A Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril inaugurou esta quinta-feira, dia 12 de setembro, «Amílcar Cabral, uma Exposição», na sua versão itinerante, na Amadora, no Espaço Delfim Guimarães. Até 30 de outubro, a Exposição pode ser visitada de terça-feira a sábado, entre as 15h e as 19h. A entrada é livre.
Amílcar Cabral foi uma figura destacada do século XX. A sua liderança incentivou a mobilização popular contra o colonialismo português e trouxe-lhe a admiração de jornalistas, dirigentes políticos, estrategas militares, intelectuais e artistas em diferentes partes do mundo — de Conacri a Estocolmo, passando por Argel, Havana, Praga ou Pequim. A morte precoce não o devolveu ao esquecimento. A sua memória está presente no imaginário político e no nome das ruas de vários países do hemisfério Sul, da África do Sul ao Brasil. A sua vida é hoje motivo de renovado interesse em África, assim como nas periferias de capitais europeias, em universidades ocidentais ou nos principais canais televisivos mundiais.
Textos de José Neves e Leonor Pires Martins, no âmbito de “Amílcar Cabral, Uma Exposição”.
Amílcar Cabral nasceu em 1924 em Bafatá, na Guiné, sob domínio colonial português. Aos oito anos, a família levou‑o para Cabo Verde. Estudou no Liceu de São Vicente, no Mindelo, e viveu na Praia, onde foi dirigente associativo e acusou interesse pelo futebol e pela criação literária.
Em 1945, mudou‑se para Lisboa, a fim de estudar Agronomia. Conheceu as avenidas e as esplanadas da capital do Império, da Casal Ribeiro ao Palladium. Frequentou e foi dirigente da Casa dos Estudantes do Império. Leu livros de Marx e de Engels, assim como do escritor russo Dostoiévski e do trabalhista britânico Harold Laski. Namorou e correspondeu‑se com Maria Helena Rodrigues, também aluna do Instituto Superior de Agronomia (ISA), com quem viria a casar em 1951.
Amílcar Cabral conclui a licenciatura em fevereiro de 1952, com uma monografia em torno do problema da erosão do solo na região alentejana de Cuba. A temática não era estranha à sua circunstância cabo‑verdiana, arquipélago que revisitara em 1949, em período de férias, como testemunha o poema «Regresso…». Ainda em 1952, regressa à Guiné, ao serviço do Estado colonial português, por esses anos internacionalmente pressionado a perfilar um horizonte de desenvolvimento para os territórios e populações africanas. Nos anos de 1953‑54, dirige a equipa alocada à missão de realização do recenseamento agrícola da Guiné, contando com a colaboração da sua mulher «em todos os trabalhos». O respetivo relatório foi publicado em 1956.
O seu desempenho profissional na Guiné começa por ser positivamente apreciado pela tutela. Mas as fichas de avaliação que os arquivos conservam indicam igualmente o surgimento de conflitos com os seus superiores. Em 1955, regressa a Portugal e requer a rescisão do contrato com o agora designado Ministério do Ultramar. Em seguida, vai a Angola várias vezes, trabalhar para empresas agrícolas privadas. De caminho, reúne com militantes que virão a estar na origem do MPLA, o Movimento Popular de Libertação de Angola. A perceção da exploração de classe e da dominação racial em Luanda causa‑lhe repulsa.
Logo nos anos 40, na correspondência que mantém com Maria Helena, Amílcar Cabral critica o racismo, a que é quotidianamente exposto em Lisboa e de que lhe chegam notícias vindas do exterior. Mas é durante os anos 50 que Cabral se compromete definitivamente com a missão de derrubar o colonialismo português em África. E será no final da década que a polícia política portuguesa, a PIDE, mais se sobressaltará com as suas atividades políticas.
É a década da Conferência de Bandung, realizada na Indonésia em abril de 1955, reunindo vontades anti‑imperialistas dispersas, lançando em novos termos a força da contestação anticolonial. Logo no mês de junho de 1955, nas prisões da ditadura do Estado Novo, Jaime Serra, militante comunista português, assinalava que «a sua realização terá efeitos decisivos na luta libertadora dos povos coloniais», acrescentando: «Acontecimentos coloniais como por exemplo o massacre de São Tomé, em 1953, terão, após a Conferência de Bandung, repercussões muito diferentes do que então tiveram». Por sua vez, os jovens anticolonialistas africanos em Lisboa cedo farão daquela conferência um momento histórico: em abril de 1957, celebram o segundo aniversário de Bandung com um jantar, ao qual não falta uma mensagem especial do senegalês Léopold Senghor, por essa altura de visita ao país.
Amílcar Cabral não esteve em Bandung, mas não deixa de ser sugestivo o erro de algumas notas biográficas que ainda hoje aí o situam. Serão, todavia, acontecimentos como a independência da República da Guiné, que em 1958 se liberta do colonialismo francês, e o massacre de Pidjiguiti, a 3 de agosto de 1959, que mais imediatamente motivarão Cabral a regressar definitivamente a África. Naquele dia de agosto, no cais de Pidjiguiti, em Bissau, as forças coloniais portuguesas matam dezenas de trabalhadores guineenses em greve. Poucas semanas depois, em finais de setembro, em carta enviada a Lúcio Lara, Cabral escreve: «Temos de caminhar firmemente até à vitória final». Nos meses seguintes, Cabral trata de reunir as condições para deixar de vez Portugal, convencendo Maria Helena a acompanhá-lo.
A partir de 1960, será já a partir de Conacri que Amílcar Cabral e o PAIGC comandarão a luta de libertação.
A luta armada desenvolver-se-á nos territórios guineenses sob domínio português a partir de 1963. Nas zonas que vão sendo libertadas da interferência colonial, são criados postos médicos, escolas e os Armazéns do Povo, que procuram responder a necessidades alimentares e de vestuário das populações locais. A resolução dos problemas materiais da vida quotidiana apela ao humanismo militante e à formação ideológica de Cabral, à luz da qual a libertação nacional implica a transformação económica das estruturas sociais.
A partir de Conacri, Cabral faz incursões no território da futura Guiné-Bissau e viaja até muitos outros países, de Marrocos à Finlândia. Os progressos militares do PAIGC e a vida nas zonas libertadas suscitam curiosidade e apoio em diferentes pontos do mundo, tanto mais que desde cedo havia sido tecida uma rede de solidariedade militante que acabaria por conferir notoriedade internacional à luta de libertação.
Nesta rede, a ação de indivíduos como o britânico Basil Davidson e o francês Gérard Chaliand foi, desde início, importante. Mas coletivos anticolonialistas e organizações de outras regiões igualmente participam na solidariedade com as lutas de libertação. São criados comités de apoio aos movimentos de libertação em mais do que um país da Europa Ocidental. O apoio dos regimes socialistas, de Pequim a Praga, mostrar-se-á ainda mais decisivo. A URSS fornece armamento e treino militar ao PAIGC, assim como acolhimento e formação escolar a filhos de dirigentes e quadros do Partido. Em 1967, sob a liderança de Amélia Araújo, foi com suporte material soviético, e mais tarde sueco, que a Rádio Libertação permitiu a mais populações sintonizarem a voz de Cabral e dos seus camaradas.
Simulação de emissão da Rádio Libertação, a partir das seguintes gravações: indicativo Rádio Libertação, excertos de editoriais de Amélia Araújo e canções provenientes dos LPs Hora de Despedida Branco-le (1971, Ed. PAIGC, IUS e SYL) e Poesia Caboverdeana – Protesto e Luta (1970, Ed. PAIGC; Serviços Culturais). Montagem e seleção da investigadora Inês Nascimento Rodrigues.
A partir de 1969, os contornos e as feições da figura de Cabral tornam-se cada vez mais indissociáveis das fotografias realizadas pela italiana Bruna Polimeni, as quais circulam por todo o mundo sob vários formatos. As conexões com o comunismo e com as esquerdas italianas permitiriam ainda que, em 1970, Amílcar Cabral, o angolano Agostinho Neto e o moçambicano Marcelino dos Santos fossem recebidos em audiência pelo papa Paulo VI, para embaraço da ditadura portuguesa.
O interesse fotográfico de Polimeni pela figura de Cabral somava‑se ao do cinema. A importância da câmara de filmar é estimada pelo próprio PAIGC, que envia para estudarem em Cuba aqueles que viriam a tornar‑se nos primeiros cineastas guineenses, casos de Flora Gomes e de Sana Na N’Hada. É de Santiago Álvarez, realizador de que os jovens guineenses foram assistentes, a autoria de um pequeno noticiário sobre a Conferência Tricontinental de 1966, em Havana, onde a oratória de Fidel Castro engrandece o líder do PAIGC. Em finais de 1970, a câmara de filmar acompanhará também o jovem Mikko Phyälä, então secretário da União Nacional de Estudantes da Finlândia, em viagem às zonas libertadas. A partir de 1960, será já a partir de Conacri que Amílcar Cabral e o PAIGC comandarão a luta de libertação.
Onde Amílcar Cabral não mais colocará os pés é em Portugal. Mas a distância de segurança não o impede de querer estabelecer uma diferença de natureza entre os poderes e o povo do país colonizador. Em 1963, o PAIGC dirige uma carta aos soldados portugueses, avisando‑os do início da luta armada e procurando que se demarquem da guerra a que eram conduzidos.
Por sua vez, ao longo dos anos, há sectores da oposição portuguesa que se mostrarão solidários com a luta do PAIGC. Em 1966, Amílcar Cabral é entrevistado pela emissora Voz da Liberdade, da Frente Patriótica de Libertação Nacional, que opera a partir de Argel, cidade que Cabral visitou várias vezes. (Numa dessas visitas, e como era hábito fazer nos seus périplos diplomáticos, remete lembranças postais a Ana Maria Cabral, sua segunda mulher). Em 1971, Aurélio Santos e a Rádio Portugal Livre, emissora do PCP que transmite a partir da Roménia, fazem reportagem nas regiões libertadas da Guiné.
Portugueses como Fernando Baginha, que deixará a Suécia — para onde havia desertado — rumo a Conacri, chegam mesmo a juntar‑se às fileiras do PAIGC e à sua escola‑piloto. Foi, aliás, na Suécia, um dos poucos países ocidentais que então se encontrava fora da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que se produziram muitos dos manuais das escolas das zonas libertadas.
Em 1972, em Conacri, por ocasião das cerimónias fúnebres do ex‑presidente ganês Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral discursa perante milhares de pessoas sobre o «cancro da traição». Poucos meses depois, no dia 20 de janeiro de 1973, naquela mesma cidade, é assassinado a tiro por elementos do seu próprio partido que se suspeita estarem conluiados com as autoridades portuguesas. Independentemente das diferentes teses em torno do assassinato de Amílcar Cabral, o acontecimento tem um impacto mediático global imediato. Sucedem‑se manifestações de pesar nas ruas como nas instituições.
A crescente perceção do perigo que corria não abalou a determinação de Cabral nos seus últimos meses de vida. Em 1972, em carta enviada ao seu camarada Pedro Pires, dava conta de novos apoios obtidos a Leste — agora na Roménia e na Hungria — e transmitia indicações e conselhos quanto a um futuro ataque ao quartel português em Guiledje. Não menos importante, anunciava que se deslocaria novamente à URSS, «a ver se convenço os amigos a nos darem a Strella». Em maio de 1973, quatro meses após o assassinato de Cabral, a tomada de Guiledje será concretizada, feito militar assinalado no quartel com a exposição de um retrato de Cabral sob a bandeira hasteada do PAIGC. Apesar da morte de Cabral, a independência aproximava‑se. Preparada desde 1972, a I Assembleia Nacional Popular da Guiné ocorrerá em setembro de 1973, em Madina de Boé, e no dia 24 será unilateralmente declarada a independência. Depois do 25 de Abril de 1974, até mesmo o Estado português reconheceria o fim do seu império colonial.
Foi através dos primeiros perfis biográficos elaborados pelo PAIGC para a imprensa internacional, antes ainda do início da luta armada, que começou por ser fixada a memória de Amílcar Cabral. Ao longo dos anos seguintes, apoiando‑se também na itinerância de Cabral, as suas palavras passaram a ter eco em diferentes contextos nacionais. E com o assassinato, em 1973, a dimensão heroica da figura ampliou‑se dramaticamente. Com contributos, entre outros, dos artistas gráficos da OSPAAAL, a Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, da África e da América Latina, a imagem de Cabral tornou‑se um ícone anti‑imperialista.
Na Guiné‑Bissau e em Cabo-Verde, Cabral foi explicitamente celebrado como fundador da nação, nos termos que a imaginação institucional autorizou: o seu rosto apareceu em selos postais e nas moedas e notas oficiais; o seu nome designou os mais altos títulos honoríficos; o dia da sua morte tornou‑se feriado no calendário de ambos os países. Em 1976, o seu cadáver foi trasladado do Mausoléu de Camayenne, em Conacri, para o Forte da Amura, em Bissau, numa cerimónia com honras de Estado que seria minuciosamente descrita pelo jornal Nô Pintcha. Em 1979 foi criada a Taça Amílcar Cabral, competição futebolística aberta à participação de Guiné‑Bissau e de Cabo Verde, mas também do Senegal, da Guiné ou da Mauritânia, entre outros países da região.
A figura de Amílcar Cabral também compareceu nos dias do 25 de Abril português. Esteve presente nos primeiros protestos contra o embarque de soldados para as colónias. No Porto, por iniciativa de estudantes maoístas, o Liceu Dom Manuel foi durante algum tempo oficiosamente renomeado Liceu Amílcar Cabral. Em Lisboa, a Ar.Co organizou a exposição Retratos de Amílcar Cabral, do pintor Luís Noronha da Costa. José Mário Branco cantou «viva Amílcar Cabral!» e Jorge Peixinho compôs «Elegia a Amílcar Cabral».
“CONAKRY” de Filipa César, Grada Kilomba e Diana McCarty
Série O Mundo de Amílcar Cabral
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