A morte do meu irmão na guerra colonial
Nascido em 1954, natural de Cascais, Portugal.
Sociólogo.
A morte do meu irmão na guerra colonial
O dia 19 de fevereiro de 1970 era uma 5ª feira e já cheirava a fim de semana. Eu tinha 15 anos e frequentava o então 6ª Ano do Liceu, que corresponde, hoje, ao 10º Ano.
Como de costume, à hora do almoço, saímos do colégio dos Salesianos do Estoril, onde eu e o meu irmão mais novo estudávamos (e os outros 2 irmãos mais velhos já tinham estudado) e tomámos o comboio para Cascais na estação do Estoril, junto ao Tamariz, na galhofa habitual com os nossos colegas. Todos os dias almoçávamos na nossa casa, que era muito perto da estação de comboios em Cascais.
Quando eu e o meu irmão Miguel nos aproximámos da nossa casa, estranhámos ver alguns amigos e amigas dos meus pais no pequeno jardim à entrada da casa e, quando os cumprimentámos, ficámos inquietos com o ar sério com que fomos acolhidos. Pensei que algo de estranho e mau poderia ter acontecido na minha família. Entrei e mais amigos estavam no corredor antes da sala, conversando em voz baixa.
Quando entrei na sala, vi o meu pai a chorar convulsivamente. Nunca tinha visto o meu pai chorar. Era um homem muito metido consigo e raramente expressava os seus sentimentos.
Sem saber o que se estava a passar fui logo abraçá-lo, e o meu pai agarrou-se a mim e começou a gritar, desesperado “Mataram o nosso Luisinho! Mataram o nosso Luisinho, Duarte”.
Acho que desatei também a chorar, não sei se pelo meu irmão mais velho ter morrido (acho que ainda não tinha interiorizado a notícia) ou pelo desespero extremo do meu pai.
O primeiro flash que passou no meu cérebro, naquele momento, foi o meu irmão a ser despedaçado por uma bomba, ou por uma mina.
Não vi logo a minha mãe, mas disseram-me que ela estava deitada no quarto. A minha casa era uma vivenda antiga de dois andares e o quarto dos meus pais ficava no 2º andar. Entrei no quarto e, no meio de um círculo de amigos e amigas, a minha mãe estava na sua cama, apática, calada, mas com ar de estar em grande sofrimento. Haveria de estar assim, destroçada, por muitos mais dias, meses e anos seguintes até conseguir aconchegar este seu enorme sofrimento na sua vida quotidiana.
A casa esteve sempre cheia durante o dia, com amigos e amigas que nos procuravam reconfortar. Alguns dos amigos, que tinham sido combatentes, diziam que a notícia tinha de ser confirmada e tentavam dar algumas esperanças. No entanto, a notícia tinha vindo do Hospital Militar de Bissau, onde o namorado de uma ex-aluna da minha mãe estava a fazer o serviço militar.
Cerca das 18h, recebemos um telegrama do Exército que, de forma breve e seca, anunciava oficialmente a morte do meu irmão em combate no dia anterior, e houve gritos e choros novamente.
Algumas semanas depois recebemos o relatório oficial que referia que o meu irmão tinha sido atingido por um tiro certeiro no coração, no meio de um combate. A morte tinha sido imediata.
O seu funeral aconteceu um mês depois, dadas as formalidades e o transporte do corpo para ser sepultado em Portugal. Aguçou-se outra vez e ainda mais o nosso sofrimento.
Tive muitas crises de choro quando estava sozinho e uma imensa saudade e tristeza de nunca mais tornar a ver o meu irmão. Ao longo da minha vida, muitas vezes sonhei com ele. Nesses sonhos ela aparecia e afinal não tinha morrido. Aparecia sempre sozinho, doente e fragilizado, meio cá, meio lá.
Quando morreu, o meu irmão Luis Filipe Rei Vilar, tinha então 28 anos, era capitão de cavalaria, formado na Academia Militar. Era casado e tinha dois filhos pequenos de 2 e 1 anos.
Eu e o meu irmão mais novo éramos uns miúdos quando ele foi para a Academia Militar e, para nós, ele era o nosso herói, igual àqueles que víamos nos filmes, na televisão e nos livros aos quadradinhos.
Era, portanto, um militar de carreira, e era o comandante de uma guarnição numa aldeia da Guiné-Bissau a apenas alguns quilómetros do Senegal. A aldeia chama-se Suzana. Tinha iniciado a sua comissão em junho ou julho de 1969 e morreu em 18 de fevereiro de 1970, nove anos passados sobre o início da guerra colonial. A guerra em África como se dizia (o termo de guerra colonial era proibido dizer) fazia parte das conversas e das preocupações de todas as famílias portuguesas, desde 1961 quando se tinham dado os primeiros confrontos em Angola.
Quase todas as famílias tinham filhos, sobrinhos ou outros familiares na guerra em Angola, em Moçambique ou na Guiné. Cada vez mais se falava das emboscadas ou das minas, que estropiavam ou matavam milhares de jovens. Aliás, os jornais noticiavam, ainda que de forma muito limitada, os ataques aos aquartelamentos das tropas portuguesas e os mortos e feridos em combate.
Em Cascais, onde eu vivia, já vários jovens tinham morrido na guerra e, muito próximo da vila, tinha sido criado o Hospital de Alcoitão, onde se sabia que estavam a ser tratados muitos outros jovens estropiados pelas minas, pelos tiros e rebentamentos.
Falava-se também de muitos outros jovens que voltavam e que “nunca mais tinham sido os mesmos”, que se atiravam para o chão com o barulho dos escapes das motos parecido com tiros, ou com o rebentamento de foguetes e morteiros nas festas. O meu irmão Luís contou que, já na Guiné, tinha havido um soldado da Companhia que se tinha suicidado e outro que tinha enlouquecido.
Eram mais de 800 mil jovens, com pouco mais de 20 anos de idade que participaram nestas guerras.
Entre 1961 e 1974 mais de 10000 jovens morreram e mais de 30000 jovens ficaram feridos nas 3 frentes de guerra – Angola, Guiné e Moçambique.
Muitos deles vinham da guerra interiormente destroçados e nunca, mas nunca, foram ajudados pelo Estado que os tinha enviado para lá. Essas feridas eram muito mais difíceis de ver e de curar. Só muitos anos depois, se começou a falar dos danos causados pela guerra na saúde mental de muitos ex-combatentes, com depressões, medos, alcoolismo, e comportamentos violentos nas suas vidas quotidianas.
Muitos ex-combatentes regressados partilhavam com as famílias e com os mais novos, as suas experiências na guerra, sobretudo o medo de morrerem, ou de serem feridos ou mesmo de serem capturados nos combates e bombardeamentos. Eu ouvi e participei em muitas destas conversas.
Portanto o medo da morte existia nas famílias portuguesas, e eu pensava muitas vezes que o meu irmão poderia morrer na guerra. Infelizmente a minha família, foi uma entre os milhares de famílias portuguesas em que a morte e o sofrimento tocaram à porta.
Usando propositadamente a linguagem da altura, a “guerra em África” era justificada pelo governo como uma guerra necessária contra a agressão de “terroristas comunistas” que eram “contra Portugal” e contra a presença secular dos portugueses nas “províncias ultramarinas”, um novo nome que, desde o início da guerra, tinha substituído o termo “colónias”.
Quem fosse contra a guerra era mau português e era um traidor à pátria. Qualquer discurso que pusesse em causa a guerra, e os motivos da guerra, era antiportuguês e podia dar direito a prisão ou outra punição. Qualquer notícia mais ousada era censurada e qualquer manifestação pública era severamente reprimida.
Não tenho dúvidas que muitos portugueses acreditavam neste discurso. Não podemos esquecer que vivíamos numa ditadura e que o discurso oficial era o único que tinha direito a ser público. Por isso recordo que eu e muitos outros meus amigos, não tínhamos dúvidas sobre a necessidade da guerra contra “os terroristas”.
De facto, havia muito pouca informação sobre os movimentos independentistas e sobre as razões porque é que lutavam contra os portugueses. Mas, alguns, muito poucos, sabiam que Portugal era a última potência colonial que ainda tinha colónias. Todas as outras – Reino Unido, França, Holanda, Espanha, Bélgica – já tinham dado a independências às suas colónias, negociando com os movimentos independentistas. Só Portugal não o tinha feito e, por isso, a guerra continuava. O Estado português estava totalmente isolado na comunidade internacional.
As centenas de milhares de jovens que passaram pelos cenários de guerra foram combater porque tinham de ir, porque eram obrigados a ir. Nenhum jovem queria morrer, nem perder uma perna ou um braço, nem ficar cego ou numa cadeira de rodas. Mas tinham de ir para a guerra ou tinham de fugir de Portugal. Foi o que fizeram outros milhares de jovens que fugiram à guerra para França, Suécia, Holanda, Bélgica e outros países.
Em 1970, quando o meu irmão morreu, a guerra eternizava-se sem fim à vista. O meu irmão Luís ainda gozou umas pequenas férias no final de 1969 e lembro-me, nessa altura, das conversas entre ele e o outro meu irmão mais velho, na altura com 25 anos.
Hoje, recordando essas conversas, percebo que o meu irmão Luis, oficial do exército português, tinha dúvidas que aquela guerra tivesse uma solução militar, e que o exército português fosse capaz de vencer a guerrilha. E estas suas dúvidas , foram sendo, cada vez mais partilhadas por muitos outros militares mais jovens. Foram estes militares mais jovens, muitos capitães como o meu irmão, que haveriam, quatro anos depois, de organizar e fazer o 25 de Abril de 1974.
Algumas semanas depois da morte do meu irmão, assisti a um debate que me fez ver, com 15 anos, o outro lado da guerra e o outro lado das coisas.
Em Cascais nessa altura, o venho prior tinha morrido e tinha sido substituído por 3 jovens padres. Também dentro da Igreja Católica, cada vez mais padres e mais católicos punham em causa a guerra em África e as suas causas.
Deve ter sido em abril de 1970, era época da Quaresma e da Páscoa, e os jovens padres organizaram um conjunto de conferências sobre “A Paz no Mundo”. Havia uma conferência por semana à noite, na igreja paroquial de Cascais.
Penso que foi o meu irmão Manel que me levou a assistir a uma dessas conferências proferida por um padre que se chamava Luís Moita. Nunca o tinha visto, mas haveria de o conhecer muito mais tarde, a seguir ao 25 de Abril, e tornar-me seu amigo. Morreu há poucos meses.
Os jovens padres de Cascais gozavam da simpatia de muita gente, mas a elite rica e conservadora de Cascais/Estoril não podia com eles, e tinham organizado uma campanha miserável de calúnias, acusando-os de ser comunistas e traidores, e pedindo ao Cardeal-Patriarca de Lisboa que os tirasse da paróquia. E conseguiram fazê-lo, meses depois.
Nunca me esqueci que, com a igreja cheia, o conferencista começou a falar da guerra em Moçambique, colocando com cuidado, as dúvidas que tinha e as suas posições como católico. Na altura tinham circulado algumas notícias sobre um massacre de civis no Norte de Moçambique perpetrado por soldados portugueses. O próprio Bispo da Beira tinha falado e criticado esses factos. O Papa Paulo VI tinha recebido os líderes dos movimentos de guerrilha que lutavam contra os portugueses.
Nunca me esqueci que Luis Moita foi interrompido aos gritos, por pessoas que faziam parte daquela elite rica e conservadora de Cascais/Estoril, que exigiam aos gritos que o conferencista dissesse se apoiava ou não a FRELIMO (o movimento de guerrilha independentista que lutava pela independência de Moçambique). Outros chamavam-lhe traidor.
A gritaria foi tanta, que a conferência foi interrompida. Eu fiquei indignado com o que tinha visto, com os comportamentos daqueles que acabaram com a conferência. Mas para mim fez-se luz.
Eu era um miúdo de 15 anos, muito triste com a morte de um irmão. E nessa noite percebi que a guerra afinal acontecia porque aquela gente rica e conservadora que tinha furiosamente interrompido o Luis Moita, tinha os seus interesses em África. Que não eram Portugal ou os portugueses, mas alguns portugueses que tinham interesses em que aquela guerra continuasse, à custa dos jovens mortos e feridos, entre os quais estava o meu irmão Luís, à custa do sofrimento de tantos milhares de famílias portuguesas entre as quais estava a minha família.
Eu era um miúdo de 15 anos que estava na alínea H do 6º Ano do Liceu porque, na altura (depois mudei) queria ser arquiteto. Uma das disciplinas que eu mais gostava era História. Mesmo naquela altura, os meus livros escolares (da autoria de José Matoso) falavam dos descobrimentos e da colonização portuguesa. Falavam, já nessa altura, da escravatura e do papel que os portugueses tinham tido nesse comércio.
Eu era um miúdo de 15 anos, mas tinha ouvido o meu irmão Luís contar e mostrar, com entusiasmo, as histórias e as fotografias da população pobre de Suzana, a aldeia da Guiné Bissau em que ele estava a cumprir serviço militar. Tinha ouvido as suas histórias sobre a pobreza e as carências daquela população. Tinha-nos contado que as crianças de Suzana, iam todos os dias comer a sopa ao aquartelamento.
Eu era um miúdo de 15 anos quando comecei a juntar as peças do puzzle, e a entender a profunda injustiça daquela guerra, e da morte do meu irmão, e do sofrimento da minha família, e da pouca sorte dos meus sobrinhos que nunca haviam de conhecer o pai e, por via disto tudo, comecei a entender que a guerra fazia parte da tirania e dos tiranos que governavam o meu país.
E, por isso, comecei a agir, a falar e a cantar a revolta que eu sentia. E juntei-me a muitos outros que partilhavam esta revolta, e que tentavam mudar as coisas.
4 anos mais eu era um jovem de 19 anos. Tinha dado o meu modesto contributo para mudar as coisas. Tinha-me emocionado e chorado no dia 25 de abril de 1974, ao ver que os jovens oficiais, colegas do meu irmão, tinham-se revoltado e deposto a tirania e os tiranos. No dia 25 de abril de 1974 chorei de novo o meu irmão, porque sabia que, se ele fosse vivo, estaria com os outros seus colegas libertando os portugueses e permitindo a sua liberdade e a sua libertação.
4 anos depois da morte do meu irmão Luís, eu tive a imensa alegria de desfilar no dia 1º de maio de 1974 com centenas de milhares de pessoas, e berrar a plenos pulmões “Abaixo a guerra colonial” e “Nem mais, um só, soldado para as colónias”.
4 anos depois da morte do meu irmão, tive a alegria de assistir ao fim daquela guerra injusta.
Nota final
No final de 2016, um dos meus irmãos recebeu um email de um enfermeiro de Coimbra que estava a fazer um estudo sobre a lepra, em Suzana, na Guiné-Bissau.
Este enfermeiro tinha entrevistado alguns homens mais velhos da aldeia, e eles começaram a referir um tal “Capitão Vilar” de quem tinham uma memória boa. Alguns deles eram miúdos na altura em que o meu irmão tinha estado lá, e lembravam-se das sopas no quartel. O enfermeiro nunca tinha ouvido este nome, mas googlou e encontrou um dos nossos emails.
O seu email terminava dizendo que os Felupes (a etnia maioritária naquela região da Guiné) de Suzana e a família Rei Vilar partilhavam a memória do meu irmão – o Capitão Luis Filipe Rei Vilar.
E nós, os outros 3 irmãos, Manel, Duarte e Miguel, resolvemos fazer uma coisa que queríamos fazer desde aquela 5ª Feira trágica de fevereiro de 1970. Fomos visitar Suzana. Fomos visitar os Felupes de Suzana. Fomos prestar a homenagem que durante 47 anos tínhamos querido prestar ao nosso querido irmão mais velho.
Falámos com o Padre Zé Fumagalli da Missão Católica de Suzana (contemporâneo do meu irmão Luís), falámos com os “homens grandes” (nome dado aos mais velhos) de Suzana e relembrámos o nosso irmão Luís. Visitámos também o lugar do combate onde ele morreu, e descobrimos que uma escola que o meu irmão Luís tinha mandado fazer em Suzana em 1969, ainda funcionava como jardim de infância, apesar de estar muito degradada e ter poucos recursos.
Daqui surgiu a ideia de tornar a memória do meu irmão uma memória útil. Falámos com amigos nossos e com a Câmara de Cascais e, em 2017 iniciámos o Projeto KASSUMAI (que é a palavra de saudação dos Felupes) e, desde aí, apoiamos as escolas e as crianças de Suzana melhorando as suas condições de funcionamento.
Em 2020 criámos a Associação ANGHILAU que quer dizer criança em língua Felupe, e que diz nos seus estatutos: “A Associação Anghilau resultou do Projeto Kassumai e tem como objetivo contribuir para a educação das crianças de Suzana na Guiné-Bissau, promovendo desta forma os laços de amizade entre os povos e especificadamente entre o povo português e o povo bissau-guineense”.
Abril de 2023