Na passagem do ano de 1968 para 1969, depois da missa presidida na Igreja de São Domingos, em Lisboa, pelo Cardeal-Patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira, um grupo de leigos anunciou a intenção de permanecer em vigília no interior do templo. No documento que então apresentaram, denunciaram o “compromisso político da Igreja frente ao Estado”, condenando a nota pastoral dos bispos portugueses sobre a celebração do Dia da Paz, na qual se referiam aos “povos ultramarinos” que integravam “a Nação Portuguesa”.
A vigília, que se prolongaria até às 6 da manhã de 1 de janeiro de 1969, envolveu mais de uma centena de fiéis. Traduziu-se numa manifestação pública coletiva contra a Guerra Colonial e procurou enquadrar-se na decisão de Paulo VI de que o primeiro dia do ano fosse comemorado como Dia Mundial da Paz. Ao longo da noite, discutiu-se a guerra na Guiné, Angola e Moçambique.
Sophia de Mello Breyner escreveu propositadamente para essa noite a Cantata da Paz («Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar»), musicada por Francisco Fernandes e cantada por Francisco Fanhais. Estiveram presentes Nuno Teotónio Pereira, Francisco de Sousa Tavares, Vítor Wengorovius, Luís Moita e Catalina Pestana, entre outras personalidades.
Nos dias seguintes, assistiu-se a uma dura troca de palavras entre o Patriarcado – que publicou uma nota condenando o «carácter tendencioso» da vigília e a «confusão, indisciplina e revolta» que tais manifestações alimentavam – e os participantes na vigília.
“Cantata da paz”
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
D’África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado
Poema de Sophia de Mello Breyner Andersen