Antes / Durante / Depois
Francisco Sarsfield Cabral
Sou jornalista profissional desde 1970. Antes disso licenciei-me em Direito; o meu primeiro emprego foi no Secretariado Técnico da Presidência do Conselho (1963-1964) e trabalhei na Associação Industrial Portuguesa (1965-1978).
O 25 de abril apanhou-me no Diário Popular, tendo em 1975 passado para o semanário O Jornal. Em 1977 ingressei na RTP, onde fui em 1979 subdiretor para a Informação. Fui Director do jornal Público entre Dezembro de 1997 e Março de 1998.
Fui Diretor de Relações Externas da Petrogal (1979-1985) e exerci funções de adjunto do ministro dos Negócios Estrangeiros (1985-1987), assessor do primeiro-ministro Cavaco Silva (1987-1991) e diretor do Gabinete da Comissão Europeia em Portugal (1991-1996). Em 1996 ingressei na Rádio Renascença, onde me mantenho como colaborador.
Sou autor de quatro livros: Uma Perspectiva sobre Portugal, Moraes, 1973; Política, Economia e Ética, Semanário 1985, Autonomia Privada e Liberdade Política, Fragmentos, 1988; e Ética na Sociedade Plural, Tenacitas, 2001
I – Antes
Além de me desagradar viver num regime político que não admitia as liberdades correntes nas democracias, dois fatores levaram-me a acolher o 25 de abril com particular alegria.
Eu era jornalista e trabalhava no “Diário Popular”, um vespertino (hoje, com canais informativos na TV funcionando 24 horas por dia, os diários vespertinos acabaram). Escrever notícias e comentários sabendo que a censura poderia cortar o meu texto ou – pior! – poderia fazer cortes que tornariam absurdo o que eu tinha escrito era um permanente peso profissional.
Um exemplo: semanas antes do 25 de abril resumi um texto da OCDE sobre a economia portuguesa. Pois a censura não achou nada melhor do que, na frase em que se dizia “Portugal ainda não tem uma economia desenvolvida”, cortar a palavra “não”…
Estes cortes tornavam também muito difícil a obtenção de colaborações de pessoas competentes na matéria, como, por exemplo, o Prof. Francisco Pereira de Moura. Os colaboradores, depois de verem inutilizados dois ou três artigos seus, desistiam naturalmente de colaborar.
O outro fator que me levava a aguardar com ansiedade o fim do regime ditatorial era uma irmã minha ter sido presa pela PIDE no dia 26 de novembro de 1973. A minha irmã Luísa Sarsfield Cabral colaborava na informação, naturalmente clandestina, sobre a guerra colonial. A minha irmã saiu de Caxias em liberdade, sob fiança, algumas semanas antes do 25 de abril, para ser mais tarde julgada – o que, naturalmente, não chegou a acontecer.
Entretanto, no fim de fevereiro li com muito interesse o livro “Portugal e o Futuro”, do general António de Spínola, ex-governador da Guiné-Bissau. Nesse livro defendia-se uma solução política e não militar como sendo a única saída para as guerras coloniais.
Esta posição contrariava frontalmente a atitude intransigente do governo de Marcello Caetano. Alguma coisa teria de acontecer, porque depois daquele livro, que teve um sucesso enorme de vendas, as guerras coloniais perdiam legitimidade. Mas o governo de M. Caetano não mudou a sua política colonial. Dois meses depois, a revolta dos capitães pôs ponto final a essa política.
II – Durante
Na madrugada do dia 25 de abril de 1974 a minha mulher e eu fomos acordados por um telefonema amigo alertando para que parecia estar uma revolução na rua e sugerindo que ligasse a rádio e que não deixássemos as crianças irem para a escola. Assim fizemos.
Encarei a notícia com grande expectativa, mas também com algum ceticismo – pois a 16 do anterior mês de março tinha havido uma tentativa falhada de revolta militar (a “revolta das Caldas”).
Dirigi-me para o meu local de trabalho, o “Diário Popular”, no bairro alto. Havia grande excitação entre os jornalistas, que culminou pelo fim da manhã com o facto de, pela primeira vez, o jornal não ter que se submeter à censura.
Almocei com colegas jornalistas numa tasca perto do jornal. O almoço foi várias vezes interrompido por pessoas que traziam notícias sobre o que se passava na cidade.
Quando regressei a casa já se tinha tornado evidente que a revolta militar tinha obtido sucesso. Mas ainda não era para mim clara a posição política dos militares vitoriosos. Podia ser uma revolta ligada a militares de direita, descontentes com Marcello Caetano, por exemplo. A certa altura foi noticiado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas) que uma designada Junta de Salvação Nacional iria nessa noite esclarecer o país.
Deparou-se-me então um pequeno problema: não tinha televisão. Era o resultado de uma decisão minha; no regime que acabava de ser derrubado não me interessava o acesso à RTP, politicamente muito controlada pelo poder político. A solução foi deslocar-me a casa de um amigo, onde havia televisão (claro que dias depois instalei um aparelho de televisão na minha casa, “para ver a revolução”).
Foi sem surpresa que nessa Junta de Salvação Nacional vi os generais António Spínola e Costa Gomes, que tinham sido demitidos dos seus cargos militares pelo governo de Marcello Caetano. Ainda não era transparente a articulação entre esses dois generais e o MFA, que tinha organizado a revolta e posto fim a um regime ditatorial de quase meio século.
A Junta de Salvação Nacional era constituída por militares. Além de Spínola e Costa Gomes, na altura bastante conhecidos, havia outros militares, que eu desconhecia, cuja intervenção na política portuguesa seria importante nos tempos que se seguiram. Refiro-me ao então capitão de mar e guerra Pinheiro de Azevedo e ao capitão de fragata Rosa Coutinho.
Deu, no entanto, para perceber que havia várias sensibilidades políticas na Junta de Salvação Nacional, mesmo quanto a problemas imediatos. Por exemplo, qual o destino da PIDE? Ou: deveriam ou não ser logo libertados todos os presos políticos?
III – Depois
Os meses e anos que se seguiram ao 25 de abril foram de intensa luta política, entre os militares e não só. Demorou longos meses a evitar que uma ditadura de esquerda sucedesse à derrubada ditadura de direita. E em vários momentos tive a estranha sensação de não haver Estado…
No jornal onde trabalhava, o “Diário Popular”, sucederam-se os plenários de trabalhadores, assembleias por vezes tumultuosas. Nessa altura o jornal pertencia ao grupo económico dirigido pelo Dr. Miguel Quina (Banco Borges), mas estavam em curso tomadas do poder por jornalistas e outros elementos dos quadros do jornal.
Como tantas vezes acontece, as pessoas que mais próximas do antigo regime tinham estado tendiam a tornar-se furiosos revolucionários, exigindo o saneamento de quem não gostavam. Por vezes, parecia haver apenas duas fações em luta – a dominada pelo partido comunista e a de extrema-esquerda.
Os “saneamentos” multiplicavam-se um pouco por toda a parte. Creio ter sido um erro do partido comunista ter prolongado esta situação anárquica em inúmeras empresas privadas e públicas, bem como em serviços do Estado. O partido comunista ficou então com boa parte do odioso que assustou muita gente.
Nas semanas seguintes ao 25 de abril preocupou-me a prisão de alguns empresários e gestores que eu conhecia. E a minha mulher e eu começámos a receber insultos na rua, aparentemente da parte de pessoas conotadas com o partido comunista e com a extrema esquerda, que então se tornou mesmo extrema.
No meio jornalístico a degradação do ambiente de trabalho levaria daí a cerca de um ano ao aparecimento de um novo semanário, “O Jornal”, detido e gerido pelos jornalistas. Eu fui um deles, juntamente com colegas vindos do “Diário de Notícias” e de outros “media”.
“O Jornal” chegou a desafiar a hegemonia do “Expresso”, mas encerrou em 1992. Eu tinha saído deste jornal de jornalistas ainda na década de 70. Experiência que me leva a não defender a propriedade e a gestão de jornais pelos jornalistas como solução para a crise dos “media”.
Francisco Sarsfield Cabral
(Jornalista)