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Antes, Durante e Depois do 25 de Abril de 1974, Um Depoimento Pessoal

Nascido em 1947, natural de Pias, Lousada, Portugal.

Diretor Geral (Reformado) de uma Fábrica de Máquinas Ferramentas e Professor Convidado (Aposentado) da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Vasta participação diretiva nas associações nacionais e internacionais de âmbito setorial industrial. Membro do CAQ da Ordem dos Engenheiros por dois mandatos.


Antes, Durante e Depois do 25 de Abril de 1974, Um Depoimento Pessoal

Antes do 25 de Abril de 1974

Nasci em 1947 numa aldeia do Distrito do Porto, Pias, Lousada. Filho de uma família numerosa (9 filhos), conservadora e católica. Frequentei a Escola Pública até á 3ª Classe, Escola que funcionava no piso térreo da habitação da Professora. Era apenas uma sala onde se lecionava as quatro classes, durante a manhã e tarde, deslocando-me a pé pelos caminhos de cabras (não havia acesso automóvel) fizesse sol ou chuva. Tinha condições para brincar e estudar, enquanto a maioria dos outros ia descalço para a Escola, só brincava pelo caminho e, após o seu regresso a casa, tinha de ir ajudar os pais nos trabalhos do campo. Na ausência do conhecimento da matéria, ou por mau comportamento, a professora usava a palmatória de 5 furos na palma da mão, castigo que designávamos por “bolos” em número função da gravidade do erro.

Havia muita pobreza na aldeia. As casas eram minúsculas, sem luz elétrica, água e muito menos saneamento. A alimentação era à base de caldo de couves, “adubados” com toucinho gordo de porco, batatas cozidas sem conduto (carne ou peixe). Quando havia sardinha, uma dava para 2 pessoas. Quando comiam carne, era a de porco a que tinham acesso. Para o chefe de família, o pai, havia todo o privilégio. Havia uma estória local em que o filho contava como o salpicão era distribuído: “O pai come o picão, a mãe a peliquita e o filho a balacita”, que traduzindo, o pai come o salpicão, a mãe a pele e o filho o baraço que fecha o enchido Havia um analfabetismo generalizado. Recordo a distribuição pelos mais necessitados, através da Igreja, de produtos enviados pelos USA, onde pontuavam, o leite em pó, farinha de trigo para cozer pão e queijo enlatado, que a maioria não apreciava e trocava por outros géneros com pessoas mais abastadas.

A minha formação política iniciou-se pela imitação do meu pai, salazarista convicto, por ter conhecido as dificuldades e confusões do tempo da República, da I Guerra Mundial e outras até Salazar colocar as contas “em ordem” e acabar com as manifestações.

Na fábrica de calçado, negócio de família, havia um tio no Escritório, que era do “reviralho” e recebia o Jornal República. Então, comecei a ler a República e, claro, fui sendo politicamente influenciado pelo meu tio, equilibrando as minhas tendências. E quando foram as eleições do Humberto Delgado em 1958, que acompanhei, o meu pai como responsável pela fábrica, apesar de Salazarista, deu autorização para os operários, que quisessem ir ao Comício programado para Penafiel usarem o transporte da fábrica. Só que encontraram todos os acessos à Cidade fechados por tropa fortemente armada, mobilizada pela Ditadura. O Comício foi cancelado e os operários regressaram cheios de medo com tanto armamento!

Quando fui para o Porto com 15 anos, para prosseguir os estudos, conheci novas realidades relacionadas com a política, os panfletos e jornais clandestinos, os apelos às manifestações do Dia do Estudante, do 1º de Maio, etc. O medo da Pide bloqueava-me para qualquer iniciativa, pois ouvia diferentes histórias de horrores por que passavam as pessoas por eles detidas, algumas que conhecia, quantas vezes por simples desabafos!

No Verão de 1968, no meu 4º ano da Faculdade, fui colocado na Finlândia para um estágio internacional IAESTE. E aqui vi a felicidade de um povo que vivia em Liberdade. Na fábrica os engenheiros e os operários falavam livremente e até troçavam do nosso ditador Salazar! Todos eram politizados, o que confirmei após a invasão da Checoslováquia de 20 para 21 de agosto. Assisti a uma grande manifestação com comício, para condenar e repudiar a invasão pela Rússia.

Um dia, eu e outro colega português e grande amigo, que foi também colocado na mesma empresa, fomos convidados para jantar em casa do engenheiro responsável. E não é que ele nos conta, para surpresa nossa, que o Salazar tinha caído da cadeira e que parecia estar muito mal! Nem com esta notícia perdemos o medo! Recusamos a oportunidade de fazer uma visita de alguns dias a Leninegrado (São Petersburgo), que ficava a pouco mais de duzentos km, viagem que estudantes de outras nacionalidades, franceses, belgas, suíços, alemães e suecos organizaram. Ao imaginarmos o carimbo russo no nosso passaporte ser detetado pela PIDE, que controlava as fronteiras, e que nos deteria para interrogatório, não saímos da Finlândia!

Na viagem de regresso, na paragem em Paris, ainda encontrei os resquícios do que foi o “Maio de 1968”, sobretudo no “Quartier Latin”. Foi o Verão do meu deslumbramento pela Liberdade e pela Democracia.

Depois desta experiência, fiquei com coragem para nas eleições de 1969 apoiar e votar na CEUD (ligada ao Mário Soares)!

Onde estava no 25 de Abril?

O 25 de Abril de 1974 apanha-me nos finais do meu serviço militar na então chamada Província da Guiné, hoje Guiné-Bissau. Preparava-me para o final da Comissão de Serviço de 24 meses iniciada em junho de 1972, o que não aconteceu e se prolongou por mais 2 meses até agosto de 1974.

Após passar 9 meses no “mato” na linha da frente, como Comandante do Pelotão do Serviço de Material de um Batalhão de Artilharia sediado em Tite (local onde o último ataque a que assisti foi no dia 20 de janeiro de 1973, dia do assassinato do Amílcar Cabral, e com grande violência, já com misseis além de granadas de morteiro), fui transferido para Bissau com destino ao Serviço de Material. A minha mulher chega a Bissau para me acompanhar no dia 25 de março de 1973, dia em que se deu o 1º abate de um avião da Força Aérea Portuguesa por um míssil terra-ar de origem soviética.

Estando na Gestão de Stocks do Armazém de Peças Auto, descobri com outro Colega irregularidades nos preços de aquisição de material em que vários oficiais estiveram implicados! Fizemos uma denúncia ao comandante que nos acompanhou numa viagem a Lisboa para visitar as entidades que apresentavam enormes oscilações de preço! Aí tivemos reuniões de grande discussão, tão escandalosas eram as evidências!

Consequência para os prevaricadores? Nada, a Ditadura tudo abafou… Mas também senti “na pele” outros abusos inqualificáveis dos tempos de Ditadura. No ano letivo de 1972/1973 estando em Bissau, candidatei-me para dar aulas de Mecânica e Desenho na Escola Industrial com aulas ao fim do dia. Concorri e ganhei o concurso. Poucos dias antes do início das aulas, sou convocado pelo Diretor da Escola que me informou que o lugar não poderia ser meu, que tinha de ser de um sargento da Força Aérea que nem sequer tinha concorrido.

Participei ao Governador Geral, General Bettencourt Rodrigues que substituíra o General Spínola. Fui chamado pelo seu Adjunto da Administração, para me informar que a minha participação tinha merecido a melhor atenção e que eu tinha razão, mas, com o ano letivo em curso, iam ver o que se poderia fazer! Nunca mais voltei a ser contactado.

Entretanto a minha mulher lecionava, nesse ano letivo, numa escola da Instrução Primária, pois também tinha concorrido e sido selecionada para dar aulas. E não é que começam as vinganças habituais por eu ter reclamado a minha não colocação para lecionar na Escola! Era célere a ação dos bufos na Ditadura a penalizar, também, os elementos da família

A minha mulher recebe, entretanto, uma carta a informar que não tinha qualificações para dar aulas e que teria de devolver o dinheiro, entretanto auferido! Tivemos de ir para Tribunal, recorrendo a um Camarada Oficial, formado em Direito, para ser nosso advogado. Ganhamos o processo, a minha mulher foi reintegrada e não teve de devolver nenhum dinheiro.

Estes casos pessoais, entre os de muitas outras pessoas, exemplificam o que se passava em Ditadura cujo lema era “Comer e Calar”.

E previa eu que se desse a Revolução do 25 de abril? Não imaginava que se desse tão cedo, mesmo estando no meio de onde partiram muitos oficiais envolvidos no movimento dos Capitães. Por nunca transpirar nada cá para fora é que o sucesso da Revolução foi tão fantástico e belo!

As primeiras notícias do 25 de Abril chegam nessa manhã a Brá (arredores de Bissau onde estava o Depósito do Serviço de Material), através de um oficial que era rádio amador. Ficamos felicíssimos, mas estonteados sem saber o que fazer. Começamos a ter notícias das ações dos que eram localmente “Capitães de Abril”, com detenção dos altos Comandos da Região Militar. No mato, iniciam-se movimentos de aproximação entre os soldados portugueses e os guineenses, antes inimigos, com vivas ao 25 de Abril.

Começaram os plenários políticos realizados numa sala de Cinema de Bissau, em que a figura mais preparada entre os líderes organizadores, foi o Alferes Miliciano José Barros Moura, então militante do PC. A par de uma felicidade generalizada havia uma preocupação nos militares, como nós em fim de comissão, para serem rendidos pois as mensagens da metrópole “Nem mais um soldado para as colónias” poderiam ser levadas a sério e por lá ficaríamos até à descolonização total que, obviamente demoraria muito tempo. Felizmente, embora com atraso, o nosso regresso foi a 15 de agosto de 1974. Ao sobrevoarmos Lisboa para aterrar, a companhia completa no Boeing 707 Militar, começa a cantar em uníssono e com emoção, o fado da Amália “Cheira a Lisboa”!

E depois do 25 de Abril?

Após passar à disponibilidade, retomo no dia 16 de setembro de 1974 a minha atividade profissional, interrompida para cumprir o serviço militar. E o que encontro? Plenários na Fábrica onde trabalhava, Plenários na Faculdade onde lecionava, tudo em ambiente de grande agressividade, em que se toleravam os mais facilitadores e se saneavam os mais exigentes, mesmo que fossem verdadeiros democratas! O PREC em toda a força, em que irracionalidade vencia o bom senso e se ignorava o bem comum.

Passadas estas convulsões, conseguimos estabilizar e afinar o regime democrático e olhar o futuro. As liberdades de pensamento, de religião, de voto, foram asseguradas. Passamos a viver incomparavelmente melhor do que antes do 25 de Abril de 1974, sobretudo depois da nossa entrada em 1985 para a CEE (Comunidade Económica Europeia, que mais tarde passou a União Europeia). Nas fábricas os recursos humanos passaram a ser muito mais respeitados e valorizados. As mulheres passaram a ter aí cada vez mais lugares. Houve valorização profissional, não só em termos salariais como em ações de formação e qualificação enquadradas na própria empresa. Houve dinheiros dos apoios comunitários mal aplicados pelos governos, empresas e sociedade? Sim, houve, mas no essencial conseguimos evoluir e aproximarmo-nos dos povos mais evoluídos.

O alargamento sucessivo do ensino obrigatório até ao 12º ano, o aumento das Escolas do Ensino Superior e de Universidades Públicas e Privadas, resultou numa democratização sem par do Ensino Universitário. Que bom ver sucessivamente os meus filhos, netos e outros familiares a estudarem e a conviverem com os familiares dos meus Colegas de Escola ou dos meus camaradas da tropa, e a concluir os seus cursos, o que era impensável antes do 25 de Abril!

A educação e a liberdade são fundamentais para o progresso. Veja-se a notável evolução que tiveram os países de leste após a sua libertação do jugo soviético, conciliando o nível de educação que possuíam com a democracia e a liberdade que conquistaram. O acesso à Saúde foi generalizado, embora longe da perfeição, sobretudo com os atuais problemas de faltas de meios. As nossas limitações a mais progresso, à melhoria dos Serviços de Saúde e Educação e das condições de vida da população, encontram-se na falta de enriquecimento do país. E para isso é fundamental que todos nos empenhemos e contribuamos para esse fim com uma cidadania participativa.

É necessário aproveitar melhor os dinheiros públicos e dos fundos europeus por todas as instituições deles beneficiárias, sejam públicas ou privadas, orientando-os menos para os interesses pessoais de curto prazo (como aconteceu tantas e variadas vezes), proporcionar ações de qualificação de empresários das PME e recorrer mais e mais aos nossos melhores jovens qualificados, confiando neles sem receio.

E numa palavra, temos todos de nos envolver no progresso do país e de participar nas escolhas de quem nos governa e não nos acomodarmos na abstenção.

Maio de 2023

#50anos25abril