A Democracia é uma prolífera produtora e voraz consumidora de papéis e a cultura democrática é uma cultura da escrita e da leitura. Como sistema que institucionaliza e depende de mecanismos de reflexão e ajustamento legislativo, multiplica os papéis como meio para pensar, reivindicar e operar qualquer mudança: das petições, requerimentos, estudos de opinião, levantamentos, censos, actas e relatórios, ao texto autoritativo com força de lei.
Formam-se especialistas na colecção, leitura e escrita de documentos democráticos, criam-se manuais de estilo, escolas e precedentes para os seus símbolos e semânticas. Multiplicam-se os panfletos, os cartazes, os jornais e os livros. A democracia cria bibliotecas e preserva arquivos, mas também tem os seus textos restritos, censurados, excluídos, contra-canónicos e marginais, pois prosperam também os seus críticos. A cultura escrita da democracia é inseparável da liberdade de expressão, da polifonia de vozes e da pluralidade de opiniões.
Que as democracias precisam de cidadãos informados é um truísmo recorrente, mas igualmente necessitam de leitores e escritores. Saber ler e escrever é condição necessária tanto para os democratas como para o seu sistema. Participativa ou deliberativa, a prática da democracia materializa-se nos textos e nas escritas que tanto sustentam a técnica e a arte de governar como operam a sua capacidade de pensar a sociedade para que ela se governe. O seu denominador mínimo é o metonímico boletim de voto, onde se lê e se escreve. Para exercer o direito de voto, apresentamos um cartão que demonstra que somos quem somos e damo-lo a ler a terceiros, em quem confiamos que confirmem independentemente a nossa ontologia em cadernos e nos proclamem em voz alta.
A despeito da progressiva imaterialidade dos processos de produção e consumo documental inerentes ao regime democrático moderno, o papel continua a ser de tal forma central e angular no sistema democrático como suporte da validação e veracidade de testemunho e informação, que, por vezes, se impõe acima da voz do próprio cidadão, com uma estranha certeza ontológica. Trata-se do atestado, do certificado, do diploma, da factura, com o duplicado e o triplicado, enfim, a cópia em papel. No agregado, a Democracia acumula e categoriza documentação, e o seu acesso é tido como de fundamental justeza. Estar entre o cidadão e o depósito dos documentos que lhe dizem respeito é um “pequeno poder”.