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Como vivi o dia 25 de Abril e acontecimentos subsequentes

António Sobrinho

António José Pedrosa de Souza Sobrinho, nasceu a 6 de Maio de 1954, em Lisboa. Na sua juventude, viveu em Moçambique, tendo completado o ensino primário e secundário. Em 1971 ingressou na Escola Naval como Cadete da classe de Marinha. Regressa a Lourenço Marques (Moçambique) matriculando-se no curso de Geografia em 1972. 

No âmbito da sua vida profissional foi topógrafo nos Serviços Geográficos e Cadastrais de Moçambique e preparador na Universidade de Lourenço Marques, destacado no Instituto de Investigação Científica de Moçambique.

Após a independência de Moçambique, parte para Portugal a 1 de Julho de 1975. 

Em 1977, obteve a licenciatura em Geografia, pela Universidade de Lisboa.

Foi docente no Colégio Moderno, colaborador do Centro de Estudos Geográficos, técnico superior na empresa COBA, sarl (Consultores para Obras, Barragens e Planeamento), docente na Universidade do Porto e funcionário do Secretariado-geral do Parlamento Europeu.

Como vivi o dia 25 de Abril e acontecimentos subsequentes

(DE MOÇAMBIQUE A PORTUGAL)

A REVOLUÇÃO

A meio da manhã do dia 25 de Abril de 1974, chegaram-me rumores de que teria havido um golpe militar em Lisboa. Na distante Lourenço Marques (Moçambique) as notícias eram difusas, mas pouco a pouco os contornos da situação começaram a apresentar-se com maior nitidez. Na altura fui invadido por uma mistura de sentimentos como a incredulidade e a satisfação: incredulidade, porque temia que o golpe em marcha pudesse vir a abortar, à semelhança do que ocorrera no dia 16 de Março, quando se deu o levantamento do Regimento de Infantaria 5 (RI5) das Caldas da Rainha; satisfação, porque um dos pontos fulcrais da contestação ao regime visava encontrar uma solução para a questão do Ultramar e, consequentemente, pôr termo à guerra.

Não me recordo de o Rádio Clube de Moçambique (RCM) ter interrompido a emissão durante o período da manhã do dia 25 para noticiar as movimentações e intenções dos militares ou referir quaisquer comunicados sobre a situação político-militar na Metrópole. Na realidade, só a meio da noite, uma edição tardia do vespertino “Tribuna” acabaria por publicar notícias sobre a revolução, já vitoriosa, as quais, foram posteriormente difundidas aos microfones do RCM. 

No dia 26 de Abril, o jornal “Notícias” de Lourenço Marques, ainda visado pela Comissão de censura, anunciava que o General António de Spínola havia sido indigitado como “Chefe da Nação Portuguesa”, para além de reproduzir excertos de notas oficiosas e comunicados sobre o evoluir da situação.

Passado o momento de indefinição, começaram a afluir notícias que permitiram conhecer os propósitos dos militares revolucionários, nomeadamente através da proclamação ao país, lida pelo General Spínola, em nome da Junta de Salvação Nacional (JSN). O Movimento das Forças Armadas (MFA) apresenta ao país o seu programa, documento-chave que iria balizar o futuro de Portugal.

Vale a pena recordar alguns dos compromissos assumidos pela JSN, nessa proclamação: para além dos princípios associados a um regime democrático – eleições livres por sufrágio directo para uma Assembleia Constituinte e para o Presidente da República –  afirmava-se a vontade quer de “respeitar os compromissos internacionais decorrentes dos tratados celebrados” quer de “garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria Soberana no seu todo pluricontinental”, asserção que tinha obviamente implicações directas em Moçambique. 

A proclamação do General Spínola revelou-se ambígua em relação à questão do Ultramar; já o Programa do MFA, no âmbito de um conjunto de medidas que propunha a curto prazo, reconhecia que a solução para o Ultramar era política e não militar.

Os propósitos do 25 de Abril, conforme expressos no Programa do MFA, pautavam-se pelos valores da liberdade, da constituição de partidos políticos, da realização de eleições livres, da adopção de uma nova constituição e do estabelecimento de negociações com os movimentos nacionalistas de Angola, Guiné e de Moçambique, com vista à criação de um clima de paz, capaz de definir o futuro daqueles territórios e das suas gentes. O MFA também lançou ainda os fundamentos de uma nova política económica (anti-monopolista) e de uma política social dirigida para a defesa dos interesses das classes trabalhadoras.

EM MOÇAMBIQUE

Embora saudando a generalidade das medidas propostas pelos militares a 25 de Abril, mantinha-me na expectativa quanto ao futuro do Ultramar e, mais concretamente, de Moçambique. Neste território, a FRELIMO surgia aos olhos da população como um interlocutor incontornável em futuras negociações com Portugal, atendendo ao seu papel na condução da luta armada de libertação do país desde 25 de Setembro de 1964 e, consequentemente, enquanto peça fundamental para o estabelecimento do cessar-fogo.

Interroguei-me, no entanto, acerca do papel que poderiam vir a ter outras forças políticas, de forma a poderem fazer ouvir a sua voz e influenciar os destinos da nação quer na fase de transição para a independência quer no pós-independência.

Procurei aprofundar o conhecimento que tinha acerca da FRELIMO e tentei compreender a sua natureza e objectivos, assim como os de outras associações políticas. Nunca tive dúvidas de que a FRELIMO iria assumir um papel predominante nos destinos do país, mas considerei importante e até desejável que fosse dada voz a outros actores da sociedade moçambicana. Como é sabido tal não se veio a efectivar, não obstante as promessas iniciais de alguns políticos portugueses, devido à recusa da FRELIMO, assim como de sectores do MFA, em aceitar uma consulta popular.

Por ter desencadeado a luta armada, a FRELIMO acabaria por vir a ser considerada como o único representante legítimo do povo moçambicano nas negociações que culminariam na independência. Ignorava-se assim o princípio da autodeterminação dos povos e entregava-se o poder a um único partido. Tal procedimento não obedecia aos princípios que o movimento do 25 de Abril havia preconizado na Metrópole.

De salientar que nos meses que antecederam o 25 de Abril de 1974, a situação político-militar em Moçambique era crítica. A FRELIMO, tinha-se alastrado para Sul e já actuava ao longo da linha férrea da Beira, embora as áreas mais fustigadas pela guerrilha e contra-guerrilha incluíssem os distritos de Cabo Delgado, Niassa, Zambézia e Tete. Esse ambiente de guerra que se vivia no território há cerca de uma década ia gerando um descontentamento crescente e cansaço no seio da população. 

Para além dos aspectos de natureza política, havia a considerar a situação económica e social. Essa realidade, traduzia-se por grandes assimetrias, diferentes estádios de desenvolvimento e enormes contrastes entre as condições de vida das pessoas que habitavam nas cidades de cimento, nos bairros de caniço e nos espaços rurais. Nestes últimos coexistiam diferentes tipos de exploração, desde a agricultura de subsistência, às plantações, aos colonatos (com colonos vindos maioritariamente da Metrópole) e outro tipo de explorações, mais ou menos diferenciadas, e de iniciativa privada.

Não obstante o antigo regime ter procurado esbater tais assimetrias, quando se decidiu a fazê-lo já pouco tempo lhe restava pela frente. Tal tarefa gigantesca deveria abranger um vasto território, com uma área de cerca de 9 vezes superior à de Portugal continental, e uma população aproximada de 9 milhões de habitantes, de origem multi-étnica. 

Durante o período da guerra, foram envidados esforços, de modo a promover o desenvolvimento acelerado do território, nomeadamente através da construção de vias de comunicação estruturantes, como rodovias, caminhos de ferro, portos, aeroportos ou ainda de grandiosos empreendimentos como a barragem de Cahora Bassa no rio Zambeze. Moçambique contava ainda, à data do 25 de Abril, com um tecido industrial apreciável e até sofisticado, nalguns casos.

A população escolar havia crescido exponencialmente, particularmente a nível do ensino secundário e a cobertura sanitária, embora com várias deficiências, ia-se alargando e melhorando. A jovem Universidade de Lourenço Marques ia ganhando forma. Nos seus 10 anos de existência contava com cerca de 3.000 alunos, muito embora poucos fossem de origem africana. 

Em síntese, este era o panorama que caracterizava Moçambique, marcado, é certo, por clivagens de natureza racial e civilizacional. Simplificando, pode-se afirmar, grosso modo, que os europeus mais diferenciados dominavam a administração e a economia do território.

Cabe recordar que a política ultramarina conduzida pelos governos de Salazar e de Marcelo Caetano havia caído num impasse, sendo objecto de constantes críticas da parte da comunidade internacional, incluindo organizações como a ONU e a NATO, de que Portugal ainda hoje é membro. 

Ignorando os ventos da História, optava-se pela persistência da ideia de um país, pluricontinental, multirracial que se estendia do Minho a Timor. À data do 25 de Abril de 1974, constatou-se que tal ideia estava caduca e que a consequência lógica seria encetar negociações com os movimentos de libertação que ansiavam pela independência dos territórios ultramarinos, administrados por Portugal. Enquanto isso, no panorama internacional, os EUA (derrotados) retiravam apressadamente do Vietname e a então União Soviética ia alargando a sua influência pelo Mundo. 

Foi nesse contexto que formulei as seguintes interrogações, quanto ao futuro e eventual adesão a uma nova realidade política no território:

– a população moçambicana seria chamada a pronunciar-se em referendo com vista à sua autodeterminação? 

– seriam convocadas eleições? 

– que modelo político e económico viria a ser adoptado? 

Num período complexo de disputas internas em Portugal, o peso negocial da delegação portuguesa viu-se afectado, aos olhos de muitos, por algo que consideraram como falta de firmeza e de interesse, acabando por afectar o destino daqueles que esperavam merecer um tratamento idêntico ao que se verificava com os seus concidadãos na Metrópole, nomeadamente através da criação de condições para poderem exprimir as suas preferências políticas, nomeadamente por via da realização de uma consulta popular. A reacção da FRELIMO não se fez esperar, tendo-se mostrado firme nas suas reivindicações, ao mesmo tempo que ia intensificando as operações de guerrilha face às forças armadas portuguesas, que, entretanto, haviam desistido de combater.

Foram efectuados vários apelos ao cessar fogo pela parte portuguesa. Enquanto isso, o dispositivo militar português começava a ceder e iniciavam-se contactos informais entre as nossas tropas e os guerrilheiros da FRELIMO. Com o saneamento das chefias militares, a agitação política no Continente, a impopularidade da guerra, aliada ainda ao facto de a tropa portuguesa não demonstrar qualquer motivação para se manter nas suas posições, inviabilizava a criação de um ambiente favorável a Portugal quando se viesse a sentar à mesa das negociações com a FRELIMO. Fui testemunha do desnorte e improvisação que tiveram lugar. 

Houve, porém, um breve período, cheio de ilusões, em que o clima de liberdade trazido pelo 25 de Abril permitiu sonhar com um efectivo exercício democrático. Esse breve período durou pouco mais de 3 meses e revestiu-se de uma grande vitalidade. As manifestações de apoio à nova ordem democrática saíram à rua; organizaram-se sessões de esclarecimento, convocaram-se greves, reivindicaram-se melhores condições laborais, multiplicaram-se sessões culturais sem que essas fossem objecto de censura e começaram a emergir formações políticas locais que expunham as suas ideias junto da população. 

Contudo, a falta de cultura política da grande maioria da população e vícios de quem não estava habituado a reflectir sobre questões fundamentais, não contribuíram para que as iniciativas que visavam a criação de partidos políticos capazes de se implantar no território. Para que tal viesse a concretizar-se era necessário tempo e credibilidade. Esse papel caberia apenas ao Estado central e aos movimentos de libertação. Mais uma vez, uma franja significativa da população que não se “encaixasse” nesse tandem viu-se afastada de qualquer tipo de intervenção política.

Esse período de euforia democrática teve o seu epílogo quando FRELIMO cercou e aprisionou as tropas portuguesas aquarteladas em Omar (Norte de Moçambique), no dia 1 de Agosto de 1974.  Tal operação acabaria por precipitar o desfecho das negociações com Portugal, que culminariam com a assinatura do Acordo de Lusaka, a 7 de Setembro de 1974. Este Acordo previa o fim da luta armada, a criação de um governo de transição e a independência de Moçambique com data marcada para 25 de Junho de 1975. 

A cedência, em toda a linha, às pretensões da FRELIMO, acabaria por legitimar a instituição de um regime de partido único sem atender a outras correntes de opinião e auscultar o sentimento popular, algo contrário ao espírito da Revolução de 25 de Abril. Só os incautos julgaram que teria sido possível fazer ouvir a sua voz no seio de uma estrutura monolítica de poder a qual, a seu tempo, viria a instaurar uma “democracia popular” de cariz marxista-leninista.

Nesse dia 7 de Setembro, um sábado, encontrava-me na praia do Bilene, a cerca de 200 km ao Norte da capital. Foi aí que recebi a notícia da assinatura do Acordo de Lusaka, o qual mereceu reservas por parte de alguns sectores da sociedade moçambicana. 

Quase de imediato as instalações do RCM foram tomadas de assalto por elementos da Frente Independente de Continuidade Ocidental (FICO) que, dum modo tardio e improvisado, apelaram a uma reacção popular contra os acordos.

Achei tal pronunciamento inapropriado e potencialmente gerador de instabilidade. Foi o que acabou por suceder! Preocupado com o rumo dos acontecimentos, fui acompanhando as notícias através da rádio, de forma a tentar perceber qual seria o momento oportuno para encetar o regresso à capital, que se veio a verificar apenas ao final da manhã de segunda-feira, dia 9. 

Entretanto, os vários apelos efectuados por via radiofónica e que visavam a adesão ao Movimento Moçambique Livre (MML) de militares, ex-militares e para-militares, que haviam servido nas fileiras das forças armadas portuguesas, pareciam não estar a surtir os efeitos esperados. As forças de defesa da África do Sul, que se encontravam estacionadas junto à fronteira, abstiveram-se de qualquer intervenção em apoio da rebelião. 

Às portas da cidade, ainda nos subúrbios, fui mandado parar por um grupo de revoltosos armados e que controlavam os acessos. Pouco tempo depois, a situação invertia-se e a população dos subúrbios, montava barricadas e reagia com violência. Escapei de uma eventual chacina. O caos estava instalado, muito por culpa de um grupo de aventureiros que não souberam medir antecipadamente as consequências dos seus actos. 

Logo que possível dirigi-me ao cais Gorjão onde costumavam amarrar os navios de guerra portugueses. À época, se não estou em erro, o dispositivo naval era constituído pelas corvetas João Coutinho, Jacinto Cândido e General Pereira d`Eça. 

Entrei em contacto com alguns oficiais, antigos camaradas da Escola Naval, que faziam o seu tirocínio a bordo dessas unidades navais. Manifestei a minha preocupação por não ver uma acção determinada por parte das forças da ordem no sentido da reposição da normalidade. Porém, uma das corvetas chegou a interferir com a emissão do RCM, muito embora por um breve período de tempo e com um limitado raio de acção. Prestei ainda algumas informações acerca das posições ocupadas pelos revoltosos.

Os insurrectos, em desespero, haviam apelado ao General Spínola. Este chegou a enviar a Lourenço Marques o Coronel Dias de Lima para avaliação da situação. No dia 9 de Setembro o General Spínola foi pressionado a ratificar o Acordo de Lusaka, deixando os revoltosos sem qualquer hipótese de apoio. 

Na noite de 9 para 10 de Setembro viveram-se momentos de angústia, temendo-se o pior, nomeadamente um recrudescimento da violência de cariz racial. Os excessos cometidos pelos revoltosos visando a população africana dos subúrbios e outros elementos da população conotados com a FRELIMO, nomeadamente estudantes universitários e elementos do grupo dos Democratas de Moçambique, conduziram a uma consequente reacção por parte da população africana dos subúrbios, accções essas que se saldaram num significativo número de mortos e feridos, para além da destruição de bens.

Finalmente, no dia 10 de Setembro, ao ouvir na rádio “Galo, galo, amanheceu…” percebi que se tratava de uma senha que visava pôr termo à violência nos subúrbios e que as emissões do RCM retomavam a normalidade; logo de seguida, forças para-quedistas, fuzileiros e elementos da FRELIMO passaram a controlar o aeroporto e as antenas da Matola e outros pontos nevrálgicos.

Imprudentes, impreparados e sem projecto credível, muitos dos revoltosos do 7 de Setembro acabaram por atravessar a fronteira e procurar refúgio na vizinha África do Sul. A sua aventura acabava em tragédia, tendo, posteriormente, sido acusados de alta traição.

Diga-se de passagem, que houve vários factores que contribuíram para a criação de um clima explosivo, como foi o episódio ocorrido no dia 6 de Setembro com uma viatura que, circulando pelo centro da cidade, arrastava pelo asfalto uma bandeira portuguesa, ao que se somou a falta de imparcialidade de alguns meios de comunicação social no tratamento da informação e a desconsideração de certos sectores da sociedade, acabando por ferir sentimentos profundos das pessoas. 

Joaquim Chissano (FRELIMO) é nomeado Primeiro-ministro do Governo de Transição, entrando em funções no dia 21 de Setembro tendo como tarefa prioritária a preparação da independência de Moçambique. Era Alto-Comissário o Almirante Vítor Crespo.

O movimento do 7 de Setembro deixou marcas profundas no seio da população. Sentindo-se desconfortáveis com o rumo dos acontecimentos, muitos houve que consideraram não ter condições para continuar a viver em Moçambique e decidiram partir, causando uma sangria de quadros tanto na administração pública como nas empresas, causando sérios problemas de natureza económica. 

A falta de quadros dificilmente seria preenchida pela FRELIMO, que não os tinha. Esta é a fase em que os estudantes universitários, simpatizantes ou comprometidos com a FRELIMO, começam a ser chamados para ocupar vários cargos no aparelho estatal e mesmo nas empresas, situação essa que se veio a vulgarizar após a independência, com a vinda de cooperantes de países amigos e organizações alinhadas ideologicamente com o novo poder. 

Eu próprio, na qualidade de discente, vim a integrar uma comissão de gestão na Universidade de Lourenço Marques. As tarefas prioritárias visavam a criação de condições para o arranque do ano lectivo de 1974/75 e a restruturação do curso de Geografia. Acompanhou esse processo pela FRELIMO, Fernando Ganhão, indivíduo de espírito conciliador, e que, posteriormente, foi nomeado Reitor da Universidade Eduardo Mondlane. 

Foi um período muito rico que me veio dar a conhecer a natureza humana, sobretudo quando tive que lidar com alguns fariseus, oportunistas e vira-casacas. Atónito ficava com o excesso de militância pró FRELIMO de conhecidos meus que pouco tempo antes do 25 de Abril se achavam confortáveis com a situação colonial. Em abono da verdade, também houve um punhado de gente coerente e bem-intencionada que aderiu, sem reservas, às novas orientações políticas definidas pela FRELIMO.   

Entretanto, a cidade de Lourenço Marques passou a ser patrulhada por elementos das Forças Armadas (FA) portuguesas e elementos da FRELIMO. Os guerrilheiros tinham chegado à capital, por onde deambulavam, ordeiros, exibindo o seu armamento e suscitando curiosidade na população. Já o modo desleixado como se apresentava a tropa portuguesa deixava muito a desejar. 

A vida parecia ter retomado alguma normalidade. O Governo de Transição ia legislando, procurando resolver situações complexas, nomeadamente suprindo necessidades de abastecimento, enquanto se iam preparando as estruturas do país para a independência, nomeadamente, a criação de um banco central. Medidas restritivas foram impostas para quem quisesse sair definitivamente do país, face a acusações de sabotagem económica por parte de alguns elementos ou empresas.

O êxodo dos europeus (e não só) intensificou-se após o episódio de 21 de Outubro, quando elementos de uma companhia de comandos da Metrópole, ao que parece por um motivo fútil, se excedeu e provocou graves incidentes ao abater alguns militares da FRELIMO. Ocasionalmente estava na baixa da cidade quando começou o tiroteio. Escapei de novo. Lembro-me de uma viatura blindada ter entrado por uma vitrine adentro de uma conhecida casa comercial, de forma a desalojar um militar português que ali se havia encurralado. De imediato, gerou-se o pânico. A população negra que se encontrava na baixa seguiu a passo acelerado para os subúrbios. Montaram-se barricadas e a violência que daí resultou traduziu-se num elevado número de mortos e feridos, para além de novas destruições.

A confiança que estava a consolidar-se foi mais uma vez duramente afectada. Acto contínuo, na cidade de cimento, uma nova vaga de contentores de madeira começou a acumular-se nos passeios ou junto às casas dos que decidiram partir, enquanto se aguardava pelas empilhadeiras que os deveriam transportar ao cais Gorjão. Aí era efectuada uma última inspecção para verificação da conformidade do conteúdo do contentor com o rol de bens préviamente autorizados (e muitos eram recusados ou retirados arbitrariamente antes do embarque). Só após essa operação é que seria dada ordem para que o contentor fosse embarcado no navio que o iria conduzir ao destino. Nessa altura ainda flutuava a bandeira portuguesa no território…

Recordo-me de que vários produtos de primeira necessidade começavam a faltar. Cheguei a ir à pesca mas sem grandes resultados…

Alguns dos que decidiram ficar, e que tinham capacidade financeira, foram acumulando produtos nas suas despensas; nessa altura o câmbio paralelo entre o escudo moçambicano e o português disparou para valores nunca vistos. No meio da confusão ficaram dívidas por pagar etc., vivendo-se um ambiente de golpadas e de “fim de festa”.

À porta dos escritórios da TAP, as filas de espera eram intermináveis. Decidi comprar o meu bilhete com as minhas parcas poupanças em vez de me sujeitar a pedir “repatriamento”. 

Foi com sentimentos mistos que decidi deixar Moçambique, no dia 1 de Julho de 1975, depois de ter vivido momentos entusiasmantes de participação democrática, ter votado pela primeira vez para a Assembleia Constituinte, acompanhado a evolução da tomada de poder pela FRELIMO, ter visto Samora Machel, no interior de um automóvel, protegido pelos seus homens, a acenar para a população que o aclamava ao longo da Avenida António Enes, já bem perto do palácio da Ponta Vermelha, no culminar da sua “marcha triunfal” do Norte ao Sul de Moçambique; acompanhei pela rádio a proclamação da independência no estádio da Machava e misturei-me, sem receio, com a população dos subúrbios, que saudava os seus heróis durante um desfile de carros alegóricos no âmbito das festas de cariz popular que tiveram lugar numa ampla avenida dos subúrbios da cidade.

No aeroporto de Mavalane pude trocar o máximo permitido por lei, ou seja, cerca de 500 escudos, operação confirmada pela aposição de um carimbo no meu passaporte que ainda conservo. Sim, precisei de um passaporte para sair de Moçambique, que considerava ser a minha terra e onde vivera grande parte da minha vida…

Foi assim que viajei sozinho para Lisboa. Sentado no avião, lembro-me de a música de fundo ser um fado. Nessa altura e perante a tristeza da partida, confesso que me senti em casa e percebi que embora me considerasse moçambicano, também era português. Por que razão não foi possível obter a dupla nacionalidade?

EM PORTUGAL

Ao chegar a Lisboa, tinha três amigos à minha espera. O que posso fazer com quinhentos escudos (perguntei)? Vamos jantar, foi a resposta. E os quatro fomos jantar a um restaurante na Avenida de Roma, tendo eu pago a conta. Ter quinhentos escudos ou metade dessa quantia, era praticamente a mesma coisa.

Deixaram-me na Avenida da República onde pernoitei em casa de familiares. Dias depois segui para o Porto tendo sido acolhido em casa de primos meus. O ambiente familiar era excelente e esse porto de abrigo ajudou-me a superar a separação forçada dos meus amigos e familiares que ficaram em Moçambique ou já haviam partido para outras paragens. 

As discussões sobre a actualidade, sobretudo à hora de almoço, eram muito vivas, atendendo às diferentes simpatias políticas de cada um. A postura do dono da casa, homem sensato, coerente e de uma honestidade intelectual sem mácula, contribuía para acalmar os ânimos e reflectir sobre os acontecimentos. 

O Processo Revolucionário em Curso (PREC) estava no seu auge. Vivia-se o Verão Quente. Travava-se um combate político no parlamento, nas ruas, nas empresas, nas escolas, etc. Os militares estavam no epicentro das confrontações. Alas apodadas de progressistas e outras mais moderadas defendiam projectos antagónicos para o país.

Analisando os discursos e as tomadas de posição de alguns dirigentes partidários e militares radicais, estabeleci um paralelismo com o que havia vivenciado, tempos antes, em Moçambique, e temi que o país viesse enveredar pela via revolucionária, quiçá autoritária. Senti desconforto.

Paralelamente, não me podia deixar influenciar pela enorme agitação e instabilidade que se vivia em Portugal. Tendo optado por estudar em Lisboa, estava entregue a mim próprio, não me podendo desviar do objectivo da conclusão da licenciatura que implicava ter de trabalhar e poder assistir às aulas na universidade. Faltavam-me dois anos para concluir o curso. 

Preocupavam-me as constantes reivindicações, a destruição de valor, a facilidade com que se rotulavam as pessoas e, essencialmente, a demagogia reinante.

Após a tumultuosa independência de Angola no dia 11 de Novembro de 1975, estava práticamente cumprido o processo de descolonização. Faltava ainda decidir o futuro de Macau e de Timor. No território da Oceânia, a FRETILIN (esquerda marxista-leninista), após uma guerra fratricida que a opunha à APODETI (apoiante da integração na Indonésia) e à UDT (que inicialmente defendia uma ligação a Portugal), proclamou unilateralmente a independência do território a 28 de Novembro de 1975, à qual se seguiu a invasão do território por forças da Indonésia a 7 de Dezembro de 1975. Portugal falhava novamente no processo de descolonização! 

Entretanto, a 25 de Novembro de 1975, teve lugar uma tentativa de sublevação de unidades militares conotadas com a extrema-esquerda, rapidamente sufocada por um grupo de militares moderados. Punha-se assim termo ao PREC, o que veio a permitir a consolidação da democracia parlamentar em Portugal.

NOTAS FINAIS

Hoje, passados 50 anos, e recordando três objectivos maiores do 25 de Abril de 1974 – Democratizar, Descolonizar e Desenvolver – creio poder efectuar um juízo crítico, acerca da sua consecução:

– Democratizar: foi sem dúvida a grande conquista de Abril. A possibilidade de participação na vida democrática do país através de eleições livres conferiu ao povo português uma responsabilidade e um privilégio, antes negado. 

Enquanto cidadão atento à evolução do país, assisto com preocupação ao desinteresse pela vida política, que se vai manifestando por uma grande parte do eleitorado. Demasiado marcada pela guerrilha partidária e dificuldade na geração de consensos, as grandes decisões que podem vir a contribuir para o desenvolvimento do país pecam pela morosidade, podendo por em causa o interesse nacional. Consequentemente, parece-me urgente proceder a uma reforma do sistema eleitoral que vise a aproximação do eleitor aos seus eleitos, conferindo maior qualidade e transparência à democracia. O voto em pessoas e não em listas partidárias fechadas, iria contribuir para uma maior responsabilização do eleito perante o eleitor;

– Descolonizar: longe de ter sido exemplar, a descolonização saldou-se numa tragédia humana para os povos que por ela foram abrangidos. Uma entrega apressada dos territórios colonizados e a intransigência por parte dos movimentos de libertação, inviabilizaram a aplicação dos princípios básicos da democracia e conduziram os novos países para conflitos de grande violência. Poderia ter sido feito melhor? Pelo menos tentar fazer melhor? Com ironia ou sabedoria, um amigo meu recordou-me uma frase de John Kennedy: “aqueles que tornam impossíveis as revoluções pacíficas, acabam por tornar inevitáveis as revoluções violentas”;

– Desenvolver: com a adesão de Portugal às então designadas Comunidades Europeias, abriram-se as portas da Europa. Com a descolonização Portugal deixou de ser uma potência marítima. A opção continental trouxe a Portugal o dinheiro dos fundos europeus. Fez-se obra, mas também se desbarataram recursos. 

Após quase quatro décadas de adesão à Europa e sucessivas remessas de fundos europeus, ainda não vivo no país que sonhei. A par do que por aqui foi bem feito (grandes investimentos ensino e na investigação, por exemplo), quando olho para o outro lado da fronteira, constato que Espanha progrediu muitíssimo, quando comparada connosco. De resto, o Portugal tem sido ultrapassado pela quase totalidade dos países da Europa central e oriental. Continuamos na cauda da Europa. É isto mesmo que queremos?

O 25 de Abril valeu a pena mas é necessário saber merecê-lo no dia a dia. Há que fazer mais e melhor!

#50anos25abril