Excertos do meu diário: 1º de maio, e dias 25, 26 e 27 de abril
Manuel Proença de Carvalho
Nasceu em Viseu em 5 de janeiro de 1958, tendo com um mês de idade vindo viver para Lisboa.
Frequentou o Colégio Moderno e o Liceu D Pedro V.
Licenciado pela Faculdade de Direito , Universidade Clássica de Lisboa , em julho de 1983( Curso de 1978/1983).
Docente universitário entre 1984 e 2016.
Jurista na Administração Pública entre 1987 e 2024.
Autor de diversas obras publicadas.
Reformado.
Dia 1 de Maio de 1973
Cerca das 19h fui até à Pastelaria Suíça onde estava uma câmara de filmar no edifício e aí em frente aglomerava-se uma grande multidão à espera de ver alguma coisa .
Umas centenas de pessoas na sua maioria jovens estavam à volta da estátua do D Pedro IV quando surgiu de ao pé do teatro D. Maria um polícia com altifalante a dizer: retirar, retirar.
Em seguida, um carro de bombeiros começou a utilizar mangueiras de água sobre as pessoas que se acumulavam à volta e eu ainda levei com alguma água .
Abriguei-me num sítio (observação : mais tarde seria um edifício dos Correios dos Restauradores)e atirei-me para o chão à entrada . Um sujeito levantou-me todo chateado porque eu fiquei a barrar a entrada .
Vi então uma brigada de 30 a 40 policias com cassetetes a correr para a estátua.
Fugimos todos para a estação de comboios do Rossio onde algumas pessoas começaram a fechar as portas , pois a polícia podia dirigir-se para ali dizia-se .
Na estação aglomeravam-se milhares de pessoas .
Dia 25 de abril de 1974
Sou acordado às 6h53 na manhã pela minha mãe.
Minha mãe esbaforida: está a haver um golpe de Estado ninguém pode sair à rua.
A D. Teresa (observação : a mãe do conhecido empresário musical Álvaro Covões que vivia no andar por cima do meu) telefonou para a minha casa a dizer o que se estava a passar , e que as emissoras tinham sido ocupadas.
Ligaram-se as emissoras , nada, passado um bocado o telefone tocou , era a D Cacilda a explicar que desde as não sei quantas da manhã estavam a ler comunicados no Rádio Clube .
Então eu a partir dessa altura , acreditei .
Comecei a ouvir comunicados e a voz do Luís Filipe Costa : na madrugada do 25 de abril ,as forças armadas desencadearam uma série de ações para porem fim ao regime vigente ; a seguir, teciam-se uma série de considerações.
Acabava da seguinte maneira :pede-se à população para aguardar nas suas residências calmamente e não sair de casa, para evitar derramamento de sangue .Este comunicado repetiu-se várias vezes .
Eu e o meu pai saímos de casa e fomos até à estação de comboio para ouvir o que diziam as pessoas que vinham do centro de Lisboa .
Vimos grandes aglomerações e as pessoas interrogavam-se se haviam de ir para o trabalho ou não .
Vimos o “Pigarço” aqui do 5º andar esbaforido cheio de cagaço ( observação : tido como afeto ao regime), só de ver era de morrer a rir , e depois o Sr Valentim que é um indivíduo que mora aqui na praceta e que tinha vindo do centro de Lisboa .
A primeira coisa que ele disse foi que tinha visto o Barradas de Oliveira , diretor da Época , um fascista que vinha às vezes à televisão falar sobre política , o certo dizia é que ele cavava pelo Rossio, que era de ver .O carro dele foi incendiado por populares disse ele , e como o dele vários outros de jornalistas do jornal Época.
O Alvarinho ( observação : o empresário Álvaro Covões então com 11 anos) e a D .Teresa vieram para minha casa e aqui passariam o dia .
Regressando eu e o meu pai a casa nunca mais nos despegámos da telefonia a ouvir os comunicados .
Não fui às aulas nesse dia e o meu pai não foi trabalhar ( observação: meu pai Manuel Carvalho- preso político em 1947/ 1948- jornalista e cronista do Diário de Coimbra e do Jornal do Fundão era em 25 de abril de 74 secretário-geral do Grémio de Exportação de Vinhos , organismo sediado mesmo em frente ao Quartel do Largo do Carmo).
Almoçámos e ligámos a televisão , esta começou a dar um episódio da série Daktarie sem sequer relatar o que se estava a passar .
Depois disto, apareceu um indivíduo na televisão que começa a falar mas logo a seguir era-lhe cortada a palavra. O sujeito apresentava um ar assustado e bem tentou por umas duas ou três vezes .Via-se que não estava habituado a ir à televisão.
Mais tarde explicou a Rádio que essa pessoa não podia falar porque as forças resistentes afetas ao regime cortavam a emissão de Monsanto .
Como o Grémio de Exportação de Vinhos é no Largo do Carmo ( observação: atual n º15 do Largo do Carmo), o meu pai que é o Secretário Geral telefonou a um ou dois subordinados e mandou-o fechar , pois as coisas ali estavam mesmo quentes .
No Largo do Carmo tinha-se aglomerado imensa gente e muitos populares arrombariam depois as portas do Grémio (saberia o meu pai no dia seguinte )para se servirem deste como camarote com vista para a frente do Quartel. Dizendo o ” vinho do Marcello ” ( observação : contaram no dia seguinte ao meu pai) , muitos outros populares entraram lá, beberam e beberam e depois estilhaçaram as garrafas ali mesmo .
Quando no dia seguinte o meu pai lá entrou , eram montes e montes de estilhaços. E 3000 garrafas ao ar e aparelhos caríssimos que serviam para analisar o vinho todos destruídos .Um prejuízo para cima de 400 contos , disse o meu pai !( observação : a 26 de abril terá falado com oficiais para lá colocarem soldados para os populares não prosseguirem com a destruição).
A televisão quando tudo já parecia calmo, começou a informar com extensas reportagens mostrando a grande adesão do povo ao movimento libertador .
Viu-se a rendição da Guarda Republicana e Marcello Caetano a sair do Quartel do Carmo dentro de um tanque , se não era mesmo ali linchado pela populaça.
Só a Pide ainda resistia e quando a multidão se juntou à frente da sua sede ameaçando os agentes que lá se encontravam , lá de dentro dispararam uma rajada de metralhadora e ceifaram quatro vidas .
E foi por volta da uma da manhã que apareceu na televisão a Junta de Salvação Nacional composta pelo General Spínola que a chefiava, General Costa Gomes e mais outros 5 militares .Foi então a comunicação ao país .
Eram 3 da manhã quando me deitei , pois ainda fui para a cama ler os jornais mais pormenorizadamente .Estive 20 horas acordado !
Dia 26 de abril
Fiz greve às aulas .
Da parte da tarde fui à ” Baixa” com o meu pai .E enquanto este foi ter com o Sampaio ( observação : o conhecido pedagogo José Salvado Sampaio), o Belarmino e outros amigos ao Café Nicola , eu fui dar uma volta de reconhecimento .
Toda a ” Baixa” encontrava-se cheia de soldados com cara de sono e metralhadora debaixo do braço .Eu como é lógico dirigi-me logo para o Largo do Carmo .
O Largo do Carmo estava cheio de soldados e tanques por todos os lados . Muita gente andava por ali .Segui para cima até ao Largo Trindade , aí estava uma multidão .
Do Largo Trindade podiam-se observar as ruas vizinhas.
As Forças Armadas cercavam toda a região e as pessoas punham -se em bicos de pé para espreitar uns sobre os outros .
Injuriava-se a Pide.
De repente, começam a ouvir-se rajadas de metralhadora por toda a parte e vejo os soldados a recuarem correndo em direção ao aglomerado da multidão , retrocedendo assim das suas posições .
Aquele mar de gente começou a fugir precipitada e desordenadamente .Muitos populares caíram e foram pisados .Mantive-me praticamente calmo , mas tive que começar a correr e bem .
Primeiro, porque se não me mexesse era esmagado .Segundo, ao ver aquela malta toda em movimento apercebi-me do caso e pus-me a correr velozmente.
Aquela multidão também tinha uma razão entre outras , é que no dia anterior tinham morrido 4 populares às balas da Pide .
A fuga daquelas massas populares não demorou muito tempo , pois metemo-nos muitos dentro de uma casa antiga ( observação : o primeiro ou segundo edifício a subir do Largo do Carmo para o Largo Trindade de quem sobe do lado direito ), isto é, dentro daquelas larguíssimas escadarias depois de transpor aquela larga entrada e subirmos a correr até ao topo.
Isto, claro, não foi espontâneo , pois quando já íamos a correr para o Carmo foram dois ou três soldados que estavam ali que nos mandaram entrar. Prepararam as metralhadoras e ficaram à porta fechando a pesada porta de madeira .
Lá dentro o clima era efervescente , várias centenas de pessoas trepavam pelas escadas acima. Ao fim de um certo tempo e quando tudo já parecia mais calmo , a pesada porta de madeira abriu-se .
Fui ter com o meu pai ao Rossio como tinha combinado .Quando foi das rajadas de metralhadora , o meu pai passeava com dois ou três amigos ao pé do Chiado O que ele fez foi meter-se dentro do Eduardo Martins ,e acabou lá fechado com os empregados.
Passado pouco tempo ,surge uma grande manifestação pelo Rossio, Restauradores e Avenida da Liberdade , manifestação de regozijo pela queda do fascismo .Imensa gente passou à Avenida da Liberdade vinda do Rossio .
Eu e o meu pai metemo-nos atrás e dentro daquela esfusiante multidão que era cada vez maior ( as pessoas que estavam nos passeios iam-se juntando).Depois, seguimos até ao Marquês de Pombal.
As viaturas que vinham para baixo não podiam circular no meio daqueles milhares de pessoas. Mas os automobilistas não perdiam a calma , rindo, comentando , fazendo o v da vitória , buzinando ao compasso dos slogans .
Viam-se indivíduos em cima dos tejadilhos dos carros , outros com gravadores, etc .
Um trazia um guarda chuva velho e presos ao seu cabo encontravam-se varias perdizes mortas e cada uma delas com um papelinho, Rui Patrício, Moreira Baptista , Silva Cunha e mais nomes de personalidades ligadas ao regime fascista. Por onde o dono daquela invenção passava , as pessoas riam e aplaudiam , gritando slogans como o povo unido jamais será vencido .
Quando aquela massa de gente chegou em frente ao Diário de Notícias, começámos todos a chamar de fascistas aos que estavam à janela .
Por várias vezes se cantou o Hino Nacional naquela manifestação inesquecível.
Chegados ao Marquês , a multidão estacou e continuou a manifestar-se ruidosamente.
E eu e o meu pai felicíssimos pelo que se estava a acontecer .E ele mal acreditando no que via com os seus olhos.
Dia 27 de abril
Da parte da manhã ( sábado ) não saí de casa.
De tarde enquanto o meu pai ia ter com os amigos ao café Nicola , eu dirigi-me logo para estátua D Pedro IV no mesmo Rossio onde havia uma grande aglomeração de gente .
Era um comício do MRPP e um dos oradores era o Saldanha Sanches . Alguém referiu bem alto que não era só o MRPP que devia exprimir as suas opiniões , o que eu aplaudi .
Panfletos circulavam por todo o lado referindo-se ao movimento do 25 de abril e dizendo que o Primeiro de maio era vermelho, e que há poucas horas autoridades militares burguesas tinham tomado o poder .O Saldanha Sanches discursava : nem mais um soldado paras colónias .
Era barulho por todo o lado, slogans , a multidão atrás dos jeeps oferecendo cigarros e outras coisas aos soldados , os populares que subiam para cima dos jeeps etc .
A ” Baixa ” ainda estava como no dia anterior com soldados por toda a parte colocados em pontos estratégicos.
De repente, começou a caça aos pides no meio de corridas desenfreadas .Se os pides eram apanhados pela população eram mesmo ali linchados , mas as forças armadas intervieram .
Eu comecei a correr no meio da multidão espalhada entre o Rossio e os Restauradores. Ouviam-se disparos dados pelos militares , muitos destes disparos eram dados para o ar para ver se continham a multidão.
Os pides estavam misturados com a população , os pides andavam pelos telhados , era o que se ouvia , ” aquele é da pide”, era o que mais se gritava ,mais berros , mais correrias e íamos lá para frente ver o que sucedia, mais disparos e disparos de metralhadora .
Acabou tudo em frente à esquadra da polícia junto ao Teatro Nacional, aquela esquadra de onde partiam sempre as polícias de choque para dar pancada , reprimir e prender os antifascistas .
Eu ainda me lembro perfeitamente do que tinha acontecido no Primeiro de maio de 1973
Entretanto, começa a chover mas a multidão não arreda pé ao mesmo tempo que misturada com a tropa observa fixa e atentamente os telhados .
Alguns pides tinham sido apanhados e levados para a esquadra enquanto os populares continuavam a gritar “Morte à Pide “e esperavam ansiosamente que aqueles saíssem da esquadra para se meterem nas camionetas que os levariam a Caxias .Seria essa a altura aguardada pelos populares que estavam mesmo junto à esquadra para dar cabo dos pides .
Ouviam-se mais disparos e os oficiais com altifalantes iam pedindo calma à população.
A chuva continuava a cair impiedosamente e alguns populares que tinham guarda chuvas tapavam os soldados dos oficiais enquanto os primeiros se baixavam .A razão era para darem garrafas de vinho que os soldados iam bebendo.
Ao fim de algumas horas ,a multidão começou a dispersar assim que os pides foram metidos nas camionetas rumo a Caxias .
Se não fossem as Forças armadas aqueles que tinham entrado para as camionetas tinham sido linchados.
Seguidamente , foi uma manifestação (os que foram na manifestação eram apenas uma parte dos milhares que estavam apinhados na rua do Regedor em frente à esquadra) pela Avenida da Liberdade acima até ao Marquês ( nada evidentemente que se comparasse com a da véspera), com os jeeps militares a passar no meio de vivas, berros, slogans e o Hino Nacional.
Manuel Proença de Carvalho
Nota do autor:
Divulgo excertos do meu diário do 1º de maio de 1973 (escrito no próprio dia) e dos dias 25,26 e 27de abril de 1974 ( escrito na semana seguinte aos acontecimentos relatados), pedindo já a compreensão pela escrita dos 15/16 anos que por graça e veracidade optei por reproduzir na sua quase integralidade.
Anoto que alguns episódios são muito pouco ou mesmo nada conhecidos, daí e para evitar o cliché não ter enviado a transcrição do meu diário do 1º de maio de 1974 sobre as maiores concentrações de massas a que assisti até hoje .
As observações integradas nos diários são naturalmente feitas à data de hoje.