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 O ‘Inverno’ das Mulheres e das Crianças numa noite de Verão 

José António Martins

Nascido em 1960, Campanhã, Porto.
Filho de um técnico dos telefones e de mãe vendedora no mercado do Bolhão, Porto.
Frequentou a Escola Primária n.º 19, a Escola Preparatória Ramalho Ortigão e o Liceu Alexandre Herculano, no Porto até 1980.
Frequentou Curso de Física na Univ. do Porto (1981).
Oficial Miliciano no Exército, passando pela Escola Prática de Cavalaria (1982), Santarém, Centro de Instrução da Polícia do Exército, em Portalegre (1983 a 1985) e Esquadrão de Lanceiros do Porto (1985-86).
Funcionário bancário de 1986 a 1988 no Banco Comercial Português.
Funcionário do Parlamento Europeu de 1989 a 2018.
Formação em Economia e Gestão na Fac.Economia do Porto, não concluída, Licenciatura em Estudos Europeus e Mestrado em Estudos sobre a Europa na Univ. Aberta.
Doutorando em Agronegócios e Sustentabilidade na UTAD e UÉvora com trabalho no domínio da determinação do Balanço Ambiental, Económico e Social da Viticultura.
Co-autor do livro ‘Navegador de Recreio’ (2002), já na 5.ª edição (2022).
Gere uma exploração vitícola em Mesão Frio, Região Demarcada do Douro, coopera com a ProDouro onde participa em projectos de investigação ligados à sustentabilidade económica da viticultura com a UTAD. É perito nacional da OIV – Organização Internacional do Vinho e da Vinha.


O ‘Inverno’ das Mulheres e das Crianças numa noite de Verão 

Era uma noite de Verão, em 1972, daquelas de ‘ananazes’ como dizia o Eça. Casas num bairro operário com parcas condições de habitabilidade, essencialmente ‘Ilhas’, na zona das Antas, Porto, convidavam a sair delas e vir para a rua apanhar fresco. Nesse dia, os pequenotes (cerca de uma dúzia, com idades entre os 8 e os 12 anos) e as Mães, como de costume, vieram para o jardim (antiga Praça Velasquez, actual Praça Francisco Sá Carneiro, no Porto) onde se apresentava uma área de relvado. Ninguém podia chegar-se ao relvado, mas, os pequenotes com uma bola manhosa, decidiram fazer uma partida de futebol no esplendor da relva. Seriam umas nove da noite. 

Não passou meia hora e um grupo de polícias da esquadra das Antas, chegaram, cercaram o relvado, apreenderam a bola e os pequenotes (os rapazes, porque as meninas não jogavam à bola)! As Mães, aflitas, seguiram o cortejo da polícia com os ‘detidos’ até à Esquadra (distava cerca de 500m do jardim), que ficava junto à Igreja das Antas. 

Lembro-me da algazarra e choro da Mães e ‘autoridade’ dos polícias para com tais ‘meliantes’. Percebida a situação, identificada a ‘maralha’, as Mães debandaram à procura dos maridos, pois só eles podiam resgatar os filhos do ‘cárcere’. Mãe não tinha direito a responsabilizar-se pelo filho quando estava sob custódia do Estado (assim lhes foi dito!). 

Aos poucos, os Pais lá iam chegando e recuperando a sua prole, sempre com um grande e ameaçador raspanete policial à mistura. 

Fui o último a sair. O meu Pai trabalhava por turnos e naquele dia só chegava a casa pela meia-noite e meia. A minha Mãe esperou por ele na paragem do autocarro para atalhar o tempo para chegar à Esquadra. O meu padrinho, irmão do meu Pai, entretanto também foi avisado e fez parte da equipa de salvamento, mas, assim como a minha Mãe, não pode entrar na Esquadra pois ‘não tinha nada para lá fazer’! 

Dentro da Esquadra o meu Pai abraçou-me e deu-me um beijo e perguntou se aqueles senhores me tinham feito algo mal (gritar, bater, etc.). A pergunta, aparentemente, gerou mal-estar nos polícias, mas ficou por ali. Assinou um papel e despediu-se dos polícias com um: “Boa noite a todos e se possível com a consciência tranquila.” 

Saí da Esquadra pela uma e trinta da manhã (avisava o Sino da Igreja). Resumindo, estive ‘detido’ numa Esquadra da Polícia de Segurança Pública, pelo ‘delito de jogar à bola no jardim’, cerca de 3,5 horas, numa noite de Agosto em 1972, tinha 11 anos. Tive sorte, pois por vezes o meu Pai fazia turnos duplos e, se assim tivesse ocorrido, só seria libertado pelas 09h00, o que daria mais de 12 horas de detenção! 

O episódio, nos dias que se seguiram, serviu para várias conversas ao jantar sobre a situação política em Portugal. Eu não percebia mais de metade do que o meu Pai dizia, mas serviu para a minha formação e tomada de consciência política que o episódio que vivi – impedir uns miúdos de jogar à bola num jardim e impedir uma Mãe de assumir a responsabilidade pela libertação do filho menor detido -, era apenas a ponta de um imenso icebergue de incongruências e malfeitorias que os cidadãos tinham de enfrentar no seu cotidiano. 

Hoje, qualquer ‘pequenote’ pode jogar à bola naquele jardim, pena que o espaço de relva não seja não aberto para o jogo como o daquele tempo. No entanto, têm muito mais locais onde o podem fazer e nós só tínhamos aquele. 

Mas, que importam as limitações ao jogo da bola num relvado de um jardim público, quando hoje, as Mães têm a plenitude dos direitos sobre os seus filhos ?! 

José António Martins, Mesão Frio, 04/06/2024 

#50anos25abril