Aldeia Mirandesa: Quotidiano, Tradições e os Primeiros Sinais de Mudança
Maria Julieta Alonso Antão Lencart e Silva
Nascida em 1947 em Malhadas, Miranda do Douro, licenciada em Física, professora de Matemática no 2º. e 3º. Ciclo, actualmente reformada.
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Junho 1958. À volta de uma mesa, na minha escola primária, um grupo de homens acinzentados exclamam: ganhámos. Tinha ido ver a contagem dos votos da eleição para Presidente da República. O Humberto Delgado venceu na minha aldeia.
Foi o meu primeiro contacto com a política. Ainda me lembro da minha Mãe falar com as pessoas dizendo: “olhai para este homem, tem olhos vivos e espertos, aquele [referia-se ao Américo Tomás] tem ar de burro”.
Andava nos primeiros anos do liceu a frequentar um externato em Miranda do Douro. Mas, a nossa sabedoria teria que ser avaliada no liceu de Bragança, que ficava a 60 ou mais kms de Miranda.
O meu primeiro choque com o ensino dá-se na terceira classe. Éramos obrigados a fazer exame e este era feito em Miranda do Douro. Muitos dos meus colegas nunca tinha ido a essa cidade, apesar de ficar apenas a 6 km da aldeia. Foi um drama. Só passaram 3 dos 18 alunos. Todos ficámos amedrontados. Estavam presentes para além de professores desconhecidos, o director ou delegado de ensino. Fiquei triste e revoltada. Eu fui aprovada, mas todos os colegas por quem eu tinha respeito tinham reprovado, sabendo eu que eram iguais ou superiores a mim.
Lembro-me de perante uma dúvida, num dos 5 problemas que tínhamos que resolver, a força interior que tive que mobilizar, para me levantar e colocar a questão. Não sabia o que ia acontecer, mas deram-me a explicação necessária para continuar a prova.
A desigualdade de oportunidades perante a resolução do problema fica patente aqui. Erauma privilegiada. Senti-o e agora sei. Ter pais e outros familiares com escolaridadepermitiu que tivesse, à partida, melhores condições para enfrentar questões idênticas às da escola, mas colocadas em ambientes diferentes.
Frequentar o secundário era um luxo. Um ou outro rapaz ia para o seminário, pois era a forma de ter condições económicas para estudar. Era o que os pais conseguiam. Também acontecia irem, poucos, para a guarda fiscal ou republicana, após terem ido para a tropa.
Naquelas terras, mesmo na cidade, não havia um teatro, um cinema ou uma biblioteca pública. Até aos meus 17/18 anos vi dois filmes e isto porque a minha família sabia o que era um filme. Foi uma das coisas que surgiu no período da construção das barragens no Douro internacional, desaparecendo após terminarem os trabalhos. Num barracão de terra batida vi o Deus lhe Pague e O Ladrão de Bagdade.
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Conheci mundo através das muitas leituras que fiz, graças às bibliotecas ambulantes da Gulbenkian. Tenho na memória a imagem da pilha de livros que levava nos braços para ler nas férias de verão, mas eram poucas ou quase nenhumas as pessoas que usavam estas bibliotecas. Havia outras tarefas mais importantes e muita gente não sabia ler. Nessa altura já havia eletricidade.
Nos fins dos anos 50, inícios de 60, são construídas barragens no Douro internacional, o que trouxe algumas mudanças. Construção de um hospital, mais médicos e melhorias na estrada principal. A vinda de trabalhadores, exteriores à região, provocou alguns choques, embora leves. Os “barragistas”, como eram chamados, viam os autóctones como atrasados e gozavam com o seu modo de falar, o mirandês. Chamavam-lhes“palhantras”.
Nesta altura surge uma nova actividade, a criação de vacas leiteiras, que praticamente não existiam. Ninguém bebia leite. Com o aumento da população na cidade, este negócio aumenta e nos anos 70 muitas famílias dedicavam -se a produção de leite.
A vida na aldeia regia-se pelas estações. Mesmo nós garotos, tínhamos diferentes brincadeiras conforme as estações. Eram raras as brincadeiras dentro de casa, até porque a maior parte destas tinham poucas condições. Eram escuras, sem janelas e muitas apenas tinham a porta de entrada. Uma ou outra tinha uma pequena janela num quartinho. Mesmo chovendo ou fazendo frio tudo era na rua. O chão poderia estar cheio de lama, como acontecia em todas as ruas quando chovia, mas as brincadeiras eram adaptadas conforme o tempo. Podíamos jogar ao pião, à bilharda, correr ao despique, ao cucu [esconde-esconde], às pombas, saltar ao eixo, lutar (ganhando aquele/a que deitasse o parceiro/a ao chão) ou então fazer uma fogueira na rua, desenhando no ar figuras com os paus acesos.
A primavera e o verão traziam mais trabalho para as famílias que tinha agricultura. Ir a escola já não era prioritário, os garotos tinham que ajudar os pais. Eu não tinha esse problema. Em minha casa não havia trabalho agrícola, apenas tratar de pequenas hortas.
Tudo era feito com a energia das pessoas e dos animais. As únicas máquinas existentes, movidas a motor, eram um motor de rega e uma moagem de cereal que servia as aldeias à volta. Com excepção das máquinas de costura, todas as outras máquinas que existiam – arados, carros de bois, teares, etc. – eram construídas pelas pessoas.
Não havia electricidade nem saneamento básico: na aldeia, apenas uns fontanários onde as pessoas se abasteciam e tanques para os animais beberem; no campo e à volta da aldeia, havia nascentes, cuja água vinha a superfície. Nestas eram construídas pequenas fontes rudimentares, tendo a população algum cuidado para não sujar a água.
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O rame rame dos dias era por vezes abalado por algum desastre. Lembro-me de um dia estar à porta e ver uma rapariga em cima de um burro com pé cortado pelo tornozelo pendurado da perna, dançando com o movimento do andar do animal. Chorava. Ficou manca mas lá se curou. Muitos eram os bebés que morriam, mas eram “anjicos”, iam para céu. Os pais choravam, mas nós, os garotos, não ficávamos muito chocados.
Havia um sapateiro, que tinha um objecto que nos encantava. Era mal-encarado. Diziam que tinha sido gaseado na grande guerra. Vivia numa casa, com uma única divisão que servia para tudo: quarto, cozinha e oficina. À entrada da porta tinha a sua mesa de trabalho e quando nos parecia que estava mais bem disposto, pedíamos para nos deixar apanhar os pregos com o tal objecto. Era um íman em forma de ferradura.
A alimentação era muito pobre. Não se pode dizer, quanto a mim, que se passava fome,mas havia famílias cujas refeições constavam de um caldo de batatas e couve com um bocado de toucinho, que era dividido e comido com pão e um bocado de cebola. Muito poucas famílias tinham árvores de fruto. No inverno não havia fruta e no verão havia uvas, melões, melancias e maçãs, mas tudo em pouca quantidade. Quase toda a gente tinha galinhas, uns mais outros menos, até porque nem toda a gente tinha como as alimentar. Comer um frango ou um ovo, para muitos era só em dias de festa ou se alguém estava doente.
Peixe não havia, a não ser o bacalhau ou sardinhas, e estas eram comidas com parcimónia. Por vezes, uma para cada pessoa. Os garotos comiam muitas coisas selvagens. No período das espigas de cevada, ainda verde, comiam o grão, amoras de amoreira ou silvestres, rebolhacas [ervilhas selvagens], rebentos de silva e de videiras. No fim do período das amoras de silva, procurávamos um mel especial que se encontrava dentro dos seus ramos secos.
O trabalho era duro para todos. As mulheres trabalhavam no campo como os homens. A maioria fazia todas a tarefas, desde lavrar, semear, ceifar, tratar dos animais, etc. Para além de tudo, tratavam da comida, das crianças e dos animais, sobretudo das galinhas e dos porcos que eram tratados exclusivamente pelas mulheres.
Nas noites de inverno, à luz da candeia de petróleo, faziam meias de lã ou algodão. Muitas vezes eram as próprias mulheres que fiavam a lã utilizada nas meias ou no tear para fazer mantas, cobertas, tapetes ou sacos usados para armazenar produtos. Os homens jogavam as cartas e coletivamente contavam-se histórias.
Os rituais religiosos eram pouco visíveis no dia a dia das pessoas. O toque das trindades era o sinal para os garotos pararem as brincadeiras e correrem para casa. Em algumas famílias dizia-se um Padre Nosso ou uma Avé Maria. A ida a missa ao domingo era um ritual que quase todos respeitavam, embora não houvesse o hábito de comungar regularmente. Na Páscoa confessavam-se e comungavam. Lembro-me de um homem que o fazia mais vezes e devido a isso chamavam-lhe “papa hóstias”. Algumas famílias rezavam o terço em determinados períodos e faziam uma ou outra novena.
Apesar desta dureza a maior parte das pessoas era bem disposta e alegre, mas quando a mostarda subia ao nariz a linguagem era dura e desbragada. As asneiras mais fortes eram ditas.
Era raro o domingo que não existisse baile na rua, frequentado pela juventude. A música era a possível, dependia do tocador: ou era realejo (gaita de beiços), acordeão,pandeireta e ferrinhos. Os rapazes, após a missa, num espaço amplo da aldeia mostravam as suas capacidades no lançamento da relha, do ferro e da barra. Esta era uma grande pedra com uma forma arredondada, tirada de uma parede, sendo segura no antebraço e mão e depois lançada.
Os domingos de festas religiosas/profanas eram aqueles em que havia mudanças noquotidiano. Sentia-se que as pessoas ficavam mais divertidas e parecia que esqueciam asua vida dura. Faziam-se roupas novas, a comida era melhorada e organizavam-se de modo a fazer apenas as tarefas indispensáveis. Era assim na festa de S. Sebastião, no inverno e na festa de Santa Bárbara, no fim das colheitas de verão. Naquela, era feita no largo da aldeia uma grande fogueira de troncos de árvores que atingia mais de 2m de altura e que ardia durante dias. Após a missa, a procissão e o almoço melhorado, jovens e velhos iam para a Veiga e dançavam até altas horas da noite. Na festa de Santa Bárbara havia a actuação do grupo de pauliteiros da aldeia. De manhã cedo até a hora da missa, recolhendo donativos em dinheiro ou trigo, tocavam e dançavam à porta de cada casa. Mas eram sempre feita a pergunta: tocamos ou rezamos? E a resposta ditava o que faziam. Após a missa os pauliteiros exibiam-se com aprumo e a dança mais esperada era o “assalto ao castelo”. Esta exigia destreza e corpos ginasticados, capacidade adquirida nos trabalhos diários.
A política, na rua, não era assunto. Mas, sem o dizer, havia no ar a ideia de que havia coisas sobre as quais não se falava. Em minha casa era um pouco diferente: com aprisão e a fuga à polícia política de um familiar próximo sabíamos – e falava-se por vezes disso – que não vivíamos no melhor dos regimes. Sem que isso levasse a uma postura de oposição activa, achava-se sobretudo que o regime atrasava.
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As coisas vão mudando com a imigração para a Europa. Na vaga anterior, a do Brasil. Quando uma família ia embora quase toda aldeia ia despedir-se. Uma camioneta a cheirar a óleo e a cair aos bocados lá estava no largo da aldeia. De madrugada, ainda escuro, as mulheres com xailes pretos, choravam e abanavam lenços no adeus despedindo-se das gentes. Ninguém esperava voltar. Alguns voltaram mas poucos e de visita.
A emigração europeia já não era assim. Era clandestina. Só depois de terem chegado ao destino é que era pública. Gente destemida. Não conheciam nada apenas confiavam no passador. Os filhos ficavam ao cuidado dos avós. Perto dos anos 70 só se viam velhos e crianças. Muitos tinham emigrado. No verão vinham de férias. Alguns já traziam automóvel mas a maioria vinha de camioneta. Nas aldeias, até meados dos anos 60, as deslocações eram feitas de burro ou a pé. Só uma ou duas pessoas tinha automóvel emesmo bicicletas poucas havia.
Fins dos anos 60 e inícios de 70 começam a ver-se as influências desta emigração. Alguns construem casa novas, já com casa de banho, a comprar terras, a mandarem os filhos estudar, a ter uma melhor a alimentação. Tinham agora dinheiro no bolso, quando antes era pouco. Raros eram os que o tinham. Para além do parco rendimento dasprofissões artesanais (sapateiro, alfaiate, pedreiro, etc.), o dinheiro surgia esporadicamente da venda de um animal, de excedentes de trigo / centeio ou de algumas geiras [trabalhos esporádicos à jorna].
Estes emigrantes dos anos 60/70 tinham visto muitas coisas que nem pensavam existir. Numa conversa comigo uma mulher que tinha emigrado contava-me: ”sabíamos tão pouco. Uma vez disseram-me que em casa da senhora x havia um espelho em que nos víamos da cabeça aos pés. Eu pensava que só havia espelhos para ver a cara”. Era natural porque o tamanho dos espelhos, à venda nas feiras onde se comprava o que a aldeia não produzia, seria de 15/20cm.
Na década de 70/80 a aldeia fica diferente. Quase todos os agricultores têm trator. Os trabalhos agrícolas mais pesados são mecanizados, quase toda a gente tem rádio e televisão. Substituindo as tabernas, surgem cafés também frequentados por mulheres.
Agora as pessoas já não se deslocam a pé ou de burro. Muitos têm carro e a camioneta que liga a cidade de Mirando do Douro é mais decente. A cidade começa a ter muitos visitantes espanhóis, há mais restaurantes, as instituições camarárias e as juntas de freguesia começam a preocupar-se com o melhoramento das aldeias. Com a construção de novas casas, surgem outras actividades, por exemplo feitura de janelas com materiais diferentes, aplicando conhecimentos aperfeiçoados ou aprendidos na emigração e concretizados por aqueles que já tinham regressado. Surgem, agora novos problemas. A não criação de novos empregos leva os jovens a deixarem a aldeia para as grandes cidades fora da região. Embora melhorada, a aldeia ficou novamente vazia.