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Abril na Rádio

Vitor Ferreira

Alferes Miliciano 13890872 (para os autóctones “Arferi Cocuana”)

Abril na Rádio

O ambiente andava mais calmo.

Finalmente tinham mandado embora aquele brutamontes, mal formado e a quem éramos obrigados a chamar de capitão.

Agora tinham enviado um senhor, já com uma certa idade, mas que, para além de ser ou antes de ser capitão (CAPITÃO PINA) era um Homem.

A idade avançada para o posto dava origem a especulações (que era formado superiormente, e a quem, por razões políticas, tinham cortado as dispensas e enviado para a tropa… que tinha andado fugido e que tinha sido apanhado etc., etc.)

As operações de quadrícula decorriam normalmente, embora sentíssemos cada vez maior o atrevimento da Frelimo (o número de operações deles aumentava em número e qualidade, a influência na população também)

Curioso para mim começou a ser a súbita propensão para que o capitão fizesse cada vez mais frequentemente a sua sesta.

 Por outro lado, falando com o pessoal de comunicações, fiquei a saber que o “nosso” capitão tinha-lhes pedido uma antena dipolo (do Racal) e ao refeitório dos soldados o “tijolo” (nome carinhoso como eram tratados os rádios tipicamente africanos, com um tamanho descomunal)

Tinha-lhes dito que era para poder ouvir música clássica, o que, aliás não só batia certo com o perfil do homem, todo ele intelectualidade, como também ao que se ouvia, por oposição, nas rádios da Rodésia (rock and roll britânico e americano, actualizadíssimo às “charts” anglo-saxónicas, com músicas que, na cinzenta e antiquada metrópole, ou seriam proibidas, ou chegariam cinco a seis meses depois, ou apenas seriam ouvidas no saudoso “Em Órbita”…)

Eu é que não acreditei neste cenário. Para mim, o homem sabia mais do que dizia, e valia muito mais do que aparentava, naquele seu ar de capitão- avô.

E passei a fazer a sesta, sempre que estava no quartel.

Dada a falta de privacidade das instalações, mesmo a nível de oficiais, não era difícil ouvir o que se passava ao lado…

E, sem espanto, passei a ouvir todos os dias, os noticiários da metrópole, em tempo real, e não em diferido pela Rádio Moçambique…

Se a memória não me falha, no dia 26 exultámos com as notícias. A revolução estava em marcha lá em Lisboa. Era agora, finalmente!!!!

Quando a notícia se espalhou, houve reacções as mais díspares: desde os que pulavam porque iam embora já amanhã (Oh santa inocência), aos que receavam pelos seus lá na terrinha, aos que esperavam que a Frelimo também soubesse da notícia e parasse com a guerra…

Para mim, a reacção que mais registei foi a do PIDE que, passados dias, se dirigiu a mim, de sorriso aberto, como que a querer um “venha de lá esse abraço”.

A minha cara deve tê-lo dissuadido, balbuciou qualquer coisa do tipo “as coisas lá por Lisboa estão um bocado alteradas” e eu, revoltado, mas ainda militar, embora miliciano, ripostei:

– Sim, parece que os seus colegas lá de Lisboa já não vão poder esperar-me na Portela para me levarem para a Antonio Maria Cardoso, como V. me tinha dito… agora, quando for daqui embora, vou para a minha família, vou casar-me, ter filhos e tentar trabalhar, e não me vai acontecer o mesmo que V. fizeram ao meu avô Paulino, certo, Sr. agente??? Ah, e já agora, a partir de hoje, finja que não me vê já que, para si, eu deixei de existir enquanto dossier de trabalho.

Passados cerca de 2 meses, recebemos uma NEP do MFA em que relatavam em resumo o que se tinha passado (não me lembro se falava em golpe militar ou revolução) e esta parte foi a que mais me marcou, “os agentes da PIDE continuam operacionais, embora na situação de apresentados às companhias”)

Nesse dia pressenti que nem tudo ia correr bem.

Quarenta anos depois sei que tinha razão no meu pressentimento.

Por isso, continuo a preferir lembrar aquele dia 26 em que ABRIL chegou pela RADIO.

#50anos25abril