Como se constrói uma conversa entre um Capitão Ambrósio e uma Grândola Vila Morena? A essência do que é ser-se crioulo, no contexto mais cabo-verdiano que poderia haver, facilmente se entende com esta questão e resolve-a com a mesma naturalidade com que Cabo Verde, ao longo da sua história, se foi apropriando de forma quase descarada de múltiplas referências nas mais diversas geografias e foi moldando a sua matriz identitária, num processo que nunca chegará ao fim da estrada. Talvez o resultado mais preciso para sintetizar este espetáculo numa questão temática seja o seguinte: “Poderá um único evento estabelecer valores como a liberdade e a justiça?”. A nossa resposta dramática é um rotundo “não”. Como o explicita a nossa Pura: “As revoluções são, por definição, eventos extraordinários e todo o evento extraordinário tende a ser seguido pela regressão ao corriqueiro. Logo que se acalme a agitação das águas, quem esteve no topo da pirâmide do poder já lhe conhece as escadas”. No texto original, Germano Almeida ilustra-o no pensamento e na voz de outra mulher – Susana: ”[…] poucos anos após o 25 de Abril, as forças do grande capital, que ou eram fascistas ou tinham apoiado o regime fascista, estavam de novo no poder […]”.
Liberdade e justiça parecem ser o topo de um declive escorregadio. Não existe possibilidade de repouso no topo do declive – apenas o progressivo regredir para a base do abismo sempre que se para de avançar para o topo. O teatro – o tipo de teatro que escolhemos abraçar – representa esta voz que, neste tempo “de gritos, gritadores e muitos pontos de exclamação”, fala aos que adormecem no declive, aos que, embalados no conforto, se esquecem de nadar, para que a liberdade não morra a mais ridícula das mortes. Um teatro que abraça as “cíclicas oportunidades de se encontrar Abril ou de se ser Ambrósio”. Se não for hoje, amanhã nos desforraremos.
Caplan Neves . Dramaturgo / João Branco . Encenador
Este é um dos 45 projetos apoiados pelo programa «Arte pela Democracia», uma iniciativa da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril em parceria com a Direção-Geral das Artes.
O Programa «Arte pela Democracia» promove projetos artísticos que se enquadrem nas Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e que contribuam para a reflexão sobre a relevância deste acontecimento na construção da democracia.
É dirigido a projetos artísticos nas áreas das artes visuais (arquitetura, artes plásticas, design, fotografia e novos media); artes performativas (circo, dança, música, ópera e teatro); artes de rua; e cruzamento disciplinar.
A primeira edição, lançada em 2023, teve uma dotação orçamental de um milhão de euros. Selecionou um total de 45 projetos, que abrangem todo o país.