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Salazar já não governava, mas Portugal continuava a ser uma ditadura fascista quando Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa escreveram as Novas Cartas Portuguesas, uma frontal denúncia da situação política e social das mulheres, mas também uma original obra literária coletiva.

Em abril de 1972, as autoras, que ficaram conhecidas como “as três Marias”, pagaram caro a “ousadia”, tendo mesmo sido levadas a tribunal, num julgamento que só viria a terminar uns dias depois do 25 de Abril de 1974.

A obra e o que ela desencadeou – que se assinala como a “primeira causa feminista internacional” – são, ainda hoje, motivo de projetos de estudo e investigação, em Portugal e no estrangeiro.

 

 

O Livro

Novas Cartas Portuguesas – “ou de como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores” – é um livro escrito a três, sob o compromisso de as autoras nunca revelarem a autoria individual dos textos.

A obra foi editada em abril de 1972 pela Estúdios Cor, então com direção literária de Natália Correia, que, instada a cortar partes da obra, insistiu em publicá-la na íntegra.

Contestando o poder e a ordem patriarcal e denunciando a condição das mulheres, e também a guerra colonial e o sistema judicial, o livro foi proibido pela censura, que o catalogou como imoral e pornográfico. As três autoras e o editor, Romeu de Melo, foram acusados e levados a tribunal.

 

 

O livro aborda questões que se mantêm relevantes na agenda política contemporânea, como a guerra, os conflitos e a violência, a desigualdade e a discriminação, a (falta de) liberdade, a colonização, as migrações, a ordem patriarcal e a sexualidade feminina.

Além disso, as Novas Cartas Portuguesas são consideradas uma obra inovadora, que questiona também as convenções literárias.

Composto por 120 textos (incluindo cartas, poemas, relatórios, textos narrativos, ensaios e citações), o livro foi escrito coletivamente pelas três autoras, que não assinam individualmente qualquer um dos textos, mantendo o mistério em torno da autoria.

 

 

As Autoras

Cada uma das autoras das Novas Cartas Portuguesas havia publicado antes alguns livros com um caráter político, que, nomeadamente, desafiavam os papéis sociais atribuídos às mulheres durante a ditadura (exemplos: Maina Mendes, 1969, de Maria Velho da Costa; Os Outros Legítimos Superiores, 1970, de Maria Isabel Barreno; Minha Senhora de Mim, 1971, de Maria Teresa Horta).

Para a escrita em conjunto das Novas Cartas Portuguesas, as autoras partiram do romance epistolar Lettres Portugaises, publicado anonimamente por Claude Barbin, em 1669, e apresentado como uma tradução, anónima também, de cinco cartas de amor de Mariana Alcoforado, jovem freira enclausurada no convento de Beja, dirigidas a um oficial francês.

 

 

Maria Isabel Barreno (1939-2016)

Maria Isabel Barreno de Faria Martins nasceu em Lisboa, a 7 de outubro de 1939. Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, trabalhou no Instituto Nacional de Investigação Industrial e, mais tarde, no Instituto de Estudos para o Desenvolvimento.

Autora premiada de ficção, crónicas e ensaios, trabalhou como chefe de redação da edição portuguesa da revista Marie Claire. Em 2004, foi condecorada como Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.

 

Maria Teresa Horta (1937-)

Maria Teresa de Mascarenhas Horta nasceu em Lisboa, a 20 de maio de 1937. Proveniente de uma família aristocrata (descendente da Marquesa de Alorna), frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa, dirigiu o ABC-Cine Clube nos anos 1960/70 e trabalhou como jornalista em vários órgãos de informação (jornal A Capital, revista Mulheres, Diário de Notícias, Diário de Lisboa, O Século, República, Seara Nova, Vértice).

É autora de uma extensa e premiada obra literária, sobretudo poética.

Em 2004, foi condecorada como Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique e, em 2014, recebeu o Prémio Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores.

 

Maria Velho da Costa (1938-2020)

Maria de Fátima Bívar Velho da Costa nasceu em Lisboa, a 26 de junho de 1938. Licenciada em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa, trabalhou no ensino público e privado e foi funcionária do Instituto Nacional de Investigação Industrial e leitora do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros do King’s College, na Universidade de Londres, entre 1980 e 1987. Integrou a Associação Portuguesa de Escritores entre 1973 e 1978, desempenhando os cargos de membro da direção e de presidente.

Foi adjunta do secretário de Estado da Cultura em 1979 e adida cultural em Cabo Verde (1988-1991), tendo também integrado a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.

O conjunto da sua premiada obra inclui romances, crónicas, contos, argumentos para cinema. Em 2002, foi distinguida com o Prémio Camões e, em 2011, recebeu a condecoração de Grande Oficial da Ordem da Liberdade.

 

 

O Julgamento

A primeira edição das Novas Cartas Portuguesas foi recolhida e destruída pela censura três dias após ter sido lançada e a ditadura de Marcello Caetano instaurou um processo judicial contra as três autoras por terem escrito um livro de “conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”.

As três autoras foram sujeitas, separadamente, a interrogatório da PIDE/DGS e recusaram-se a revelar quem havia escrito o quê (recusa que mantiveram sempre). O julgamento iniciou-se a 25 de outubro de 1973, mas foi sendo adiado por sucessivos incidentes, até ser suspenso após a revolução de 25 de Abril de 1974.

 

 

 

 

O Impacto Internacional

Banido pela censura em Portugal, o livro foi publicado na Europa e nos Estados Unidos, sendo, ainda hoje, uma das obras portuguesas mais traduzidas em todo o mundo. A apreensão do livro e o processo instaurado às três autoras provocou uma onda internacional de apoio, inédita no contexto da ditadura portuguesa.

 

 

Fotografia: “Manifestação em Nova Iorque a favor das “Três Marias” | ANTTT | 17 maio de 1974

Figuras ligadas ao feminismo e à literatura mundiais, como Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing, Iris Murdoch ou Stephen Spender, lideraram uma campanha de solidariedade para com as ‘Três Marias’.
Foram regulares os protestos e as manifestações (nomeadamente junto das embaixadas de Portugal no estrangeiro) em defesa das autoras das Novas Cartas Portuguesas, ampliados pela cobertura de prestigiados meios de comunicação internacionais.

 

 

2022, os 50 anos da “Novas Cartas Portuguesas”

Os 50 anos da publicação do livro são o pretexto para uma alargada homenagem, integrada nas comemorações oficiais dos 50 anos do 25 de Abril, que inclui:

 

 

De Cravo ao Peito

O livro «Novas cartas portuguesas» foi proibido pelo Estado Novo, em Abril de 1972. Cinquenta anos depois folheamos as páginas da libertação da mulher numa obra considerada «pornográfica e atentatória da moral pública».

 

 

#50anos25abril