Para que este mundo não acabe
João Botelho
Nascido em 1949, natural de Lamego, Portugal.
Cineasta português no ativo com a filmografia mais vasta, 43 anos de carreira e 16 longas-metragens realizadas. Destacou-se, em 2014, com OS MAIAS, filme português mais visto desse ano no país, percorreu alguns dos maiores festivais de cinema da Europa e América Latina e estreou comercialmente, no Brasil, em 2016. Vários filmes presentes nos festivais de Cannes, Roma, Antuérpia, Rio de Janeiro, Veneza, Berlim, Salsomaggiore, Pesaro, Belfort, Cartagena e Varna, onde obteve vários prémios. Destaque para o prémio OCIC, no festival de Cannes, para CONVERSA ACABADA; melhor realizador, festival do Rio de Janeiro; melhor filme, em Salsomaggiore e Pesaro; OCIC, em Berlim, com ADEUS PORTUGUÊS; prémio da crítica internacional de melhor filme, em Veneza, com TEMPOS DIFÍCEIS e prémio Mimo Rotella da melhor contribuição artística da Bienal de Veneza com o filme QUEM ÉS TU?
Para que este mundo não acabe*
“Era uma vez”, assim começam todas as histórias. “Nasci”, assim começa a história de David Copperfield de Charles Dickens, talvez a melhor abertura de sempre para um romance. Eu nasci numa zona do norte de Portugal, muito fria no inverno, muito quente no verão, em tempos sinistros onde reinava o silêncio, a obediência e a miséria. Na escola primária eu tinha sapatos porque era filho do professor. A maior parte dos meus colegas pisava a neve no inverno, de oito graus negativos, com os pés nus apenas envoltos em trapos. Irritam-me hoje, e às vezes até interrompo a corrida e vou a pé, os taxistas homens feitos, mas que nasceram já depois do 25 de Abril de 1974, afirmarem com uma convicção insuportável: ”como eram bons os tempos de Salazar!” Não eram, garanto-vos! Na asquerosa ditadura do “quero, posso e mando” a esperança de vida tinha menos trinta anos do que a de hoje, o analfabetismo rondava os cinquenta por cento da população, menos de um por cento de quem ia à escola primária atingia a universidade, no interior norte, couves e batatas todo o ano. No interior sul, uma sardinha para seis. Quanto menos se sabe menos se reivindica, se os habituarmos a comer menos eles perdem a fome. “Deus, Pátria e Família” era o slogan a que todos obedeciam, que a todos oprimia.
Eu tive sorte. Quando muito novo fui para Coimbra, os ventos bons começavam a soprar. Vindos de Berkeley, nos EUA, vindos de Paris em maio de 68. Chegaram a Portugal atrasados, em 69, mas chegaram. Comissão da Cantina (as revoluções começam sempre no estômago) o Couraçado de Potemkin, o teatro do Citac, a aprendizagem coletiva fora da universidade. “Lê meu filho, lê, a leitura aumenta a inteligência” dizia Séneca ao seu jovem discípulo Lúcio. E eu li, o que eu li! Experimentar a Democracia, o direito à opinião diferente, o respeito pelos outros, eleições livres e pequena revoluções. Claro, no gueto da universidade, lá fora era impossível. Gritávamos Ho-Chi Minh, em vez de gritar Amílcar Cabral ou Agostinho Neto. Encenávamos Brecht e Castelau e o encenador era posto na fronteira. Ouvíamos jazz em Cascais, mas os grandes músicos eram também expulsos. Mais tarde, no Porto, a luta semiclandestina ou mesmo clandestina. De repente a catástrofe perfeita, o 25 de Abril. O curso de engenharia mecânica abandonado, eu dava aulas numa escola técnica de Matosinhos. De repente estava em 1 de Maio, no Estádio do mesmo nome, em Lisboa. Um ano de festa e liberdade, ah Democracia! Escola de cinema, mudava de vida. Mais de metade de 74, mais de metade de 75 o absoluto entusiasmo. Que me perdoem os três belos filhos que tenho, mas foram os melhores tempos da minha vida. A liberdade, esse bem precioso, só tinha um limite, não incomodar o outro. Poder fazer o que se quer, escolher, ter opiniões, falar em voz alta, ouvir os outros.
Corte ou elipse, como no cinema. Quase cinquenta anos depois alguns perigos. A ganancia cresceu muito da Democracia, a competição desenfreada também os populismos estúpidos e segregacionistas mais ainda. No filme de Godard, O DESPREZO, o corpulento Jack Palance depois de atirar como um discóbolo, uma lata e película pelo ar, do filme que estava a produzir e de que não gostava, abre uma pequena bíblia do tamanho de um polegar e de uma página de três centímetros quadrados lê: “O sábio nunca deve humilhar o outro com o seu saber.” Quando se vê um dos Mont Sainte-Victoire de Cézanne é preciso muito tempo para conseguir descobrir o fogo que do interior da terra, durante milhares de anos, acabou por formar a montanha. Resistam, digo eu aos mais novos, aprendam coletivamente, ensinem aos outros sem pedir nada em troca, lutem pelo tempo contra o movimento. Das extraordinárias novas tecnologias não mais de dez por cento são úteis e maravilhosas, os outros noventa por cento são perigosos, são lixo. Aproveitem o pouco que é bom. Leiam. Partilhem. Não entrem em competição. Defendam o NÓS em vez do EU, esse ser esquisito e egoísta, defendam as coisas que se aprendem na Democracia, a dádiva em vez da troca e lutem pela felicidade.
Hitchcock, talvez “o cineasta-pintor mais abstrato do século XX”, disse um dia a jovens alunos de cinema: “nunca se deixem prender!” Ele não se referia à delinquência nem à prisão, mas à independência das convicções. Nunca ceder aos interesses mesquinhos de outros. Nunca ceder ao negócio que destrói a criação, filmar só o que se acredita ser importante e verdadeiro, mesmo sabendo que o cinema é sempre artifício. Outro cineasta que admiro, Jean-Marie Straub, corrigiu-me uma vez: “nunca digas moderno, o que é moderno hoje é antigo amanhã. Diz tradicional e só depois contemporâneo, porque o cinema tem uma história e filmar o vento que agita as árvores pode ser decisivo e belo.” E também o senhor Oliveira: “se não houver dinheiro para filmar a carruagem e os cavalos, filma apenas a roda, mas filma bem a roda.”
Com esta e outras premissas ao longo de um pouco mais de quarenta anos fiz mais de trinta filmes. Longas e curtas-metragens, documentários. Com a liberdade que só a Democracia permite. Do que é bom, do que é mau nos meus filmes, sou eu o responsável. Adaptar-me às circunstâncias sim, ceder nunca. E sei que o cinema é falso, “arte de vampiros”, que rouba às outras artes mais verdadeiras, mais puras: teatro, poesia, música, pintura, etc. O que é verdadeiro no cinema é apenas o que sente quem vê e quem ouve. A liberdade do espectador é um bem precioso, que sempre respeitei. Sem a liberdade democrática nunca teria filmado Pessoa, Eça, Garrett, Fernão Mendes Pinto, Alexandre O’Neill, nem Dickens, nem Diderot, nem Agustina Bessa-Luís, nem o meu Trás-os-Montes, nem nada. Espero que os meus filhos e os vossos tenham a sorte que eu tive e que lutem por ela, que percebam, defendam e melhorem o estado das coisas, para que a Democracia não acabe.
*Título de um documentário meu sobre uma região de Trás-os-Montes onde durante muitos anos se praticou a Democracia direta: “A Padaria do Povo”, “O Boi do Povo”, “A Água de todos”. Decisões coletivas e de partilha.
Dirigir e Formar, revista do IEFP nº 34, janeiro/março 2022, pp. 53-55.