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25 de abril in memoria

Nascido em 1954, natural de Lisboa, Portugal.

Licenciado em Engenharia Eletrotécnica, IST, 1981 e Mestrado, Master of Fine Art on Photography, pelo Rochester Institute of Technology, 1999.

Desde 1991 exerce o cargo de conservador de fotografia, no Arquivo Municipal de Lisboa. Lecionou na escola ARCO em Lisboa e Instituto Politécnico de Tomar, desde 1990 até 2014. É o sócio fundador da empresa LUPA, Luis Pavão Limitada em 1982, especializada na conservação e digitalização de coleções de fotografia, com responsabilidade técnico cientifica na realização de vários projetos de conservação, descrição e digitalização de coleções de fotografia de várias instituições.


25 de abril in memoria

E passaram 50 anos.

Lembro-me… naquele dia 25 de abril acordei com gritos da minha mãe, dizendo: cercaram o prédio, temos soldados lá em baixo! O meu irmão dormia na cama por cima da minha. Avançámos os dois para a janela e espreitámos do alto do oitavo andar. As obras no cruzamento de São Sebastião arrastavam-se há meses, os montes de areia e gravilha lá continuavam. Mas ao longo da avenida vimos estacionados alguns chaimites e outros veículos e carros do exercito. Soldados, armados, controlavam o cruzamento. O nosso prédio era o mais alto e o terraço foi ocupado de madrugada. Os soldados tinham ordens para vigiar o Quartel General, lá em baixo. Ao longo da manhã fomos estabelecendo conversa e percebendo que nada sabiam do que se passava. Cumpriam ordens e nem comida tinham: os residentes do prédio contribuíram com sopas, pães e frutas. Durante o dia fomos ouvindo o comunicado lacónico do Movimento das Forças Armadas, pedindo para nos mantermos em casa. Conversava-se em voz baixa, habituados que estávamos a tratar destes assuntos com a maior cautela. Ao fim da tarde ouvimos tiros ao longe, rajadas de metralhadora disparadas no Largo do Carmo. Crescia a ansiedade e algum medo. E também a esperança de que qualquer coisa fosse mudar em Portugal naquele dia.

Nas minhas memórias, o 25 de abril começou muito antes de 1974, quando entrei para a Universidade. Tive o primeiro contacto com a vida política no IST em outubro de 1971. Vinha do Liceu Camões com olhos vendados. Entre outubro de 1971 e abril de 1974, o meu envolvimento com a luta estudantil foi sempre crescendo, até se apoderar de tudo na minha vida. O fascínio pela vida associativa, as discussões noite dentro em salas cheias de fumo, o papel dos estudantes na sociedade, os operários e os camponeses explorados e oprimidos, a sociedade dividida e reprimida, a guerra colonial, foram as primeiras descobertas que fiz na Universidade. Foi a descoberta de um mundo que existia a meu lado e para onde eu nunca tinha olhado. Vieram então as lutas dos estudantes, as interrupções das aulas, as reuniões gerais, as greves e os boicotes aos exames, a repressão. A escola foi encerrada e ocupada pela Polícia. Um estudante foi assassinado pela PIDE em 1972 e o protesto incendiou toda a Academia. As greves estudantis e a repressão policial agravaram-se e prolongaram-se durante 1973. Por fim a minha expulsão do Técnico, com mais 80 estudantes e a perspectiva de ingressar na guerra colonial. Tinha a noção de estar sempre em sobressalto. Lembro-me de caminhar pela rua a olhar para trás, para ver se era seguido. Sonhava que me vinham bater à porta de casa durante a noite. Lembro-me de queimar papéis na casa de banho, de ter os livros que lia sempre forrados, de não escrever nomes de ninguém, usar apenas símbolos ou alcunhas.

Enfim, foi naquela madrugada, gloriosa, que tudo se libertou. O 25 de abril foi a maior transformação do século XX em Portugal. O povo despertou e participou como nunca se pensava. O que se iria passar nos meses seguintes não foi previsto, nunca por algum observador político, cartomante ou adivinho.

Lembro-me… nos dias seguintes, a cidade de Lisboa fervilhava. As pessoas não viviam para mais nada, o pesadelo era uma coisa do passado, o futuro era tudo para nós. Nas ruas, nos cafés as pessoas abraçavam-se, festejavam, saudavam-se efusivamente. Falava-se alto e de tudo, com o maior entusiasmo. Continuamente se agitavam bandeiras, se gritavam palavras de ordem. Os veículos militares eram saudados por onde passavam. Os exilados políticos chegavam continuamente a Santa Apolónia ou ao aeroporto. Pela televisão assistimos à libertação dos presos políticos, de Caxias e de Peniche, alguns com mais de 20 anos de cadeia. Era todo um mundo subterrâneo, oprimido há 40 anos, que se libertava. A alegria era contagiante, chegara o momento de fazer tudo aquilo que até então nos tinha sido proibido. As pessoas desfilavam pelas ruas, as reivindicações eram gritadas, pois ainda não tínhamos certezas: libertação de todos os presos políticos, fim da guerra colonial, liberdade de expressão, fim da censura. Lisboa era um palco de manifestações continuas, que ora subiam ora desciam a Avenida, que estacionavam no Rossio, que se formavam e se dissolviam e voltavam a surgir mais à frente. No dia 1 de Maio de 1974 todo este movimento atingiu o seu ponto culminante. Ficou provado que a ditadura não nos tinha adormecido, os portugueses resistiram e mantinham-se preparados para agir. Não tenho hoje palavras, 50 anos decorridos, para descrever esta recordação indelével, doce e emotiva, que continuo a sentir ainda da mesma forma.

Que podiam fazer os estudantes? Conscientes de que não era o momento de regressar à escola e estudar, decidimos sair de Lisboa nesse verão de 1974 e contactar diretamente as populações do país. Em grupos de 5 ou 6 estudantes do IST fomos, alguns para a Guarda, outros para a Covilhã, para o Alentejo e para Trás-os-Montes, em busca da classe trabalhadora de Portugal, de quem tanto falávamos e que tão pouco conhecíamos. Fora das grandes cidades, aquelas pessoas viviam até 1974 no maior isolamento: sem água corrente em casa nem esgotos, a maioria das aldeias ainda sem eletricidade, estradas miseráveis e muitas aldeias inacessíveis. Foi essa a realidade que conhecemos no verão de 1974, através de simples contactos, de conversas, de encontros fortuitos. Lembro-me descer ao fundo da Mina da Panasqueira para fazer um filme das condições de trabalho dos Africanos a explodir a pedra. Lembro-me de estar em Barrancos quando o Município abriu as primeiras valas para o saneamento básico da vila, que sendo sede o concelho não teve esgotos até 1974.

No ano seguinte integrei uma equipa de alfabetização para os operários de uma grande unidade industrial na periferia de Lisboa, pois muitos deles já de idade avançada, não sabiam ler, nem escrever. A população analfabeta, que era muito elevada, foi sendo alfabetizada nos anos seguintes, em parte por equipas de voluntários e também pelas campanhas do MFA.

Lembro-me … uma das recordações mais vivas na minha memória, a manifestação que desceu a avenida da liberdade em Lisboa reivindicando uma casa decente. Casas sim Barracas não!, gritavam. Foi um momento alto, a periferia a invadir a cidade, milhares de pessoas, mulheres com crianças pela mão, ou empurrando carrinhos de bebés, em chinelos, levantavam a cabeça e recusavam ser portugueses de segunda categoria. Até se unirem para reclamar a coisa mais elementar, uma casa, nunca tinham tido uma voz (nem casa!). Em 1974 a periferia de Lisboa era uma massa contínua de bairros da lata, que se estendia para o interior da cidade na Cova da Moura, no Bairro Chinês, na Musgueira ou no Casal Ventoso. Neles viviam aqueles que, vindos dos campos ou das colónias, procuravam um futuro melhor. Foi um processo lento, que demorou muito anos até à erradicação das barracas em Lisboa.

Outro ponto alto das minhas memórias de luta foi a grande manifestação operária de 7 de fevereiro de 1975, em que milhares de operários, muitos vindos da margem sul, desembarcaram em Lisboa, de capacete e fato de trabalho e subiram a avenida reivindicando uma nova ordem social com as suas palavras de ordem contra o desemprego, por uma repartição mais justa da riqueza. Foi um sinal claro da classe trabalhadora, que pretendia tomar nas suas mãos os destinos deste país.

Hoje creio que um 25 de abril era inevitável. Portugal não poderia ter continuado isolado no seio da Europa, fixado nas suas colónias e mantendo uma guerra indefensável. As colónias portuguesas acabariam por se emancipar pela guerra, o 25 de abril veio antecipar este desfecho. A queda do regime poderia ter acontecido de forma violenta, com perda de vidas, como aconteceu noutros países. Aconteceu aqui, de uma forma muito própria, por meio de uma revolução tranquila, com raros casos de violência e com a participação da população. O país que hoje temos foi em grande parte moldado pela forma como decorreram estes meses, de turbulência e revolução.

Volvidos 50 anos, tenho a clara noção do grande privilégio que tive ao participar nas lutas populares do 25 de abril, de fazer parte deste sonho enorme, de viver numa sociedade mais justa, mais igualitária e menos opressiva. Aqueles que comigo percorreram este percurso, desde 1974, sentem também que não podemos deixar esquecer o que o movimento do 25 de abril deu a este país. As novas gerações, filhos e netos devem ter esta consciência e não lhe podem passar ao lado. Recordo-me muitas vezes das palavras da minha mãe, que nos dizia: o 25 de abril foi a maior alegria da minha vida.

Março de 2023

#50anos25abril