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Histórias da Oposição Católica e do amanhã que falta cumprir

Jorge Wemans

Nascido em 1953, natural de Lisboa, Portugal.

Casado, pai de três filhos e avô de seis netos, jornalista. Diplomado pela Escola Superior de Jornalismo de Paris. Atual editor do jornal digital 7MARGENS. Foi Provedor do Telespetador da RTP [2017 a 2020], diretor da RTP2, diretor do Serviço de Comunicação da Fundação Calouste Gulbenkian, diretor de Informação da Agência Lusa, Provedor do Leitor do jornal PÚBLICO, fundador e diretor-adjunto do jornal PÚBLICO, subdiretor do semanário EXPRESSO, editor do Suplemento de Economia do DN.

Lecionou a cadeira Deontologia da Comunicação do Curso de Comunicação Social e Cultural da FCH da UCP. Foi fundador da Associação Nacional de Direito ao Crédito e seu presidente.

Católico.

 


Histórias da oposição católica e do amanhã que falta cumprir

Final do Verão de 1973. O nosso programa e a nossa lista obtêm a maioria dos votos dos militantes da Juventude Escolar Católica (JEC) reunidos no seu Conselho Nacional. Somos uma dúzia de jovens (rapazes e raparigas) de várias cidades do país, dos últimos anos dos liceus e primeiros da universidade, quase todos participantes nas lutas estudantis (mais corporativas, ou mais politizadas), a maior parte envolvida na luta anticolonial e alguns de nós, por uma razão ou por outra, já fomos presos. Somos católicos, balbuciando uma fé difícil de dizer num meio em que a pertença à Igreja que reivindicamos é vista como um ridículo anacronismo, como um criticável vínculo ao mais forte suporte ideológico da ditadura. Somos um feixe de contradições, mas nem por isso temos menos claro o caminho que queremos percorrer com os nossos iguais. Estamos entusiasmados com os ventos de renovação do Concílio e acreditamos que a nossa pedagogia ajudará outros a alargarem horizontes, crescerem na fé, tomarem as suas vidas nas suas próprias mãos e transformarem o país numa terra de paz e felicidade. Agora somos a Equipa Nacional da JEC.

Naquele cenário completamente expectável e absolutamente próprio da Casa da Sagrada Família da Praia de Mira derrotámos por larga margem a lista organizada de roda do até então assistente nacional. O mesmo padre que, apesar do seu discurso modernista e conciliar, no ano anterior não nos permitira colocar a guerra colonial como tema da sessão de estudos. Por isso não o incluímos nos três nomes de padres que propusemos ao episcopado para que nomeasse um deles como nosso assistente nacional.

A reviravolta da Praia de Mira não foi assim tão inesperada. Tínhamo-la construído ao longo de meses em encontros, visitas e conversas com os jovens da JEC um pouco por todo o país. E nessas andanças sempre vinham ter connosco as mesmas questões: a injustificável guerra contra os povos das colónias; a emigração forçada dos pais à procura de uma vida melhor que o país não lhes permitia construir; a censura cultural e a repressão dos costumes; a ausência de liberdade para criar organismos representativos dos estudantes e para intervir na vida das escolas; o autoritarismo de pais (os que não tinham sido obrigados a emigrar) e professores; a atitude submissa, reverente e conciliadora da Igreja em relação ao regime. Questões, perguntas e pequenas tragédias declinadas sofridamente em vários tons, mas sempre julgadas como situações contrárias ao Evangelho anunciado por Jesus Cristo. Por outro lado, alguns de nós éramos dirigentes diocesanos, ou nacionais, desde há alguns anos refletindo e agindo em equipas de base. Estávamos preparados, sabíamos o que queríamos. E tínhamos connosco vários padres que nos confirmava que assim era.

Desautorizados e humilhados

Final de novembro de 1973. Na véspera da segunda reunião da Equipa Nacional, o episcopado entrega-nos um balde de água fria, ou melhor, um enorme cubo de gelo: manda dizer que não reconhece a nossa equipa nem nomeia qualquer assistente. Decide tudo isto de forma ínvia, sem argumentos nem confronto, sem nos ouvir nem admitindo réplica. Toma a decisão de nos desautorizar recorrendo à fórmula mais maldosamente seráfica: “por decisão do Episcopado na sua última Assembleia da Conferência Episcopal, a JEC (…) deverá passar a trabalhar apenas em plano diocesano, prescindindo-se por agora do plano nacional e da sua equipa”. Nada mais humilhante do que ser dispensado, tornado desnecessário, desautorizado, sem um debate, uma razão, um porquê. Desautorização que não recaía apenas sobre os eleitos, mas sobre todos quantos em nós tinham votado.

Se fosse hoje, neste tempo em que a adaptação às circunstâncias funciona como regra, em que tudo se resolve com a fuga para o lado, a valorização da escolha individual e o fechamento na minha bolha pessoal, teríamos batido com a porta e ido à vida. Mas aqueles não eram os tempos do passar ao lado. Eram tempos de rebeldia e de contestação em que a vida não tinha sentido se não servisse para mudar o estado de coisas, acabar com a pobreza miserável em que metade da população portuguesa vivia, conquistar as liberdades básicas e pôr termo à guerra colonial.

Por isso ficámos. Como se nada fosse, apesar do terramoto que nos havia caído em cima. Aprendemos à nossa custa que, na Igreja, o poder – o exercício do poder – com frequência assume o modo e os trâmites com que é exercido noutras instituições, nada tendo de cristão, permitindo-se ferir e desrespeitar as pessoas. Tão tarde quanto a cinco meses do 25 de abril, a Conferência Episcopal Portuguesa decidia autoritariamente, sem sentir qualquer necessidade de ouvir os interessados ou de explicar o porquê de uma decisão tão drástica de impugnar a decisão democrática do movimento. Às portas da revolução, os bispos continuavam a proceder como senhores feudais, pondo e dispondo sem dar cavaco a ninguém, usando os fiéis como se súbditos fossem, de costas voltadas para a renovação proposta pelo Concílio e sentindo-se desobrigados de qualquer prestação de contas a quem quer que fosse. Ficámos. Continuámos, ainda que desautorizados, a trabalhar como Equipa Nacional. Ficámos também porque alguns padres continuaram a apoiar-nos. Fizemos o nosso caminho, de modo mais difícil e complicado, porque a expansão da JEC, o crescer do número de jovens estudantes que se interessavam pelo modo de ser que projetávamos e respondiam com entusiasmo à proposta do movimento, nos confirmava estarmos no caminho certo. Proposta que naquele tempo definíamos, em termos que hoje nos parecem terrivelmente arcaicos, como “um movimento de militantes estudantes, cristãos, que confrontam o seu empenhamento e a explicitação da fé em ordem a uma síntese de vida”.

Dezembro de 1974. Seis meses depois do 25 de abril, sem memória, sem considerações, nem dando o dito por não dito, a Equipa Nacional seguinte, eleita em setembro de 74, recebe uma lacónica carta transmitido que “a Conferência Episcopal, na sua assembleia de 18-27 de novembro de 1974, homologou a Equipa Nacional da JEC (…)” (Sic!). Razões para a mudança de atitude, para que aquilo que tinha sido decidido no ano anterior já não valesse? Nada, nem uma palavra. Sim, é verdade, pelo meio tinha-se dado o 25 de abril!

Ontem como hoje

Em meio século tudo mudou. O país é outro. Outros os seus dirigentes. Novos problemas se vieram juntar aos que não conseguimos totalmente erradicar. Mas, apesar das diferenças na forma e nos discursos, o exercício do poder na Igreja Católica em Portugal mantém o cunho persistente do antigamente. Concede a consulta a gente escolhida, em momentos específicos e em doses homeopáticas, mas nunca com carácter vinculativo. Prefere recordar as linhas vermelhas do tradicionalismo ultrapassado e, de preferência, acrescentar-lhe outras, a agir de modo inclusivo convocando à participação. É um poder que, como há meio século, se entende como absoluto. E, como vimos nos últimos anos a propósito dos crimes sexuais praticados no seu interior, se espanta por ter de prestar contas… nem aos católicos, quanto mais à sociedade portuguesa!

Por isso escolhi responder ao desafio que me foi lançado escrevendo sobre esta história, porque suspeito que poucos dos que também aceitaram escrever sobre o Antes, Durante e Depois do 25 de Abril, venham a abordar acontecimentos relacionados com a oposição de alguns católicos à ditadura e à guerra colonial. E porque essa oposição tem sido frequentemente tratada como arma de arremesso. Quer pelos que pretendem fazer crer que a Igreja Católica não foi até ao 25 se abril uma instituição de apoio constante à ditadura, à qual forneceu inclusive farta argumentação em defesa da guerra colonial. Quer pelos que pretendem reduzir essa oposição a um braço legal manipulado por organizações políticas clandestinas. Os acontecimentos, os factos e os processos falam, porém, por si próprios. Não se pode obrigá-los a dizerem o que não comportavam nem significaram.

De facto, o passado não pode ser reescrito como se nele tivessem sido inscritas as atitudes do presente. Tal como em muitos outros setores da sociedade portuguesa, os católicos que se envolveram na denúncia dos abusos e atrocidades da ditadura e na luta anticolonial foram poucos, muito poucos. E sempre condenados ao ostracismo, quando não reprimidos, pela alta hierarquia católica. Mesmo quando, no início dos anos setenta do século passado, muitos começaram a desenvolver uma consciência crítica sobre os desígnios do regime e sobre o carácter injusto e injustificado da guerra nas colónias, apenas um pequeno resto se dispôs, à revelia da hierarquia, a empreender ações de confronto com o regime, pelas liberdades democráticas e pelo fim da guerra.

E amanhã?

Tenha sido qual foi a importância das ações desse pequeno resto, nada disso permite concluir que a Igreja Católica tenha desempenhado nesses anos de chumbo o papel que o Evangelho lhe impunha. Todos sabemos como uma palavra da Igreja – clara, persistente e incisiva – no sentido da denúncia pública, de crítica e condenação de um regime a todos os títulos reprovável à luz da Doutrina Social da Igreja, do ensinamento dos Papas de então e seguindo o exemplo da Paulo VI, teria bastado para poupar milhares de vítimas da guerra, restabelecido a democracia, antecipando em vários anos o advento do 25 de abril.

É por isso, por essa falta ao encontro com a História, por esse serviço que a consciência católica impunha assumir como obrigatório e que ficou por fazer aos homens, mulheres e crianças daquele miserável país que era então o meu, é por tudo isto que tenho dito e escrito que mais uma vez a Igreja Portuguesa faltará aos seus deveres para com a sociedade portuguesa se não aproveitar a celebração dos 50 anos do 25 de abril para realizar um acto de solene pedido de perdão pela omissão que a caracterizou durante toda aquela última e dramática década do regime ditatorial.

Um gesto simbólico de pedido de perdão, reconhecendo não ter impedido todos aqueles mortos, feridos, traumatizados, abusados e deslocados, vítimas de uma guerra longa de 13 anos. Lista longuíssima de dezenas de milhar. Nos territórios coloniais e em Portugal. Não nomeados. Esquecidos. Remetidos para a memória privada de familiares e amigos. Varridos para debaixo do tapete, como se não fossem os nossos mortos, as vítimas de termos agido tarde demais. Para todos eles, por todos eles, e também por todos os outros que ousaram erguer a sua voz contra a guerra colonial e a Igreja reprimiu, calou e desprezou, continua a faltar um gesto coletivo, sério, de pedido convicto de perdão público por parte da Igreja Católica em Portugal. Pelo que não fez. Pelo que não disse. Pelo medo que a tolheu. Pelas conveniências que aceitou. Pela sua falta de fé. Pelo silêncio a que tão generalizadamente se remeteu.

Os 50 anos de abril oferecem a ocasião propícia para tal acto público.

Abril de 2023

#50anos25abril