atmosfera por mais de uma década e diversas organizações internacionais de Ciências da Terra. É agora professor catedrático jubilado e vice-presidente da classe de Ciências da Academia de Ciências de Lisboa. 


Uma sala apinhada de gente num edifício amarelo encostado ao Jardim Botânico de Lisboa. Música de intervenção para um mar de estudantes ao fim do dia. Uma pequena janela no cimo da parede que na altura não parecia ter sentido. A ideia da diferença e da possibilidade de resistência. A sensação de que se estava a ser observado e poderia ser-se seguido no caminho para casa. Pouco tempo tinha passado das eleições de 1969. Era o primeiro contacto com a Faculdade de Ciências ainda no secundário. O mundo da Escola Politécnica, onde os elétricos amarelos chiando sobre os carris, deixam para trás a Pastelaria Alsaciana, a Escolar Editora e a Confeitaria Cister, repletos de estudantes, e mergulham ruidosamente na baixa. 

Em todo o lado as notícias e os sinais da guerra em África. Os folhetos colados nas paredes “O soldado português é tão bom como os melhores”. As despedidas na Rocha do Conde de Óbidos enquanto os soldados subiam lentamente o portaló do paquete Infante Dom Henrique. As notícias desencontradas sobre a Guiné e Moçambique e a necessidade de se ter contenção nas opiniões em público. O peso desproporcionado da igreja e a pressão social na rua. A necessidade da normalidade e da manutenção das hierarquias em todas as ocasiões, apesar da abertura ao mundo do universo do Liceu Pedro Nunes. 

A primavera política anunciada por Marcelo Caetano e o contacto crescente com a Europa que era atravessada por uma onda de modernidade em todos os domínios criou provavelmente a ideia de que a mudança era possível. Não muito longe, para lá dos Pirenéus, a vida era diferente: mais dinâmica, com mais cor, mais viva, mais livre. 

Os estudantes mais interessados por política juntavam-se no movimento associativo. As sucessivas direções combinam habilmente o interesse pelas ciências com a intervenção social, utilizando todos os descontentamentos como combustível de contestação. Contraditoriamente, algumas oportunidades criadas vieram do movimento também impulsionado por José Veiga Simão para o desenvolvimento da capacidade científica do país e das dificuldades da sua materialização. Apesar das diferenças ideológicas mal compreendidas e nunca formuladas em público, a coordenação do movimento associativo era assegurada pela RIA, Reunião Interassociações, onde as diferenças e os antagonismos políticos já se manifestavam de forma mais visível.  

Os quatro anos que separam 1970 de 1974 correm em tensão sempre crescente, entre a liberdade relativa do mundo académico e os sinais de agravamento da situação nas então “províncias ultramarinas”. A pequena janela que encimava a sala de refeições do edifício, que sabia agora ser a Associação de Estudantes, era afinal a “sonora”, que emitia para todos quer o álbum Abraxas dos Santana quer as canções do José Afonso. Ser contestatário não era essencialmente diferente de ser moderno. São hoje completamente irrelevantes as estratégias dos grupos mais politizados para influenciar estudantes e docentes, mas o resultado alcançado foi de uma grande cumplicidade, com tons variados de comprometimento, mas onde o desejo de mudança se estendeu à quase totalidade da faculdade. 

A radicalização social que se assiste neste período permeou a universidade, obrigando muitos a assumir uma posição face ao regime. Após o encerramento da Associação de Estudantes da Ciências, é o assassínio de Ribeiro Santos em “económicas” por um agente da polícia política, que irá marcar um ponto de viragem no movimento associativo de Lisboa. Sucedem-se as manifestações de rua, que começam repentinamente e se desfazem de forma organizada. Os elétricos que percorriam Lisboa são agora utilizados para a paralisia do tráfego, com o corte do cabo e da ligação à catenária. As manifestações repentinas recebem muitas vezes o apoio explicito de populares, sobretudo nos bairros mais pobres da capital.  

A politização crescente traz consigo a leitura compulsiva de autores marxistas com nível variável de radicalização. Com a mudança que se estava a operar na União Soviética desde o princípio da década de sessenta, olhava-se para a China e a Albânia como exemplos de sociedades do futuro e mesmo os que estavam longe das direções políticas dos pequenos grupos à esquerda do Partido Comunista, trocavam entre si livros de filósofos de segunda linha ou romances apaixonados sobre a revolução. Será difícil encontrar-se um título mais sugestivo do que “Assim foi Temperado o Aço” de Nikolai Ostrovski. 

A Universidade está em guerra com o governo, as aulas são interrompidas, cartazes são afixados nas paredes com a ajuda das muito eficientes pistolas de agrafos, os policopiadores e os equipamentos de impressão em offset rodam continuamente durante a noite, para produzir folhetos que se distribuem na rua. O movimento de protesto prolonga-se ao longo de muito tempo por todas as escolas, com relevo para Ciências e o Técnico, mas vai sendo cada vez mais difícil à medida que os estudantes precisam de retomar os seus cursos. As reuniões de estudantes de Lisboa realizam-se em Medicina, para usar o Hospital de Santa Maria como refúgio sempre que ocorria uma carga policial.  

As intrusões policiais e para-policiais na universidade aumentam bem como as prisões. Alguns dirigentes do movimento têm de passar os controlos policiais no portão da Avenida das Palmeiras da Faculdade de Ciências, por vezes escondidos em carros de professores que se não identificavam com o regime. Alguns vão para a clandestinidade para evitar a prisão, outros são presos, interrogados e torturados. Para evitar o recrutamento para as forças armadas, compulsivo para os estudantes alvo de sucessivas suspensões desenhadas para impedir a realização de exames e assim obrigar ao chumbo, são muitos os que emigram clandestinamente e procuram refazer as suas vidas, sempre com uma ligação forte a Portugal e juntando-se a organizações que procuravam derrubar o regime. 

A subsistência da atividade associativa neste período tem de ser assegurada pelas publicações destinadas ao ensino. Muitas vezes com a colaboração de professores que arriscam muito. Folha a folha produzem-se textos de apoio, vulgo “sebentas”, gravando-os com máquinas de escrever de qualidade variável, em folhas de “stencil”, finas películas de cera que permitem a reprodução rápida em policopiador. Com a Associação de Ciências encerrada recorre-se aos colegas de “económicas” ou de “agronomia” onde ainda existe atividade associativa legal. Isto permite comprar os materiais de imprensa e propaganda, como se dizia na altura, e cujo ícone é o improp, nome pouco comum, pura novilíngua, que ainda persiste. Muitos aprendem a escrever, a utilizar equipamentos de impressão e a distribuir propaganda política com cuidado. 

Mas é também nesta altura que as relações entre as pessoas se deterioram. Fora do ambiente da Politécnica, longe das salas de aula, do Jardim e dos cafés onde muitos tentam estudar, sem o contacto diário entre todos, cria-se o ambiente onde se alimenta a intriga e fervem os equívocos. É este o período mais difícil, onde a separação entre os ativistas e entre estes e o universo estudantil, impedem a criação de uma memória comum. Multiplicam-se acusações de desinteresse ou de falta de coragem, discutem-se estratégias para retomar a ação associativa e espera-se ansiosamente pelo fim das suspensões para voltar a casa. Ainda hoje não é possível distinguir os factos da sua memória necessariamente distorcida. A organização de excursões fora da faculdade, onde muitos estudantes se podiam reunir, procura mitigar o afastamento, mas não substitui a vida académica normal. Os encontros entre estudantes na clandestinidade com os que não estavam alimenta o secretismo e com ele a desconfiança. 

O ano de 1974 inicia-se numa perspetiva pouco positiva: os que tinham entrado para a Universidade em 1970 e tinham sido alvo de ações disciplinares estavam a aproximar-se da data de incorporação forçada e tinham de optar entre ficar ou fugir. Os ecos dos movimentos nas Forças Armadas para uma mudança da situação política, em mais do que uma direção, carregam em si um misto de esperança e apreensão. Na madrugada desse dia multiplicam-se os telefonemas, os encontros de grupos de ativistas e militantes, conforme os casos, todos convergindo para a rua, o largo do Carmo, olhos postos na televisão e ouvidos na rádio.  

No corrupio das ruas de Lisboa formam-se grupos sucessivos expectantes procurando seguir todos os acontecimentos, prevendo o pior ou o melhor, mas sempre com esperança de que o país iria mudar. Multiplicam-se as reuniões, prepara-se a manifestação do primeiro de maio, numa altura em que as comunicações ao país do movimento das forças armadas, e a saída dos dirigentes políticos do regime para o exterior consolidava a situação emergente. 

Entre abril de 1974 e setembro de 1975 viveram-se todas as quimeras. A vertigem era de se ser “a esquerda da esquerda”, e a materialização da literatura politica apressadamente aprendida. Para transmitir essa mensagem todos os meios eram utilizados, representando a máquina de projetar de 16 mm um elemento fundamental. Os estudantes mais politizados percorriam o país, contactavam com as comunidades mais isoladas, enquanto decorriam as campanhas de alfabetização promovidas pelo Movimento das Forças Armadas. 

Filmes trazidos da Europa com temática socialista, quer grandes clássicos de Eisenstein, quer obras chinesas ou albanesas, eram projetados como forma de dinamizar a disseminação da política, evocar o sonho e incutir ânimo a comunidades sem grande esperança. Ao mesmo tempo, iniciavam-se as excursões à Albânia, com escala em Ljubljana, para se ver in loco o impacto das conquistas revolucionárias no farol do socialismo na Europa. A experiência é uma desilusão para muitos dos participantes e devastadoras para alguns, se bem que os fiéis são sempre capazes de encontrar justificações adequadas para as situações mais estranhas.  

A participação no 28 de setembro e no 11 de março é quase sempre do lado da radicalização e não da democracia. A leitura dos acontecimentos sublinhava os riscos de regresso ao passado. A expansão dos movimentos de extrema-direita no Norte e em particular o assassínio do Padre Max apareciam como demonstrações reais deste perigo perante o qual todos se deveriam erguer. O 25 de novembro aparece como a contrarrevolução. Vai ser Mário Soares a progressivamente impor uma leitura diferente da realidade. As declarações de Ramalho Eanes indicam idêntico caminho, e tudo acaba essencialmente em aberto. 

A partir desta altura dá-se lugar, progressivamente, ao aterrar na realidade, com a inevitável reavaliação de tudo o que se passou neste período. Consolida-se a ideia de que os riscos de voltar ao passado são menores de que se imaginava, e que existem mais mundos para além da dicotomia fascismo-socialismo. Os anos passam, alguns ingressam no movimento sindical, mas a maioria retoma a sua vida profissional. À luz dessas experiências de vida, das famílias que se constituíram, muito do passado é reanalisado e os   companheiros que se tinham juntado na estrada da luta contra o regime anterior, distribuem-se agora de forma muito mais ampla, em praticamente todo o espetro político e com ambições diferentes para os seus projetos de vida. 

Neste caminho de cinco décadas perderam-se muitos rostos. Alguns tornaram-se amigos próximos e mantiveram-se ao longo da vida. Outros desapareceram numa qualquer bifurcação. Outros ainda a morte levou antecipadamente. Os nomes ecoam na memória à medida que esta desvanece. Adversários políticos parecem hoje bem mais próximos. Os exemplos de abnegação e coragem deixam sempre marcas, mas a bruma do tempo acaba por unir todos os acontecimentos num contínuo de sentimentos contraditórios. O passado mais do que uma lista de acontecimentos é uma pintura contínua onde os sentimentos são mais fortes que os dados. 

Portugal mudou num mundo que mudou. A integração europeia, a abertura ao mundo, o novo universo formado pela tecnologia e as redes sociais, faz com que o passado se apresente como não reconhecível. Penso não ser possível transmitir com realismo aos nossos filhos o que era o mundo fechado e opressivo e o país pobre e rural, a falta de cosmopolitismo, o choque de desembarcar num país europeu e ver a luz do outro lado do mundo.  

Cada um medirá de forma diferente em que medida as suas expetativas pessoais se podem considerar cumpridas ou não. Sem nunca estar preso ao passado e ao que fizemos dele, quero pensar que, pelo menos em espírito, todos ainda têm guardada a pistola de agrafos ou o policopiador porque em qualquer altura podem vir a ser de novo necessários. 

#50anos25abril