Exposição que mergulha nos meandros do Portugal que antecedeu a Revolução de 25 de Abril de 1974, que revela um passado doloroso e presta homenagem aos que resistiram. Uma jornada histórica que ilumina as sombras do passado, para que possamos apreciar plenamente a luz da liberdade que floresceu após a Revolução dos Cravos.
A exposição realça o potencial da documentação à guarda da Secretaria-Geral do Ministério da Justiça, para ajudar a compreender um passado recente e tão distante. Em exibição, estarão testemunhos valiosos sobre o período do Estado Novo, formando uma narrativa singular dos anos que antecederam o 25 de Abril. Uma oportunidade para alcançar uma visão autêntica sobre um regime de opressão, cuja evolução e desenvolvimento deram origem a uma maquinaria de influência e condicionamento das liberdades humanas.
A exposição pode ser visitada de 30 de novembro de 2023 a 29 de fevereiro de 2024, das 9h00 às 19h00. A entrada é livre.
A exposição destaca três núcleos cruciais, que encapsulam as complexidades e as lutas vividas durante os anos que antecederam o 25 de Abril.
Núcleo 1: Presos Políticos – Contraste entre a visão interna do regime e os testemunhos externos sobre a vivência dos presos políticos
Esta documentação permite-nos verificar a contradição entre a retórica oficial do regime e a realidade vivida pelas pessoas encarceradas. Os deveres e direitos dos presos políticos ganham protagonismo e emergem como pilares de um sistema que, por via das suas páginas escritas, proclama a justiça, enquanto a realidade, muitas das vezes, a nega. Detalhes meticulosos sobre a quantidade de banhos permitidos, postos de enfermaria existentes e os médicos disponibilizados para os prisioneiros atestam um cuidado humano. No entanto, estes elementos chocam quando comparados com os relatos de prisioneiros sobre as ineficazes vistorias médicas e a recusa de atendimento apropriado, lançando uma sombra sobre essa imagem de hospitalidade. A acessibilidade às bibliotecas prisionais, apesar de ser referenciada nos documentos, surgia muita das vezes como um privilégio distante e demasiadamente censurado para cultivar o espírito do encarcerado. A correspondência dos prisioneiros que se concretizava muitas das vezes como a única “janela para o mundo exterior”, também era vigiada e controlada.
No tecido documental presente no nosso acervo, destacamos, à luz da perspetiva interna, os relatórios policiais e administrativos que procuram apurar responsáveis pela fuga de Álvaro Cunhal de Peniche ou os processos de inquérito realizados aos funcionários da Cadeia Penitenciária de Lisboa no âmbito da fuga de Henrique Galvão, em outubro de 1953; as listas de prisioneiros submetidos a medidas de segurança nas prisões privativas da PIDE, num momento já de grande contestação a este tipo de detenção contínua; as apreciações sobre as pedidos de indulto.
Do lado oposto, sob uma perspetiva externa, encontramos petições de familiares dos reclusos e correspondência individual que reivindicam melhoria das condições prisionais. Os documentos que compõem o mosaico do sistema carcerário, revelam vidas afetadas pela maquinaria da justiça, nomes como Octávio Pato, João Maria ou Paulo Varela Gomes, marcam e assinalam uma luta coletiva de resistência deste período.
Destaca-se a lista de presos políticos com medidas de segurança em 1962, nas prisões dependentes dos Serviços Prisionais do Ministério da Justiça ena prisões privativas da PIDE.
Núcleo 2: Direitos Humanos – A defesa dos direitos dos presos políticos
Ao mesmo tempo que todo o espaço prisional é sentido de forma desoladora para os encarcerados, assistimos a uma fricção cada vez maior entre o regime e a população.
Através dos documentos analisados, comprova-se a crescente onda de manifestações no decorrer do Estado Novo, seja através de baixos assinados coletivos, seja por via de correspondência individual e pela pressão nacional e internacional da Ordem dos Advogados. Um relatório interno efetuado pela administração contesta um artigo escrito pelo advogado belga Adrien Wolters que se une em solidariedade, no combate às condições das cadeias portuguesas e às injustiças cometidas em relação aos presos políticos. No interior destes registos, os relatórios internos procuram atestar a legalidade da justiça portuguesa refletindo a complexidade deste período.
O fundo do Gabinete do Ministro abriga ainda correspondência da Ordem dos Advogados, assim como listas de processos intentados, pendentes e julgados. Ao abrigo do Estatuto Judiciário, a Ordem dos Advogados faz chegar ao Ministro da Justiça relatos de abusos de autoridade e arbitrariedades por parte dos agentes policiais e chefes das cadeias que impedem os advogados de exercerem o dever de defesa dos seus constituintes, ao serem impedidos de os visitar em privado e no tempo necessário à preparação da defesa. Os advogados reportam igualmente as condições de vida dos seus clientes, nomeadamente os direitos que lhes são negados. A determinação de salvaguardar os direitos humanos dos presos políticos representou não só, um grito contra a repressão do Estado Novo, mas também um espírito de esperança em tempos desesperados. Neste período, advogados comprometidos com um direito universal ergueram-se como exemplos da justiça, enfrentando a repressão estatal. Nos tribunais os advogados tornavam-se a voz de tantos seres humanos silenciados.
Destacamos a intervenção de figuras marcantes, como Jorge Sampaio.
Os médicos, conscientes das atrocidades cometidas dentro das paredes das prisões, desafiaram o sistema para cuidar dos presos políticos. As suas ações representaram mais do que meras assistências médicas, concretizando-se em preciosos testemunhos de compaixão no meio de uma brutalidade encoberta.
Núcleo 3: Prisão sem grades – A vida do dia-a-dia. Os condicionalismos permanentes e a relação de poder entre o Regime e as elites locais
O último foco da exposição recai sobre a atuação estatal de controlo do dia a dia dos cidadãos.
Uma rede de elites provinciais e de dirigentes administrativos é responsável pela manutenção da ordem social. A União Nacional apresenta-se como a grande distribuidora dos cargos públicos, tendo-se espalhado por todo o país. Ser membro da União Nacional simbolizava o passaporte para qualquer cargo. Os documentos demonstram a correspondência entre o Gabinete do Ministro e a União Nacional, incluindo solicitações de avaliações políticas de candidatos (idoneidade politica), mas também as apreciações do PIDE, nem sempre abonatórias, as desconfianças, os juízos de valor. Abrangem posições nos Registos Civis, Notariado, Tribunais, entre outros. Em certas ocasiões, os próprios candidatos contactam diretamente o Ministro, expondo qualificações e motivações para ocupar tais cargos.
A vida do funcionário público é regulamentada até na sua dimensão privada, é disso exemplo a residência permanente, que deve ser na localidade onde o funcionário exerce normalmente as funções do seu cargo, ou as deslocações ao estrangeiro em licença graciosa.
A imprensa nacional independente e internacional, apesar da censura diária, mantiveram acesa a chama da verdade para que todos conhecessem o que realmente se passava no país. Jornalistas, editores, repórteres e trabalhadores das amnistias arriscaram tudo para documentar as histórias dos presos políticos. Do outro lado, censores eram nomeados para rever e aprovar ou rejeitar conteúdos que considerassem subversivos ou contrários aos interesses do regime.
Destacamos o processo crime por abuso de liberdade de imprensa, relacionado com a publicação da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica em que são arguidos a organizadora da obra, Natália Correia, o editor Fernando Mello, os poetas Mário Cesariny, Ary dos Santos, Luiz Pacheco, Melo e Castro, o jornalista Geraldo Soares e o empregado de escritório Francisco Esteves.
Destacamos também o processo que proíbe a circulação da obra de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, por ofensas dirigidas aos Magistrados.
Neste núcleo, revela-se ainda a intromissão na vida familiar, o divorcio, os filhos ilegítimos. A resistência contra a visão conservadora e patriarcal imposta pelo regime foi vital para o progresso das relações de género, da liberdade individual e de relações conjugais mais justas e igualitárias.
A alteração ao Código Civil de 1966, especialmente no que tange ao regime legal de bens, foi um marco relevante na evolução da legislação portuguesa, no qual o homem detinha considerável domínio sobre a família, incluindo a administração dos bens.
O divórcio era praticamente inexistente e altamente estigmatizado e a condição de filho ilegítimo também era um aspeto problemático para a sociedade. Ambas as situações justificaram as inúmeras exposições ao Gabinete do Ministro da Justiça a pedir intervenção. As crianças nascidas fora do casamento enfrentavam discriminação e limitações legais, o que impactava diretamente suas oportunidades e direitos. É neste contexto de desigualdade e preconceito que se insere, por exemplo, as ações do Movimento Nacional Pró-divórcio. Reforçava-se assim a necessidade de reformas profundas no sistema jurídico, que só foram possíveis após a Revolução de abril de 1974.
Com o advento da democracia, as mudanças legislativas começaram a ocorrer, incluindo reformas no Código Civil de 1966, visando adequar as leis aos princípios democráticos, igualdade de género e proteção dos direitos individuais. O divórcio foi facilitado e a condição de filho ilegítimo foi progressivamente desconsiderada, refletindo uma evolução significativa na conceção de família.