Carta ao colega Ribeiro Santos
Nos 50 anos do assassinato do estudante, Catarina Preto, atual presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, escreve uma carta a Ribeiro Santos.
Estimado colega José Ribeiro Santos,
Escrevo-lhe esta carta em nome da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa e em nome de todos aqueles que se identificarem com o seu conteúdo.
Escrevo-lhe, como uma forma de agradecimento pelo que hoje temos e por tudo o que nos deixou, sem algum dia ter perspectivado que o iria fazer.
Percorremos os mesmos corredores e deambulamos entre os mesmos pilares de uma estrutura que em 50 anos pouco se alterou.
A Associação mantém-se, o bar velho mantém-se, assim como a biblioteca e os jardins. Os matraquilhos ainda se encontram no sítio que sempre estiveram e o Anfiteatro 1 também.
Mas mudou muita coisa desde a sua partida, os livros, os móveis, as mesas e as cadeiras, mas principalmente mudaram as pessoas. E não estou a falar das que lá passavam, até porque muitas ainda permanecem.
Refiro-me a uma mudança mais estrutural, aquela que penso que poderia ambicionar, não está perfeita, longe disso. Mas continuamos num progresso.
Gosto de fazer parte desse progresso, gosto de ter a oportunidade de servir os estudantes, a academia e o movimento estudantil. Gosto de poder dizer o que penso, sem medos. Gosto de defender os nossos estudantes e de ser intransigente quando sei que temos razão.
Quando entrei pela porta principal da Faculdade pela primeira vez, percorri o átrio até ao anfiteatro 1, completamente perdida, e não olhei para trás. Aliás, andei uns dias tão perdida que não reparei que sempre que entrava pela porta tinha um olhar penetrante que pairava sobre a nossa atmosfera, esta que é tão particular e específica.
Até que um dia, olhei para trás, inclinei ligeiramente a cabeça para cima e vi-o pela primeira vez. Questionei-me quem era e o porquê de ali estar o seu retrato.
Perguntei! Sempre fui uma pessoa de fazer perguntas, sou das que está sempre com o porquê? e com o como? na ponta da língua. Tinha acabado de entrar e queria saber tudo, tudo o que se passava no momento e o que se tinha passado.
Explicaram-me brevemente o que tinha acontecido, com o passar do tempo fui conhecendo mais pormenores, sobre si, sobre a Associação, sobre os estudantes, sobre a nossa história.
Passados quatro anos, tornei-me Presidente da Associação, fui aos quatro cantos da nossa Faculdade e completei a minha equipa. E lembro-me de na altura da campanha pedir-lhes fervorosamente que o estudassem, que vissem os documentários em sua honra e sobre a Faculdade naquela época. Pedi-lhes que se mentalizassem da responsabilidade que era ser estudante e de que se fossemos eleitos que essa responsabilidade seria acrescida, porque iríamos ser representantes dos nossos colegas.
Pedi-lhes que se sentissem orgulhosos dos nossos colegas que lutaram para que hoje nós pudéssemos ter uma ação primordialmente diplomática. E pedi-lhes acima de tudo, que conhecessem a realidade por que passou e que a respeitassem para que quem viesse a seguir nunca tivesse que passar pelo mesmo.
Gostava que visse como as coisas mudaram, como lidamos uns com os outros, como aprendemos a respeitar-nos e como conseguimos conciliar as nossas diferenças.
Ano após ano, este dia nunca se tornou comum, é um dia em que se vê muita reflexão no olhar dos estudantes, porque apesar de não nos termos conhecido, é um dos nossos e que há 50 anos deixou os seus.
Não esquecemos, nem desculpamos.
Ainda sente uma revolta dentro de nós, é desconhecido mas magoa, não sabemos como explicar.
Mas asseguramos que o movimento estudantil está vivo, continuamos a lutar pelos nossos direitos e a transmitir os nossos valores.
Queria que soubesse que vamos dizer “presente” em todos os momentos da vida académica dos nossos colegas e que nenhum aluno será deixado para trás. Somos uma frente unida e continuamos juntos.
Queria que visse a liberdade que hoje temos e que, no que depender de nós, não se irá perder.
Queria que conseguisse olhar para os peitos que se enchem de ar e para o rosado das bochechas sempre que os alunos se manifestam. Para as faixas que se pintam e as bandeiras que se erguem. Mas também, para a postura de diálogo, aberta, concreta e assertiva.
Gostava de lhe poder oferecer um cravo e dizer que está tudo bem, que ficou tudo bem e que conseguiu, que não foi em vão e que é muito amado.
Mas como não posso, deixo-lhe esta carta, que irei ler diante dos seus amigos e pessoas que o admiram. E é muito bela a forma como o fazem.
Espero um dia, depois desta vida, conseguir contar-lhe as peripécias da Associação que tanto carinho lhe tem, e ouvir as suas enquanto Presidente de Mesa.
E hoje como há 50 anos “ousamos lutar, ousamos vencer”
Da sua colega,
Catarina Preto
Carta originalmente lida por Catarina Preto na Conferência Internacional: Resistência juvenil, ditaduras e políticas de memória. O Assassinato de Ribeiro Santos, a 11 de outubro de 2022.