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Da memória ao 25 de Abril      

Carlos Melo dos Reis 

09-05-1964 

Natural de Lisboa 

Docente do Ensino Secundário: Filosofia; Ciência Política; Psicologia; Sociologia 


Da memória ao 25 de Abril

E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto! 
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora 
E com a tinta azulada desse aceno me pinto. 
O cais é a urgência. O embarque é agora.  

Natália Correia, Cântico do país Emerso 

       Não é verdade que os dias tenham todos 24 horas! Dias há que, dada a sua inteireza, extravasam esse tempo formalmente determinado pois marcam, de forma inequívoca, o fim de uma realidade e o começo de outra: há o “antes de” e o “depois de”. O 25 de Abril de 1974 pertence a essa qualidade de dias. 

     Quando naquela quinta-feira acordei cedo para ir para a escola, estava longe de imaginar a magnitude desse dia, nem que ele seria um dos mais felizes da minha vida. 

     As coisas por si só podem ter o seu valor, mas também as avaliamos por comparação. O 25 de abril ganha a sua relevância, que não pode ser esquecida, precisamente porque é uma marca radicalmente disruptiva em relação ao antes. 

     Antes, sentia-se que se vivia num país cinzento e abafado: a sensação de viver numa prisão a céu aberto. Estas serão, porventura, as piores prisões pois os seus muros, ainda que invisíveis, são quotidiana, clara e violentamente reforçados.  

     As palavras que talvez mais tenha ouvido na minha infância, por todo o lado, eram: “não se pode”. Podíamos não saber as razões para a proibição, mas era claro para todos nós que era suposto aceitarmos e vivermos numa realidade onde, acerca de tudo, “não se podia”. E todas as estratégias eram usadas para “não se poder”: a pressão social pesada como chumbo; uma moral tão restritiva quanto hipócrita (“vícios privados – públicas virtudes”); um catolicismo sucedâneo, ao serviço do estado, que impunha um deus malévolo, policiador e torcionário; a escola violenta e propagandeadora do regime, dos seus feitos e das suas figuras; a Censura que tudo controlava, da TV aos espetáculos, da imprensa aos livros; uma vasta rede de informadores zelosos e epidémicos; as “polícias” omnipresentes, fazendo do abuso a lei, da perseguição e da tortura o caminho para a carreira pessoal e sustento confortável das suas famílias; e se tudo isto não bastasse por si só, havia o recurso à prisão, à tortura, ao degredo. 

       A realidade cruel do Estado autoritário, dito “Novo”, colava-se à nossa pele em todo o tempo e em todo o lugar. Nas ditaduras não há separação nem distinção entre o espaço público e o privado: tudo é res publica, tudo diz respeito ao Estado (“ Tudo pela Nação, nada contra a nação”). Uma das memórias em que tive mais cedo consciência dessa omnipresença daninha que se marcava pelo terror, foi precisamente no dia da morte de Salazar. Nunca mais esqueci o local e o acontecimento pois senti, como nunca antes, na minha mão apertada com força e nos olhos da minha mãe um pânico profundo, quando em plena Baixa lisboeta, no calor de julho, com seis anos, lhe perguntei (por ter ouvido comentários em surdina e vozes vindas das rádios, ligadas nos estabelecimentos comerciais) – “o Salazar morreu???!”. Ninguém estava a salvo da desconfiança de qualquer sentimento contra o Estado e dos “legítimos representantes de Deus”, nem as crianças. 

     Previamente, tinha existido também um episódio que não entendi na altura e que me explicaram com o habitual “porque não se pode” e que ilustra bem o autoritarismo omnipresente salazarento: assisti da janela da minha casa, por detrás das cortinas, clandestinamente, à pequena concentração de homens de fatos e óculos escuros que apareceram como vampiros, para retirar um pano vermelho que um vizinho tinha colocado na extremidade de uma longa cana, para assinalar o pombal para as suas aves que treinava para competições de columbofilia. Alguém, diligentemente o tinha denunciado… Sim, porque o pano era vermelho… Aliás, sempre ouvi as minhas tias dizerem: “o menino não diga vermelho. Diz-se encarnado!”. Porquê???! – “Porque não se pode”. 

     Depois, com a entrada na escola, e o consequente envolvimento social que isso acarretava na altura, veio o contato mais direto com a mão pesada e viscosa do fascismo português. A escola era pródiga na missão propagadora do autoritarismo esmagador de mentes e vontades. Desde logo pela bata branca obrigatória para todos os alunos. Os autoritarismos sempre foram grandes admiradores das fardas e uniformes que promovem a erosão e supressão das peculiaridades individuais, a par de uma falsa sensação de igualdade entre classes sociais. A sala de aula também enviava, desde logo, a propaganda do regime: era impossível ficar alheio às três figuras sinistras que presidiam, juntamente com a professora, às nossas horas amargas e penosas. Por cima do quadro negro, duas grandes fotografias (do presidente da República e do presidente do Conselho) ladeavam um muito mais pequeno e escuro crucifixo. Na verdade, não passavam de dois executores a garantir que um famoso rebelde e instaurador de um mundo melhor, continuasse em agonia. Nós não entendíamos isso, mas antes sentíamos que para além da professora (e dando-lhe poder) existiam aquelas figuras que tudo controlavam (no plano terreno/exterior e nas consciências/interior). As manhãs escolares começavam previamente com a sensação de terror, ao acordar, porque se tinha de ir para um lugar de tortura. Chegados, entrávamos alinhados militarmente, cantava-se o hino nacional e desfiavam-se orações, mais à sobrenaturalidade do estado do que à transcendência de Deus. Logo no primeiro dia, a senhora professora “E” tinha declarado: “ Acabaram-se os nomes próprios. Dentro em breve irão para a tropa, para a guerra, defender Portugal. Portanto, tal como lá, aqui apenas existem apelidos!”. E assim eramos desapossados da nossa individualidade e já encaminhados mentalmente pelo regime colonial para uma guerra que chacinava, de um lado e de outro, gente inocente, sem fundamentos válidos de caráter histórico, civilizacional ou moral. Devo desde então, entre outras coisas, a essa senhora o meu fervoroso pacifismo.  

     A violência era transversal: a do Estado, omnipresente na sociedade (opressão, lavagem cerebral, denúncia, perseguição, tortura, guerra, prisão, deportação, morte); a da Escola (assisti quotidianamente à ação disciplinadora da professora sobre os alunos, através de chapadas, murros, puxões e rasgões de orelhas, puxões de cabelos, pontapés, reguadas, humilhações verbais e psicológicas – que apesar das batas “igualitárias” eram mais ou menos distribuídas consoante a classe social dos alunos); nas Famílias, onde não existia o conceito de violência doméstica, mas as agressões que começavam no homem sobre a mulher e desta pelos filhos, se entendiam como educação, disciplina, respeito, valores. 

     Portanto, no dia 25 de Abril de 1974, estava no espaço exato onde estavam a maioria dos portugueses: na rua! Tal como eles, caminhei pelas ruas, finalmente livres da opressão, celebrando a libertação de um povo que estivera condenado à privação de liberdade, de um povo condenado a cumprir tal pena no extenso estabelecimento prisional que era toda a sociedade portuguesa.  

     Quanto a mim, a pergunta fundamental que se deve agora colocar é: “E hoje, como estás com o 25 de abril?”. O autoritarismo e a consequente perda de liberdade, os atropelos aos Direitos Humanos, são um desejo que aflora o coração de muitos que sentem uma necessidade visceral de serem controlados e que todos os outros o sejam também. 

“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.”  

The Open Society and Its EnemiesKarl Popper 

#50anos25abril