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Um soldado pela Democracia

Carlos Amado

Nascido a 30 de dezembro de 1953, na Freguesia de Cedofeita, Concelho do Porto, concluiu o curso de Preparadores para Laboratórios de Saúde Pública em 1977, tendo-lhe sido reconhecida a titularidade do grau de bacharel em Análises Clínicas e Saúde Pública em 2022. Em 2005, concluiu o 2.º Ciclo da Licenciatura Biepática em Análises Clínicas e Saúde Pública e em 2008 concluiu a Pós-Graduação em Economia e Gestão em Serviços de Saúde, na Universidade Fernando Pessoa.

Exerceu também funções de Dirigente Sindical no Sindicato dos Técnicos Paramédicos Norte/Centro, no Sindicato dos Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica e no Sindicato Nacional dos Profissionais de Farmácia e Paramédicos; de representante das Associações Sindicais no Conselho Regional de Segurança Social de Braga; de redator na Revista de Atividades Paramédicas “O Técnico Paramédico”, de Vice-Presidente para a Europa da ASSITEB, entre outras.

Um Soldado pela Democracia

INTRODUÇÃO

Ao passar a escrito as minhas vivências do 25 de Abril de 1974, se me impõe relembrar o trajecto pessoal de ganho de consciência que vivi, num regime que promovia a diferença não o mérito, que não respeitava a diferença de opinião e usava a força policial por falta de razão.

Tem isto a ver com a minha estupefação, em 1963, quando aos 10 anos o meu melhor amigo da Escola Primária não ia fazer o exame de admissão (como era obrigatório na altura) aos Liceus ou Escolas Técnicas….

Com dificuldade para que aceitasse, a explicação era simples era filho de um mecânico e por isso não ia continuar a estudar, iria sim trabalhar!

Em 1969, já com 16 anos e frequentando o Liceu Alexandre Herculano, no Porto, fiz a minha primeira greve no apoio dos Liceus à luta dos estudantes da Universidade de Coimbra e, logo no dia em que o fascista Ministro da Educação José Hermano Saraiva visitava o Liceu, convencido que teria saudações efusivas dos estudantes, tanto mais que o Reitor Martinho Vaz Pires era Deputado do Partido Único.

Os finalistas do Liceu, “mandaram” todos os alunos para o pátio (pois na época o código era obedecer sempre aos finalistas) recusando irmos para as aulas.

O pátio do Liceu era ao nível do r/c e no topo do mesmo existia uma passagem, ao nível do 1º andar, de uma ala para a outra e, foi aí que o Ministro com a sua verborreia com que anos mais tarde ficou conhecido pela TV num programa pretensamente de História, instou os representantes dos finalistas a irem falar com ele, que se comprometia a dar satisfação às reivindicações.

Erro fatal, pois os mesmo ao aceitarem o convite e, após breve troca de palavras foram de imediato metidos num carro da PIDE e levados para a sua Sede, no Porto, poucos metros abaixo do Liceu….

Só semanas depois os voltamos a ver, com ar sofrido e com o cabelo cortado à escovinha, prenúncio da incorporação forçada no exército!

Se o regime julgava que nos amedrontava, teve o efeito contrário e, por passa palavra começamos a frequentar as manifestações contra o regime em aliança com os estudantes da Universidade do Porto, mau grado as constantes investidas da Polícia de Choque da PSP e das Cargas de Cavalaria e saibradas da GNR, manifestações essas a que também os trabalhadores se associavam.

Por isso fiquei muito mais desperto, para as movimentações que em 1969 e 1973 tiveram lugar com as candidaturas da Oposição, bem como a luta que os Bancários exerceram e que acompanhei de perto, por o meu Pai ser bancário.

É, pois, com este “passado” que, após ter chumbado em oral (algo pouca habitual) no meu 7º ano dos Liceus, tenho como caminho a incorporação no Exército.

A 13 de Janeiro de 1974, após ter sido impedido de continuar estudos, sou incorporado no Exército e encaminhado para o Curso de Sargentos Milicianos, que era ministrado no Regimento de Infantaria n.º 5 nas Caldas da Rainha, para a Instrução Básica.

Este 1º Turno de Instrução era, na sua maioria composto por jovens que como eu viam interrompidos os seus estudos, com já alguma consciência social, mas politicamente não organizados, e em conversas com os nossos instrutores era bem visível que ninguém acreditava já numa vitória militar, tanto mais que em Setembro de 1973, a Guiné-Bissau tinha proclamado a independência e o efeito dominó não demoraria a se fazer sentir.

A 14 de Março, tivemos conhecimento pela comunicação social que o Governo demitiu os Generais António de Spínola (o qual tinha publicado o livro “Portugal e o Futuro” onde claramente afirma “resta apenas uma via para a solução do conflito e essa é eminentemente política, a vitória exclusivamente militar é inviável”) e, Costa Gomes, que autorizou a publicação do livro e que chefiava o Estado Maior General das Forças Armadas, por não terem comparecido a uma convocação das lideranças militares, que ficou chamada de “Brigada do Reumático”.

A 15 de Março, quase no fim da Instrução Básica, foram todos os Milicianos sujeitos a vacinação, a qual jocosamente lhe chamávamos “dose de cavalo” e por isso teríamos direito a um fim de semana prolongado.

Estranhamente, nesse dia com todo o Batalhão formado na Parada, para receber o novo Comandante do Regimento, constatamos a presença de inúmeros oficias que não conhecíamos e, todos armados o que não era costume com os oficiais e sargentos que nos davam a instrução.

Como íamos ter um fim de semana prolongado (de 5ª feira a 2º Feira), e tendo namorada em Braga (morava naquele tempo no Porto), vim nesse dia directamente para Braga, como o coração mandava….

No dia seguinte (16 de Março) já em Braga, tive conhecimento pela comunicação social que o meu Regimento se sublevara e tinha marchado para Lisboa, como rezam as crónicas da altura.

“Na madrugada de 16 de março de 1974, uma coluna de cerca de duas centenas de soldados comandada pelo Major Armando Ramos saiu do Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, e tomou a estrada a caminho de Lisboa. O seu objetivo era derrubar o governo de Marcello Caetano, para o qual esperava o apoio de outras forças militares, nomeadamente de Lamego, Mafra e Vendas Novas.” (sic).

“A marcha prosseguiu até às portas da capital, quando foram informados de que nenhuma daquelas unidades tinha iniciado qualquer movimentação. Perante este cenário, foi decidido abortar o golpe e regressar ao quartel. Foi só depois de chegarem às Caldas que foram cercados pelas forças fiéis ao regime, vindas de Leiria e de Santarém. Pelas 5 da tarde, e após várias horas de negociações, os revoltosos renderam-se.” (sic)

Os participantes na movimentação foram detidos e levados para a prisão da Trafaria, enquanto outros elementos do Regimento foram transferidos para outras unidades militares. Chegava assim ao fim a insurreição que ficou conhecida como “levantamento” ou “intentona das Caldas”.

Também pela comunicação social (não havia telemóveis na altura…) fomos informados que os Milicianos deveriam aguardar ordem de regresso ao quartel, o que veio a acontecer passado cerca de uma semana.

Regressados ao quartel, deparamo-nos com um dispositivo de novos graduados, cuja primeira missão foi (antes de passarmos os portões) fazer uma minuciosa busca a bagagens e roupa vestida.

O Capitão da minha Companhia de Instrução (CapitãoNovo) tinha sido preso e encontrava-se na prisão da Trafaria bem como os Sargentos Milicianos que connosco tinham privado e, por boca a boca começou a germinar a ideia de “fazer greve” à Instrução, o que foi logo do conhecimento do novo Capitão e Sargentos Milicianos.

Qual não é o nosso espanto, quando o próprio Capitão e os Sargentos Milicianos, nos dizem em Instrução, fora do quartel, que haveria em breve um novo golpe e esse seria para valer, tanto mais que ele já não ia a casa com medo de ser preso pela PIDE!

De igual modo, o Alferes e Sargentos Milicianos nos garantiram que o melhor era não fazer “ondas” e esperar, chegando ao ponto de o Alferes nos dizer que tinha dupla nacionalidade portuguesa e venezuelana, mas que veio para a tropa por indicação do Partido Comunista para ajudar à Revolução!

Claro como o Povo diz “quando a esmola é grande o povo desconfia”, esta abordagem só nos fez pensar: “aqui estão bufos da PIDE para apanhar alguém…”.

O que fez a Companhia mudar de postura, foi a vinda da esposa do NOSSO Capitão Novo (preso), agradecendo a solidariedade que estávamos a demonstrar, mas afirmando que o melhor era “deixar correr” pois dentro de um mês o marido seria libertado por um vitorioso movimento militar.

Com todos estas dados em cima da mesa, o resto da Instrução correu sem mais sobressaltos, até o seu término em princípios de Abril, tendo sido mandado apresentar a 18 de Abril no Hospital Militar Principal (em Lisboa), para iniciar a minha especialidade como Enfermeiro Militar.

Os acontecimentos como os vivi no dia 25 de Abril de 1974 e seguintes em Lisboa

Como referi, apresentei-me no Hospital Militar Principal situado na Estrela em Lisboa e fomos colocados, em aquartelamento no Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro, ao Campo de Ourique ali bem perto, portanto.

Como a nossa especialidade não era combatente, só voltávamos a segurar a espingarda de combate G3, quando tínhamos formatura.

No dia 25 de Abril, fomos acordados no fim da madrugada (perto das 5 horas), mandados formar com a nossa G3 na parada e aí aguardamos, com os restantes elementos do Batalhão, a vinda do Comandante que nos informa que estava em marcha um levantamento militar pelo MFA (Movimento das Forças Armadas), para derrubar o governo e instituir um regime democrático. Pergunta se alguém se quer escusar a participar e ninguém sai da formatura!

Como não eramos um Batalhão combatente, seriam distribuídos carregadores de balas para a G3, mas iriamos aguardar ordens do Posto de Comando para a missão que nos seria distribuída, ficando desde logo o Batalhão em prevenção rigorosa.

Com o raiar do dia e, com a comunicação social a emitir os primeiros comunicados do MFA que vinham confirmar que o golpe tinha raiz democrática, foi para nós um alívio saber que estávamos do lado certo da história, porque muito se especulava da iminência de um golpe da extrema direita promovido pelo General Kaulza de Arriaga com a conivência e apoio do Presidente da República Américo Tomaz.

Com a certeza que desta vez, era possível acabar com um Regime Fascista que já durava há 48 anos, os populares que viviam em Campo de Ourique aproximavam-se dos portões do quartel e, sabendo que estávamos com o MFA não demorou muito a sermos “inundados” com cigarros, sandes, bebidas e, pelas grades, de alguns beijos das lindas lisboetas….

Finalmente, pois estar dentro do quartel quando era na rua que tudo se passava, e “desesperávamos” por sair, foi-nos atribuída a primeira missão pelo Posto de Comando do MFA: substituir as forças da Escola Prática de Cavalaria que tinham ocupado o Quartel General da Legião Portuguesa e fazer a segurança ao mesmo.

Convirá só recordar que a Legião Portuguesa foi criada em 1936 à semelhança de Movimentos do Fascismo Alemão e Italiano. Era o instrumento da ditadura portuguesa com vista ao enfraquecimento do exército, dando margem de manobra às grandes reformas a operar na instituição militar.

Mais uma vez o Povo de Lisboa, veio ao nosso encontro, com alegria de quem sabia que era um tempo novo que começava e, mesmo sendo naquela altura o Bairro Alto um local de boémios, marginais e “meninas da vida”, a emoção de todos uniu-nos fraternalmente.

Aí estivemos dois dias e, se do nosso quartel vinham as refeições a determinada altura era mais a comida que nos era trazida, pela população do Bairro Alto, do que aquela que podíamos comer, sempre com a frase “tenho lá fora (guerra colonial) o meu marido/filho obrigado porque ele assim vem”, começava naturalmente a exigência do fim da Guerra Colonial!

Depois desta primeira missão, foi-nos atribuído a segunda missão que consistiu no papel de Vigilância e Segurança dos Reservatórios de Água de Lisboa durante a noite, porque começaram a circular informações que forças afectas ao fascismo poderiam executar acções de sabotagem. Se esta missão não era tão grata como a primeira, devido `a quase ausência de contacto com os civis, mesmo assim alguns mais notívagos foram essenciais para ajudar a controlar movimentações que fossem suspeitas, não tendo sido concretizada nenhuma ameaça.

A terceira missão que nos foi atribuída, foi a de substituir a Companhia da Carreira de Tiro da Serra da Carregueira, que na madrugada de 25 de Abril tinha ocupado os Estúdios da Emissora Nacional (EN), à Rua do Quelhas.

Já com a situação militar controlada, cabia-nos zelar pela integridade das instalações e manter a sua segurança, pois de alguma maneira poderiam existir golpes de mão de forças militares ou militarizadas afectas ao regime fascista para tentar destabilizar, dado que ninguém acreditava que elementos quer da Polícia Política, da GNR e mesmo forças da Marinha de Guerra ou da Força Aérea (tão neutrais ou oportunisticamente imobilistas) não tentassem reverter a situação.

Aqui uma palavra de apreço a todos os funcionários da então Emissora Nacional, hoje RDP (Rádio e Difusão de Portugal), que connosco colaboraram tornando a nossa estadia, não numa ocupação militar, mas sim na partilha do seu dia a dia, de que são marcas o acesso ao bar dos profissionais onde se recusavam a receber o pagamento pelo que consumíamos, quer na sua cantina, mau grado mais uma vez, o nosso Batalhão nos enviar as refeições.

Mas esse tratamento era também dado pelo Povo de Lisboa, pois mal a nossa Companhia chegou aos estúdios da Emissora Nacional, uma Comissão de Mulheres do Bairro (assim se intitularam) vieram ter connosco a perguntar o que queríamos para o almoço e jantar.

Não adiantou dizer que as refeições viriam do Batalhão, e, logo disseram: então bife com batatas fritas…. Convirá dizer que este menu, em 1974, era um top!!!!

Estando de sentinela no varandim da Emissora Nacional, passa uma Mãe de Família carregada com as suas compras em direcção a casa. Sem querer, o meu olhar fixa-se numas belas maças que vinham no topo do saco (convirá referir que gosto muito de maças) e, tal olhar não passou despercebido….

Pergunta imediata: vocês gostam de maças?

E antes que pudesse responder começou a atirar as maças do saco até não sobrar nenhuma dizendo: Viva o 25 de Abril!!!!

Continuei o meu Serviço Militar, primeiro no Hospital Militardo Porto e depois no Quartel General de Coimbra, passando os momentos graves de tentativas de regressão ao espírito do 25 de Abril como o 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975, da responsabilidade de António de Spínola e das forças reacionárias à democracia, terminando com o 25 de Novembro de 1975 no qual os elementos moderados do MFA, colocaram um ponto final a tentativas conotadas com a extrema esquerda militar e civil, instrumentalizados por uma direita que começava a aparecer……..

Em Dezembro de 1975, passei à disponibilidade, deixando, pois, de ser militar, mas, sempre um Soldado pela Democracia.

Termino partilhando, um poema de Manuel Alegre, que penso que resume em tão poucas palavras, o que realmente foi e será sempre o 25 de Abril:

ABRIL DE SIM ABRIL DE NÃO

Eu vi Abril por fora e Abril por dentro

vi o Abril que foi e o Abril de agora

eu vi Abril em festa e Abril lamento

Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir

vi o Abril de sim e Abril de não

Abril que já não é Abril por vir

e como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde

Abril que foi Abril e o que não foi

eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)

Abril de Abril despido (Abril que dói) Abril já feito.

E ainda por fazer.

#50anos25abril