Pontos luminosos da luta pela liberdade
Nascido em 1939, natural de Tondela, Portugal.
Arqueólogo e historiador de arte.
Entre as distinções recebidas conta-se o Prémio Pessoa em 1991, a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique em 1993, o doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Évora em 2001 e a Medalha de Mérito Cultural da República Portuguesa em 2020.
Pontos luminosos da luta pela liberdade
Sobre a luta dos jovens portugueses de antes do 25 de Abril, gostaria de recordar aqui, não os amargos tempos da prisão ou do exílio, mas alguns episódios felizes que me ficaram gravados na lembrança.
Eu vivia em Aveiro quando entrei para o Partido Comunista, que nesse tempo era ilegal. As reuniões, sempre clandestinas, realizavam-se de noite num bosque perto da cidade. Eu ia sempre com o mesmo camarada e amigo, o Zé Bento. Quando chegávamos à clareira combinada, só se via um círculo de pequenas luzes, a que nos juntávamos. Acendíamos cada um o seu cigarro. Éramos as duas luzinhas que faltavam para a reunião começar. No fim levantávamo-nos todos, apagávamos os cigarros e o lugar ficava para trás, no seu natural negrume solitário.
Aí tomávamos conhecimento das linhas de luta e das ações concretas que os camaradas do Partido nos aconselhavam. Estava-se em 1958, em plena campanha eleitoral para a presidência da República. Nós éramos a favor de Humberto Delgado, contra Américo Tomás, candidato salazarista. A nossa próxima missão seria pôr em cheque a figura deste último. Como? Resolvemos fazer uma figura vestida com um fato branco e boné de almirante que dançasse no ar. O boneco e o fato foram para nós fáceis de fazer. Guardámo-lo no sótão do cinema de Aveiro, a que tínhamos acesso porque o porteiro era dos nossos. O único problema era fazer passear o boneco por cima das cabeças das pessoas. Então resolvemos comprar balões de hidrogénio, que transportámos numa grande mala para o mesmo sítio, numa noite de cinema. Minutos antes do filme acabar, fomos lá acima e atirámos com o boneco pela janela fora, preso aos balões. Mas estes já tinham perdido metade da força. Quando chegámos à rua, as pessoas que saíam do cinema ainda estavam a olhar para ele, mas ele cambaleava como se estivesse bêbado e acabou por cair, todo desengonçado, no meio da multidão. Não foi muito espetacular, mas teve a sua graça.
Mas mesmo já depois de o Américo Tomás ter sido eleito, a luta continuava com a mesma genica de antes. Nas férias grandes, por encargo do nosso controleiro da época, que muito mais tarde viria a saber que se chamava João Honrado, foi-me atribuída a tarefa de distribuir uma grande quantidade de panfletos do Partido Comunista na feira de S. Mateus, em Viseu. A feira era mais ou menos no mesmo sítio onde é hoje, porém em vez de edifícios, a toda a volta só havia campos de milho. Para me ajudar, pedi colaboração a um jovem simpatizante de Viseu que mal conhecia. Chamava-se José Mouga. Ao entardecer comparecemos ambos no lugar de encontro que era na Ponte de Pau. Para lançar os panfletos eu levava um foguete improvisado: eram milhares de folhas de papel de seda, impressas, enroladas num tubo de cartão, que tinha amarrado um pequeno saco de pólvora com rastilho, tudo isto preso numa cana de foguete. Colocamo-nos perto do local da feira e aí acendi um cigarro. Não se podia acender a mecha diretamente com o fósforo, pois tem de ser uma coisa lenta, até atingir a temperatura certa. Depois, esperei um bocadinho e larguei o foguete. A arte de lançar um foguete está aí, em saber qual é o momento exato para o largar antes que nos estoure nas mãos. Não se explica, sente-se. Bom, larguei-o e ele … ZUKT! Lá foge, a subir em grande curva, que nem um foguete! De repente explode no ar … e milhares de papelinhos começam a cair em cima da multidão que enchia a feira. Foi um sucesso. O Zé Mouga foi-se embora a correr e eu toca a andar depressa a misturar-me com a multidão, a gozar o espetáculo. Quando a polícia chegou já muita gente tinha lido os panfletos. Só tornei a ver esse jovem dois ou três anos depois, quando ele também entrou para as Belas Artes. Veio a ser um pintor muito conhecido. Infelizmente faleceu sem nunca mais nos tornarmos a ver.
Mas a parte mais emocionante da nossa luta talvez tenham sido as noites do Porto, em 1960, em que andava a pintar paredes com uma colega, em pleno inverno, ambos com uns enormes casacões que escondiam um balde de nitrato de prata e pincéis. Íamos muito juntinhos, com mais dois colegas que ficavam nos dois extremos da rua a vigiar. Com esse produto pintávamos frases invisíveis denunciando o regime. Só quando o sol nascia é que as letras se tornavam visíveis: era a magia do nitrato de prata. Se algum dos colegas assobiava a avisar que alguém se aproximava, escondíamos balde e pincel, e abraçávamo-nos como se fôssemos namorados apaixonados. Que, aliás, éramos. Essa colega é, ainda hoje, a minha companheira na luta diária pela vida – que começa a esmorecer, pois já passaram sessenta anos desde então.
Antologia – O 25 de Abril de 1974 – Testemunhos da luta pela Democracia e pela Liberdade, Lisboa, Edições Colibri, 2020, pp. 79-81.