Vivências em português – Décadas 60-80
Nascido em 1955, natural de Lisboa, Portugal
Frequentou a escola primária nº 68 em Lisboa e o ensino liceal no Liceu Nacional Gil Vicente também em Lisboa (alínea f). No Instituto Superior Técnico (IST) frequentou o curso de mecânica, entre outubro de 1973 e janeiro de 1977. No ano de 1977, entre fevereiro e novembro, foi professor num projeto de alfabetização, na barragem da Raiva no concelho de Penacova. Optou, por tornar-se professor-cooperante, na República Popular de Moçambique, durante dois anos (fevereiro de 1978 a fevereiro de 1980), lecionando a disciplina de física na escola secundária Francisco Manyanga em Maputo. Em 1980 pediu reingresso no IST, tendo sido recusado. Concluiu, em 1984 o bacharelato em engenharia de máquinas, no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa ISEL). O estágio do curso de engenharia decorreu no Alentejo, na Fábrica de Material de Rega, Lda. em Reguengos de Monsaraz, de janeiro a julho de 1985. Implementou os cursos de aprendizagem do IEFP em Évora até abril de 1986. Em setembro de 1986 inicia o percurso de professor de mecânica do ensino secundário na escola secundária de Montemor-o-Novo. Realizou a profissionalização em exercício na Universidade de Évora, no ano letivo de 1989/1990. Ingressou na Direção Regional de Educação do Alentejo em outubro de 1990, como professor requisitado desempenhando funções de técnico superior. Conclui a licenciatura em engenharia mecânica no ISEL em 2001. Desempenhou diversas funções técnicas e pedagógicas desde 1990 até 31 de dezembro de 2015, data de aposentação na função pública.
Vivências em português – Décadas 60-80
Com breves episódios marcantes da vida pretende-se dar uma modesta contribuição para a recolha do modo de vida dos portugueses na fase da ditadura e no período pós 25 de abril de 1974.
A infância, na primeira metade dos anos 60, foi marcada por longas estadias estivais em casa de uma tia-avó, numa aldeia nas faldas da serra do Açor. A paisagem, dominada pelo pinheiro-bravo e salpicada com carvalhos e castanheiros, tinha cores, cheiros, mistérios para explorar. Uma viagem penosa, longa e com percursos em estradas poeirentas de macadame, levava-nos à aldeia. De carro, desde Lisboa, a distância de 250 Km, levava mais de 6 horas, sendo necessário levar um lanche/almoço. Chegávamos muito cansados. A vida na aldeia girava em torno da agricultura de subsistência, na qual os produtos recolhidos da terra, mal chegavam para alimentar as famílias numerosas. A maior parte das casas era construída com recursos locais, tanto o xisto como a madeira existente no concelho. Algumas casas não eram rebocadas e sendo o telhado de telha vã, as correntes de ar eram uma constante. A casa de banho, não existia como um compartimento das habitações. Assim, no quintal, em instalações improvisadas, colocava-se uma sanita. Não existia saneamento básico. O banho, semanal ou quinzenal, era tomado num alguidar, lançando a água no corpo e na cabeça com auxílio de um púcaro. O aquecimento da casa era conseguido pela queima de madeira na chaminé. Em muitos casos, para o aquecimento da casa contribuía o calor dos animais, que eram alojados no piso térreo, nas divisões chamadas “lojas”.
Os alimentos, confecionavam-se em panelas de esmalte ou de ferro fundido, assentes no chão ou elevadas na trempe. Em dias de festa, para preparar refeição melhorada para a família, poderia ainda funcionar o fogão de ferro com forno ou o fogareiro a petróleo. A lenha, combustível principal, era colhida, rachada e transportada para a loja da casa, em carros de bois, cujas rodas de madeira produziam um som inconfundível. A água, chegava a casa em cântaros de barro, assentes na “sogra”, transportados à cabeça pelas mulheres, em equilíbrio perfeito e treinado desde a infância. Por vezes, era necessário mais que uma ida diária à fonte ou chafariz mais próximos. A iluminação no interior das casas, era conseguida com candeeiros de petróleo ou de azeite. A iluminação noturna urbana, dependia essencialmente das fases da lua, já que não existia rede elétrica.
Nas brincadeiras de rua com os amigos, alguns descalços, engendravam-se brinquedos improvisados, puxando pela imaginação. Duas pinhas atadas, com um cordel em cada ponta, representavam uma parelha de bois. Havia o jogo da malha ou por vezes o aro de uma roda, amparado por uma varinha, mantendo-se assim o rodar no passo de corrida. Poucos peões e nenhuma bola.
Os serões, já noite dentro, eram passados a ouvir contos populares. Histórias fantásticas e violentas, num imaginário ardiloso entre o bem e o mal, contados pela avó e tia-avó, que deixavam uma conflituosa mistura de emoções, impressões, sentimentos. Agravava-se este enredo de sensibilidades, nas noites em que o uivo noturno dos lobos, na serra em frente, se fazia ouvir. Ecoando pela aldeia, os uivos alimentavam a imaginação, sustentavam a fantasia, cortavam a respiração, angustiavam os sonhos.
Em meados dos anos sessenta, o bairro popular da Penha de França em Lisboa, um andar de prédio construído no final dos anos trinta, era o espaço familiar. Prédios com 3 a 4 andares, numa tipologia dominante, eram habitados pela pequena burguesia dos serviços e operariado. Poucos automóveis, poucas máquinas de lavar, poucas televisões, alguns telefones e muitos esquentadores instalados nas casas de banho. Reinava o rádio, a telefonia, habitualmente com o som elevado, em oficinas, cafés, mercearias e casas de família. A escola primária, num edifício exclusivo para o sexo masculino, ficava a 100 metros de casa. Ouvia-se em casa, o tocar da campainha para a entrada dos alunos, nos poucos dias de doença de criança. As turmas de meninos eram constituídas por cerca de 25 alunos. A maior parte dos colegas eram vizinhos, residindo outros na Quinta dos Peixinhos, um bairro de barracas situado em terrenos contíguos ao quartel de transmissões do exército.
Nestes bairros de lata não existia eletricidade, nem saneamento básico. Nas ruas ou caminhos de terra batida, corriam em escorrência permanente, as águas domésticas. O cheiro era nauseabundo no verão, a lama abundava no inverno e o frio combatia-se com alguns cobertores.
Na instrução primária, chegados à quarta classe, havia que preparar os alunos para o exame. No caso da preparação da turma neste último ano, o professor decidiu que diariamente e durante um certo período seriam feitos 3 problemas de aritmética. Para resolver os problemas chamava ao quadro um aluno e caso a solução fosse incorreta, caso tivesse errado, além da exposição perante a turma, teria uma prenda de 3 reguadas. Num dia infeliz um menino podia levar 9 reguadas. E houve vários dias…
No final dos anos sessenta, o liceu Gil Vicente, era o estabelecimento da zona de residência. Além das disciplinas de conhecimento geral, lecionadas no período da manhã, nos dois primeiros anos e à quinta-feira à tarde, aprendia-se a marchar. Num corpo pré-adolescente, assentava uma farda esverdeada e ridícula, enfeitada com um cinto de fivela, onde sobressaía um “S”. Só mais tarde percebi o significado do S quando a mocidade portuguesa deixou de praticar a marcha como a regularidade semanal, convertendo esse horário, em atividades circum-escolares e desporto para entreter os rapazes.
O normal funcionamento do liceu foi afetado por duas vezes. A primeira, com umas pichagens de natureza política, no sítio mais escondido possível, a casa de banho perto do gabinete do reitor. Rapidamente foram apagadas, restaurando-se a pintura das paredes, ou não existisse o perigo de formar revolucionários, pela leitura de uma ou duas palavras de ordem. A segunda vez pela distribuição de uns pequenos comunicados. Das duas vezes, alguns zelosos funcionários, conotados pelos alunos como pides, não pararam de coscuvilhar, para tentar descobrir os autores desta enorme intervenção política.
Nos dois últimos anos (6º e 7º, que correspondem atualmente ao 10º e 11º ano), o curriculum escolar incluía a disciplina de Organização Política e Administração da Nação (conhecida como OPAN). Uma designação arrepiante, reconhecendo-se de forma evidente, alguma tensão latente entre professor e alunos, relativamente aos conteúdos da disciplina. Numa das aulas, um colega questionou sobre a razão de continuar a nomear-se Goa, Damão e Diu como colónias, pois tais territórios tinham sido anexados pela Índia em anos passados. Na resposta, o professor explica: “suponha que tem uma pintura muito valiosa e que lhe roubam esse quadro, considera que o quadro deixou de lhe pertencer?” Na sala, alguém dá contributos à explicação do mestre: “ladrão que rouba ladrão…” A risota foi geral.
Rematando este episódio, esclareça-se que o reitor do liceu era deputado da ANP pelo círculo das Índias Portuguesas. No princípio de 1973, houve oportunidade de fazer contrato com uma empresa de estudos do mercado, para aplicação de dois inquéritos de opinião. Um sobre o refrigerante Sumol® e outro sobre uma revista de vestuário. A recolha de dados realizou-se em localidades do Alentejo: Évora, 2 aldeias entre Reguengos de Monsaraz e Alandroal, Moura e Vila Verde de Ficalho. A seleção dos domicílios a contactar, tinha regras pré-estabelecidas pela empresa. O trabalho dos contratados reportava-se ao preenchimento dos inquéritos, inquirindo diretamente uma pessoa de cada domicílio.
Em duas destas localidades, aconteceram episódios surpreendentes. A GNR, acredita-se que motivada pelo facto de os contratados serem rapazes, exerceu as suas funções abordando e detendo os jovens no posto. Após identificação e um rol de perguntas, manteve-se a detenção, até que horas mais tarde, contactada a empresa lá se esclareceu a situação. Foi então possível dar continuidade ao trabalho pois, ipsis verbis “não queríamos fugir do país e não andávamos a fazer inquéritos para o congresso democrático em Aveiro, que iria realizar-se nesse ano”.
O inquérito na parte introdutória, procurava determinar-se o nível sócio económico da família. Neste âmbito, havia várias questões tais como o tipo de habitação, nível de educação, patamar de vencimento e eletrodomésticos adquiridos. Em algumas aldeias, devido à visível pobreza, iniciava-se o questionário perguntando se tinham rádio em casa. A grande maioria das famílias não tinha rádio e o analfabetismo era quase geral. A caracterização do nível sócio económico era óbvia. Só foi possível entrevistar mulheres, já que a resposta comum era que “o homem estava a trabalhar”, esclarecendo a ausência…. “quando há trabalho, o homem ganha 20 escudos de sol a sol”. Algo chocante, quando os contratados ganhavam 25 escudos por cada inquérito…. Encerraram-se alguns dias de recolha de dados com um aperto no coração.
Em outubro de 1973, a opção para começar a carreira de estudante universitário foi o Instituto Superior Técnico. O ambiente era pesado, constrangedor. As entradas dos estudantes no recinto da universidade, estavam controladas por um cartão com fotografia, codificado em 2 cores específicas, correspondentes ao ano e curso. Entregava-se o cartão no portão de entrada e caso o estudante se “portasse bem”, era devolvido horas depois, por um funcionário, numa janela do pavilhão central. Para haver respeito, todos os dias, cerca de 6 carrinhas com polícias de choque, estacionavam dentro do recinto junto ao pavilhão central, vedando-se simultaneamente a entrada a cerca de 60 alunos expulsos por “má conduta”.
Por iniciativa de alguns destes alunos expulsos, eram frequentes os convites para participar em reuniões de esclarecimento sobre a repressão na Universidade, assim como sobre planeamento de ações junto dos novos alunos. As reuniões eram feitas ao ar livre, nos bancos do jardim ao lado do pavilhão central. O coordenador da reunião saltava o muro do Instituto Superior Técnico e durante aproximadamente meia hora, motivava alunos do primeiro ano, para a necessidade de liberdade e democracia na universidade, além de eventuais formas de luta. O medo de ser intercetado por algum pide da universidade era constante. As reuniões foram ocorrendo regularmente até 25 de abril de 1974. Em consequência, levaram a ações de repúdio, face à repressão vivida em algumas turmas da universidade.
O primeiro 1º de maio em liberdade foi um dia inesquecível. A entrega das pessoas à comemoração, o júbilo pelo fim do regime ditatorial, a esperança da chegada de dias mais felizes na vida individual e familiar, o fim da repressão, o cessar da guerra colonial. Compreenderam todos, que não se ensombraria o futuro com o sobressalto do “soldadinho não volta do outro lado do mar”. A manifestação, com início previsto na Alameda, começou antes, algures na avenida Almirante Reis. O engrossar de manifestantes, as palavras de ordem contra o anterior regime e por uma vida melhor, foram uma constante. O apoio dos residentes nas janelas e varandas, em contágio com os manifestantes na rua, levaram ao rubro a festa começada no 25 de abril. A chegada ao Areeiro foi o clímax. A população acreditou nesse dia, que seria impossível voltar à ditadura e uma nova vida, com liberdade, estava para chegar, a sensação era de “que a liberdade está a passar por aqui!”.
O empolgamento vivido dispensou os discursos no estádio (mais tarde designado Estádio 1º de maio), continuando a manifestação durante horas. Acabou-se o dia no Rossio, junto à estátua do D. Pedro IV, num magote de pessoas que atentamente ouvia e esgrimia ideias sobre o passado político em Portugal. Um espanto, uma surpreendente novidade esta, de exprimir-se em público.
O período a seguir ao 25 de abril foi bastante quente, com lutas na universidade, com tensões sociais e os estudos foram ficando para trás, perante tanta coisa interessante a passar-se à nossa frente. No final de 1976 integrava um grupo de alfabetização de adultos. A missão, seria a tentativa de diminuir a iliteracia dos cerca de 25 % de analfabetos do país. Grupos de voluntários iam junto dos operários das fábricas e em horários pós-laborais desenvolviam a aprendizagem da leitura e da escrita.
No princípio do ano de 1977, o interesse foi alfabetizar operários a trabalhar na barragem da Raiva (atualmente barragem do Couço), complexo da Aguieira. Sem haver qualquer financiamento, a estratégia era trabalhar 4 horas por dia, pelas quais a empresa construtora pagava aos alfabetizadores, metade do vencimento de um ajudante. Distribuídos os dois alfabetizadores, a opção foi a carpintaria, enquanto ao colega coube o estaleiro do ferro. O tempo restante serviria para as aulas e respetivas preparações e paralelamente atividades com os filhos dos trabalhadores (teatro, acampamentos). Alojados na camarata, comíamos na cantina e o tempo livre passava-se na sala de pessoal.
As aulas decorriam em espaço próprio, preparado pela comissão de trabalhadores, comparecendo os alunos no final do dia de trabalho. Um dos alunos, carpinteiro de toscos de segunda classe, frequentava regularmente as aulas, pretendendo aprender a escrever o seu nome. Bastante se tentou influenciar este carpinteiro para que aprendesse também a ler. Esforços sem êxito, pois a ambição era mesmo escrever o nome. Sempre que se passava perto das cofragens da barragem, o carpinteiro chamava e com o seu lápis, ensaiava a escrita do nome numa tábua. A alegria máxima aconteceu num final do mês, quando veio exibir o recibo de vencimento assinado: “José Pinto”.
No início do ano de 1978, surgiu uma das maiores viragens na vida. A República Popular de Moçambique procurava professores cooperantes para cobrir lacunas nas escolas de ensino secundário. Passando pelo processo de candidatura, a seleção daria oportunidade para uma experiência de dois anos. Era a possibilidade de ser útil num novo país em desenvolvimento e ao mesmo tempo a saída de casa dos pais aos 22 anos de idade. Os preparativos e a instalação tiveram algumas peripécias naturais a uma radical alteração do modo de vida. Maputo era agora o local de residência, lecionando na escola secundária Francisco Manyanga. Tendo conseguido apartamento, passados dois meses, estava a dar aulas de física ao nono ano. Além disso, como na escola, se pretendia que alunos e professores tivessem uma atividade produtiva, para minorar as carências de bens, ocorreu a integração numa secção produtiva. Os objetivos eram a produção de blocos de cimento para a construção e a criação de coelhos para a alimentação.
Os alunos eram interessados e motivados, não existindo problemas de disciplina. As dificuldades residiam nas lacunas da língua portuguesa e da matemática. A motivação para as atividades produtivas era reduzida, pelo que não houve grande sucesso. Ainda integrado nestas atividades a escola foi convocada para apoiar a ceifa de arroz nos campos de Chokwé, antigo colonato do Limpopo. A apanha de arroz era normalmente feita por alfaias mecânicas, mas nesse ano, talvez devido a adubação desadequada, a planta cresceu muito e com o vento dobrou o caule, acamou. Com máquinas era trabalho impossível e o recurso à ceifa manual seria a solução. A mobilização das escolas tinha como objetivo colmatar a necessidade de mão de obra. A ida e o regresso eram feitos em camião de caixa aberta e a dormida e as refeições num pavilhão agrícola. Alguns professores sabiam ceifar com foice, mas a maior parte de alunos e professores nunca tinha manuseado a alfaia. O resultado foram golpes nos dedos, pouco arroz ceifado, mas um enorme e salutar convívio entre a comunidade escolar.
O regresso a Portugal no inicio de 1980 trouxe a necessidade de adaptação e enquadramento a uma “nova” sociedade. As notícias durante os dois anos de ausência foram escassas e apenas atualizadas com as novidades trazidas por alguém de regresso de férias. Os telefonemas internacionais, a partir da estação central dos correios em Maputo, eram particularmente difíceis de conseguir. A revista semanal de informação geral “Opção” terminou a sua publicação deixando os assinantes no estrangeiro sem notícias de Portugal.
As altas taxas de desemprego e as taxas de juro dificultavam a integração social de quem regressava. Afigurava-se no regresso, um país que teria vivido um interlúdio entre as expetativas criadas no 25 de abril de 1974 e o momento real. O regresso à universidade, a busca de emprego, o concreto de um quotidiano exigia agora a abertura e o compromisso para uma nova etapa da vida.
Maio de 2023