Skip to main content

A Praça da Sé

Nascido em 1957, natural de Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, Portugal.

Concluiu os estudos liceais em Bragança (1974) e licenciou-se em engenharia no Porto (1980)

É colaborador regular da imprensa regional do nordeste transmontano e escritor Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia), A Morte de Germano Trancoso (Novela), Canto de Encantos (Contos) A Formosa Pelicana (Romance) e Auto da Violante Gomes (Teatro)

Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.

Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes É membro da Associação Portuguesa de Escritores e Vice-Presidente do PEN Clube Português.

É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.

 

A Praça da Sé

Naquele tempo, a Praça da Sé era o centro do mundo!

Vindo da reclusão do Seminário Menor de Vinhais, chegar à Praça da Sé, pelo menos uma vez por semana, mesmo que a partir do Seminário Maior de Bragança, representava uma lufada de liberdade, apesar de mitigada, restrita e controlada. Em linha com a “primavera marcelista” anunciada após a célebre queda da cadeira no Forte de Santo António, no Estoril e fomentada, intramuros, pelas notícias que chegavam das “liberdades” aprovadas e recomendadas pelo Concílio Vaticano II.

Em ambos os casos o sonho voou mais célere, mais alto e mais ambicioso que a realidade.

Foi aquela praça o lugar de passagem para o outro lado da cidade, com ligeiro acréscimo de emancipação, no internato do Colégio S. João de Brito. A vigilância, mais branda e responsabilizadora não impedia o contacto com outras realidades surpreendentes e quase inverosímeis, vindas de lugares distantes. Muitos dos novos colegas eram filhos de emigrantes e, alguns deles, tinham o privilégio de ir passar as férias de verão a terras de França de onde traziam relatos inacreditáveis, quiçá fantasiosos, da vida quotidiana daquelas distantes paragens. Eram histórias que, apesar das juras de autenticidade por quem as contava, eram vistas, por quem as ouvia, como pouco críveis, no mínimo grosseiramente exageradas. Queriam fazer-nos crer que nos “boulevards” de Paris e de outras cidades e vilas gaulesas, os cidadãos, qualquer um, podia, se quisesse, sem mais nem menos, pronunciar-se, publicamente, contra o Governo da Nação, tecendo-lhe críticas, mesmo que injustificadas e, inclusive, dizer maledicências sobre os políticos e as políticas! Era lá possível? Por cá, nada disso era permitido e, pior que tudo, temia-se que as próprias paredes tivessem ouvidos. Só nos mais recônditos e esconsos esconderijos a boca se atrevia a verbalizar o que o pensamento criava, alimentava e, sigilosamente guardava. Os gauleses, ao que nos diziam, escreviam livros onde abertamente e sem subterfúgios criticavam, se tal lhes aprouvesse, as opções governamentais, as doutrinas estatais e o rumo da nação. Faziam-no sem qualquer entrave e até nos jornais havia colunas abertas à oposição e à livre expressão. Sem barreiras. Sem pressupostos. Em Portugal tudo passava pelo crivo prévio da Censura. Nada se publicava, nada chegava ao conhecimento da população sem o visto dos senhores do lápis azul que cortavam a torto e a direito não só o que, na sua “douta” e “esclarecida” opinião, contrariava a linha orientadora do regime como, inclusive, muito do que não entendendo, por suspeitarem esconder algo “impróprio” era igualmente rejeitado, por perigoso. As próprias peças de teatro levadas à cena pelas comissões de estudantes ou associações recreativas, tinham de estar devidamente autorizadas.

Autorização, era a palavra de ordem, primeira e precedente em toda a vida de então. Eu próprio só nasci porque o Estado assim o permitiu. A minha mãe, Regente Escolar, teve de ser autorizada a casar com o meu pai e este teve de provar ter meios suficientes para suportar a vida familiar de forma autónoma e independente. Casamento que retirou à minha mãe, toda e qualquer independência pois para tudo e para nada (quase nada era permitido às mulheres, nesse tempo) precisava, igualmente, da anuência do marido.

Insistiam os colegas a quem o sacrifício paterno de fuga à miséria através da emigração a salto lhes abria, nos três meses de verão, uma janela para um país que, visto de cá, parecia inventado, que tudo era lá, tão livre quanto natural. Os livros, fossem quais fossem eram lidos nos “autobuses”, sem ter de lhes esconder as capas nem ocultar os autores e os discos não só eram ouvidos por quem e onde lhes apetecesse como reproduziam temas tocados e cantados em praça pública em festivais de verão, mas também em festas e arraiais. E, destes últimos, traziam exemplares que a medo tocávamos em tempos mortos, nas camaratas, em grupos restritos crendo que, por serem cantados em francês eram menos perigosos por serem menos entendíveis que, ao que constava, os “bufos”, sendo diligentes eram pouco dotados, em geral! Mesmo assim foi com alguma emoção que ouvimos o Serge Reggiani a reclamar contra as normas militares de então e que, em surdina repetíamos “Monsieur le Président, je vous fais une lettre, que vous lirez peut-être … je ne suis pas sur Terre, pour tuer des pauvres gens… je m’en vais déserter!”

Desertar!

Como não pensar noutra coisa, quando a guerra no ultramar durava há tanto que parecia não acabar… e onde se consumiam tantas vidas de jovens pouco mais velhos que nós. O que, na minha infância, parecia uma ficção aterrorizadora, trazida nas ondas do rádio que, à noitinha, toda a aldeia se reunia, em casa de quem tinha esses mágicos aparelhos a pilhas (não havia electricidade disponível!) começava a transformar-se numa realidade cada vez mais presente, cada vez mais inevitável, cada vez mais próxima, cada vez mais dura. Em 1973 morreu em Angola um jovem da minha aldeia. Em choque escrevi um poema que publiquei mais tarde e que guardo com tristeza. Titulei-o de “post-scriptum” por ser a linha escrita depois da história (breve) da sua vida ter terminado.

A Poesia era um dos nossos refúgios.

Achávamo-nos poetas porque era difícil exprimir alguns sentimentos em prosa. E também porque as metáforas permitiam dizer o que pensávamos sem ter de o explicitar. Apesar do gosto pela métrica e pela rima que, normalmente conferem musicalidade e sonoridade ao poema (os poemas nascem para serem ditos, mesmo que em silêncio, para serem ouvidos, mesmo que “apenas” sentidos) nessa altura escrevíamos, sobretudo, versos brancos de rima livre “enganando” a opressão constante, presente e sufocante.

Escrevíamos e líamos.

No S. João de Brito, obviamente, mas a partir da Praça da Sé. Era no Café Chave D’Ouro que nos reuníamos para, num canto, discretamente, falarmos de Manuel Alegre, António Gedeão, Aquilino Ribeiro, José Gomes Ferreira e outros que nos entusiasmavam e davam alento à esperança de ver surgir a mudança. Lembro-me bem de quando um de nós mostrou o livro do Artur Portela Filho, “A Funda” embrulhado num jornal, para que não se visse a capa onde um busto com um buraco na testa prometia “estragos” na situação. Os livros eram comprados na Livraria Mário Péricles, a poucas passadas dali e procurados, com cuidado e muita reserva na secção de “culinária”. Eram depois trocados de forma sub-reptícia e com grande discrição. Com os discos era diferente. Não era tão fácil trocá-los e a sua audição requeria maiores cuidados.

Em 1972 comecei a frequentar o Liceu. Novos horizontes se abriram. O universo de colegas e a sua proveniência era maior e, sobretudo, maior e mais diversificado o conjunto de professores. Apesar dos cuidados e cautelas, nunca demasiados, foi notória a existência de um grupo de docentes “desalinhados” com a doutrina oficial que nos davam respaldo e em casa de quem, por vezes, noite fora, ouvíamos o Zeca, o Adriano e outros. Ficou-me gravada, talvez por a ter ouvido vezes sem conta, a impressionante “Grândola Vila Morena” onde o arrastar dos passos que lhe marca o compasso se misturava, quase harmonicamente, com os riscos naturais dos discos de vinil, depois de muito uso. De entre estes sobressaiu o padre Ferreira que nas aulas de Religião e Moral também nos dava lições de civismo e cidadania. Nesse ano viera a Bragança Veiga Simão, o Ministro da Educação, celebrando o quarto centenário da publicação dos Lusíadas. Recebido com pompa e louvaminhandos discursos das autoridades e dirigentes educativos. O padre vermelho, como era apelidado por alguns detractores que afiançavam que nos arredores de Paris, de onde viera, lia mais o Kapital do que a Bíblia, tratou de nos desconfortar, desmontando a hipocrisia de tamanha festa e concordante “plesbicito”. Ora se a poesia é para comer, como nos revelou Natália Correia, facilmente se depreende que se semeada, há-de nascer e dar frutos. Foi o que aconteceu, apesar da “destruição” precoce da geada.

Não podendo atuar livremente, não podendo expressar opiniões sem ser imediatamente impedido, não podendo tomar atitudes que não fosse celeremente cerceadas ficou uma única solução que, com a bênção eclesiástica tratámos de operacionalizar. Parte do grupo estava ainda no S. João de Brito, como semi-internos mas, outra parte tinha-se mudado para a cidade e moravam em quartos da Pensão Machado Cura, junto aos Correios. Coube-lhes a eles comprarem pincéis e tinta e levá-los, à hora marcada, para a entrada do Liceu. Nós esperámos que o silêncio nocturno demonstrasse que o Colégio dormia, sobretudo os prefeitos e demais pessoal de apoio e saímos por uma janela que dava para um terraço de onde descemos por uma escada de madeira “descuidadamente” deixada encostada ao bordo exterior. Passava da meia-noite quando, deixando o nosso café, Zip-Zip para trás e já com as luzes apagadas, nos encontrámos no portão liceal ao fundo da escadaria. Estava destrancado o que facilitou o acesso. Subimos, nervosos e excitados. Havia dois tipos de tinta: uma metalizada mais leve e outra vermelha mais espessa. Não queríamos causar dano permanente, apenas dar conta da nossa oposição à situação e por isso a primeira seria para usar nos vidros da porta de entrada e a segunda para escrever na pedra granítica do chão. Já não me recordo do texto que tínhamos acordado mas sei bem que, na soleira, começámos a pintar, em letras garrafais, a palavra proibida: LIBERDADE! Nos vidros pretendíamos escrever várias frases começadas por “Não”. Não levámos a cabo tal intento! Por razão que nunca foi possível apurar um contínuo do Liceu que, segundo constava, era informador, nunca tendo sido provado posteriormente, mas igualmente nunca tendo sido apurado o contrário, estacionou o carro ao fundo da escadaria pondo-nos, de imediato, em sobressalto. Quando, com uma lanterna de pilhas, começou a subir as escadas em direção ao local onde nos encontrávamos, ficámos em pânico. Num ato de desespero e para que nem tudo fosse perdido, derramámos a lata de tinta vermelha e desatámos a correr na direção das traseiras onde havia outro portão. Que, para nosso azar, estava trancado. Ainda hoje não sei como, quer eu quer os meus companheiros de aventura, saltámos a vedação de um pulo, sem que as pontas de ferro, em forma de lança, nos causassem qualquer rasgo nas roupas ou na pele. Corremos depois em direção à Estação dos comboios e, daí, seguimos pela rua Abílio Beça, até à Praça da Sé, pois então!

Foi na Praça da Sé que ficámos a respirar o nosso quinhão de liberdade, pequeno, minúsculo, pírrico, mas que nos encheu a alma, embora nos desinquietasse o espírito e nos atormentasse a razão. Os externos subiram a rua de novo, em direção aos Correios e nós caminhámos para o outro lado da cidade, ansiosos e receosos. Ao atravessar a ponte sobre o Fervença verificámos, com alívio que no Liceu estava todo o corpo de polícia da cidade (portanto não era possível haver ninguém atrás de nós, naquela altura) e que não sabiam por onde andávamos dado que as manobras de carro, acendendo e apagando as luzes, em diferentes direção, indiciavam que nos julgavam ainda dentro do recinto.

No dia seguinte havia poucos vestígios do que se passara, mas a notícia era comentada à boca pequena. Nenhuma das nossas proclamações vira a luz do dia, mas a semente estava lançada. O grupo “revolucionário” conseguiu nesse ano reivindicar e obter autorização para que a Direção da Academia fosse escolhida por voto direto e universal e que, apesar do apoio institucional à lista que se nos opunha, ganhássemos as mesmas, com larga maioria.

Foi este mesmo grupo que, em 25 de Abril de 1974, ao cair da tarde, depois das aulas e depois de confirmado o golpe militar em Lisboa, veio celebrar para a Praça da Sé. Que, igualmente nos recebeu no Primeiro de Maio desse ano onde no meio de grande festa e uma alegria sem tamanho, subindo ao pelourinho, no meio do largo, em meu nome e no dos que comigo ousaram expressar a sua opinião, na negra noite do fascismo ergui um cartaz de cartolina verde onde, em letras garrafais vermelhas tinha escrito a palavra que, desde o ano anterior estava escondida e incompleta: “LIBERDADE!”

A Praça da Sé foi e é, ainda hoje, para mim, a Praça da Liberdade

Maio de 2023

#50anos25abril