Os portugueses e os espanhóis que construíram e protagonizaram a mudança democrática eram muito diferentes daqueles a quem, 40 anos antes, a ditadura salazarista fora imposta ou que sobreviveram aos anos terríveis da guerra e da pós-guerra espanhola. A economia mudara de forma estrutural mas num contexto de pobreza, de falta de expectativas dos jovens trabalhadores e estudantes sujeitos às regras apertadas do autoritarismo, ou à guerra que, no caso português, os arrastava para África. Tudo isto fez com que, desde o final dos anos 50, milhões de mulheres e homens deixassem o campo e as aldeias do interior e tentassem mudar de vida quer nas grandes cidades portuguesas e espanholas, quer em França e na Alemanha.
A conquista da democracia, além de se fazer no campo político e social (pelo direito de associação sindical e de greve, pelo direito a uma habitação digna), fez-se também de forma muito marcada em torno de batalhas (nos anos 70 mais intensas em Espanha que em Portugal) que duravam havia muito tempo: contra a censura e a repressão cultural e sexual, pelos direitos cívicos, políticos e reprodutivos das mulheres (divórcio, contraceção, o aborto) e das minorias LGBTI+.
A canção de intervenção encontra-se intimamente ligada à Revolução de 1974, não apenas ao movimento militar em si, no qual desempenharam um papel simbólico muito relevante as canções que serviram de senha para a revolução (Depois do Adeus e Grândola), mas a todo o processo de luta que antecedeu o 25 de Abril de 1974.
Podemos localizar nos anos 1940 o arranque da canção de intervenção política e social, criticando o poder autoritário e fascista pelas precárias condições de vida do povo, e desenvolve-se a partir de 1960 pelo agravamento da situação social e política devido principalmente à Guerra Colonial. Depois do 25 de Abril, a canção de intervenção vai ter um importante papel na mobilização dos movimentos populares e nas lutas políticas que eles protagonizam, mantendo-se com grande presença pública até ao início da década de 80. Nesse processo fundam-se editoras, multiplicam-se os cantos livres nos campos e nas fábricas, criam-se grupos musicais e centenas de canções são lançadas na luta política.
Os problemas sociais e económicos que continuam a atravessar a sociedade portuguesa, designadamente nas situações de crise económica e de empobrecimento das classes populares no nosso século XXI, nunca deixaram de suscitar novas gerações de canção de intervenção, mesmo que a designação possa não ser assumida tão abertamente como era antes.
Nota do autor da foto: “As malas são um dos elementos da nossa vida através dos quais vemos como o tempo passa, mas as caixas de cartão atadas com corda são outra coisa. Foi fascinante ver como as pessoas conseguiam sair dos comboios naquela época com galinhas, sacos de comida… e caixas de cartão.”
Fonte: CDMH, FOTOGRAFÍAS_ENRIQUE_CANO,1,24 (fotografia de Enrique Cano)
“Estava amena e sem vento a noite de 8 de agosto de 1974, em Lisboa. Normal, numa época do ano em que as temperaturas facilmente ultrapassam os 30 graus Celsius como nesse dia tinha acontecido. Na Avenida da Liberdade uma fila enorme subia o passeio até lá acima, na direção do Hotel Tivoli. Esperávamos, pacientes, o momento de entrar no cinema São Jorge. Lotação esgotada: diziam os avisos na bilheteira, aliás anunciados nas páginas dos jornais desse dia. A imponente sala que a Rank fizera inaugurar em 1950, Prémio Valmor de arquitetura, a primeira das “grandes catedrais” do cinema (como lhe chamou Margarida Acciaiuolli), era uma das maiores do país — 1 827 lugares, divididos entre plateia, balcão de luxo, balcão central e balcão superior — antes de, em 1982, a terem retalhado nas três partes em que, agora, jaz. Estávamos pois, muitos, nessa noite em que se estreava, em Portugal, O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci”, escreve Jorge Leitão Ramos, no Expresso.
Uma vez levantada a censura que a ditadura havia imposto às artes e as todas as manifestações de cultura, o consumo de formas de cultura antes proibidas tornou-se inevitavelmente popular. A censura salazarista, extraordinariamente moralista e reacionária, fora especialmente repressiva na representação da sexualidade, quer no campo literário, quer no plástico e audiovisual. Depois do 25 de Abril, escreve Isabel Freire, “folheando jornais publicados entre 1974 e 1976, verificamos que são ‘mais que muitos’ os anúncios publicitários a filmes que invocam a sexualidade como argumento central, seja no título, nas fotografias promocionais ou nos slogans que os apresentam. Nos cartazes a estas películas anuncia-se a queda do tabu («o acto de amor… como jamais foi visto no écran»). Promete-se a transgressão («um filme que perturba pela recusa de tabus sociais e sexuais!»). (…) E reivindica-se o direito à sexualidade feminina («a rapariga que queria saber tudo sobre sexo, política e felicidade!»).” (“A pornografia e a discussão que chegou com a Revolução”).
O Último Tango em Paris, do realizador italiano Bernardo Bertolucci, foi um dos filmes emblemáticos do fim da censura depois do 25 de abril. Algumas salas, como esta em Portimão, faziam recomendações os espetadores quanto ao seu comportamento.
Como escreve Ana Sofia Ferreira, “o Estado Novo, tal como todos os regimes fascistas, remeteu a mulher para a esfera doméstica, enaltecendo o seu papel como esposa e mãe. (…) A família (…) assentava numa hierarquia rígida de poder e autoridade, do marido sobre a mulher e dos pais sobre os filhos, e também numa divisão do trabalho: o pai fora de casa, a trabalhar, a prover o sustento da família; a mulher em casa, dedicada ao lar, restringida ao espaço doméstico, às tarefas da casa, à educação dos filhos e aos cuidados dos idosos.”
Depois do 25 de Abril, as mulheres portuguesas reivindicaram, também elas, o direito à sua autodeterminação, depois de terem sido “educadas desde a infância a ser submissas ao poder do pai, dos irmãos e, mais tarde, do marido.” (Ana Sofia Ferreira) Oito meses depois do início da Revolução quiseram manifestar-se num espaço tão emblemático da cidade de Lisboa quanto o Parque Eduardo VII. “A ideia era escolher um sítio deserto, sem casas e carros, onde pudéssemos queimar símbolos da opressão das mulheres”, como objetos utilizados na lida doméstica, revistas pornográficas, o código civil português, livros de autores machistas, brinquedos sexistas, entre outros. “E foi isto que ficou combinado entre nós. Decidimos que uma das mulheres iria vestida de noiva, uma outra de dona de casa e uma terceira de vamp. Queríamos desconstruir os estereótipos à volta das mulheres”, lembra a escritora Maria Teresa Horta em declarações ao Esquerda.net.
De acordo com Teresa Horta, a iniciativa foi anunciada na comunicação social. O Expresso publicou uma notícia na primeira página, “uma coluna de alto a baixo”, em que dizia que as feministas iam estar no Parque Eduardo VII a determinada hora a fazer strip-tease. “Uma mentira descarada. Ficámos estarrecidas. Era inconcebível!”, referiu Teresa Horta.
No próprio dia 13 de janeiro de 1975, Teresa Horta estava em casa de Madalena Barbosa, no topo do Parque Eduardo VII. As feministas, cerca de 15, preparavam-se para a iniciativa quando se aperceberam que um grande grupo de homens subia o Parque Eduardo VII na sua direção. Em pouco tempo as manifestantes viram-se rodeadas por centenas de homens numa evidente atitude agressiva.
A Revolução traria mudanças significativas para a vida das mulheres: “consagrou na Constituição de 1976 o princípio da igualdade entre homens e mulheres; permitiu o acesso ao divórcio para as pessoas casadas pela Igreja Católica; o direito de voto universal e o acesso das mulheres a carreiras profissionais até aí interditas, como a magistratura, a diplomacia e a todos os cargos da carreira administrativa local; aboliu a lei que permitia ao homem abrir a correspondência da mulher e revogou as disposições que reduziam ou isentavam de crimes os homens, em virtude de as vítimas serem suas mulheres ou filhas; fixou um valor para o salário mínimo e determinou o direito ao salário igual para trabalho igual. As mulheres conquistaram uma série de direitos nas áreas da segurança social e da família” (Ana Sofia Ferreira). O que, contudo, deixou por reconhecer foi um dos direitos reprodutivos centrais da vida das mulheres: o da interrupção voluntária da gravidez.
Em 1970, de um total de 2,8 milhões de famílias, 35 mil viviam em barracas e 620 mil viviam em casas sobreocupadas. Cerca de 53% das habitações não tinham água canalizada, 48% não tinham eletricidade e 57% não tinham saneamento básico.
O Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) foi um programa público de construção habitacional surgido após a Revolução dos Cravos que se propôs colmatar as necessidades habitacionais de populações desfavorecidas em Portugal.
As operações SAAL, inseridas no clima social de ação popular que caracterizaram os anos seguintes ao 25 de Abril de 1974, tornaram-se uma referência em termos de participação popular em processos de desenho habitacional e urbano. A interação entre brigadas técnicas de arquitetos e a população, organizada em associações de moradores, contribuiu para o que é considerado um momento ímpar na história da arquitetura portuguesa.
Manifestação no Porto, em outubro de 1975, em defesa do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), um programa público de construção habitacional surgido após a Revolução, que propunha colmatar as necessidades habitacionais de populações desfavorecidas no espaço urbano. O SAAL foi extinto em outubro de 1976.
O Conselho da Revolução é institucionalizado, depois de 11 de Março de 1975, como um órgão de soberania, apresentando-se como o motor do processo revolucionário. Era presidido pelo Presidente da República e o Primeiro-Ministro também tinha assento nele.
As primeiras medidas tomadas pelo Conselho, talvez as mais importantes, foram as nacionalizações da banca e dos seguros e a Reforma Agrária. Mas as coisas não correram de forma linear. “No verão de 1975, o motor da revolução gripou”, diz a investigadora Maria Inácia Rezola ao Expresso. “O Conselho da Revolução vai dividir-se numa série de fações ou grupos que não estão de acordo quanto ao rumo a seguir”.
A revisão constitucional de 1982 (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro) extinguiu o Conselho da Revolução, ficando as funções que exercia cometidas ao Conselho de Estado e ao Tribunal Constitucional, órgãos então criados.
A 31 de outubro de 1975, o Conselho da Revolução aprova um documento sobre “O reconhecimento do direito ao controlo organizado da produção pelos trabalhadores em todos os ramos da actividade da economia nacional”. O princípio do controlo operário foi inscrito na Constituição aprovada em 1976.
A movida representou uma rutura com a cultura autoritária do franquismo. Para o autor da fotografia, “a mistura cultural [da «movida»] era divertida e curiosa, mas como tudo o que é diferente, não se misturava. Havia os credenciados, como os donos de La Movida, e depois havia o resto”.
Comício da Associação da Mulher em defesa do direito ao divórcio (Madrid, 19 de maio de 1977). Reivindicado pelos movimentos feministas e pelos partidos de esquerda, foi rejeitada a sua inclusão na Constituição, mas acabou por ser aprovado pelo Parlamento em 1981.
Manifestação de movimentos feministas e centrais sindicais em defesa da consagração dos direitos reprodutivos e da mulher em geral na Constituição (Madrid, 4 de maio de 1978). A direita conseguiu opor-se com sucesso a que direitos reprodutivos e divórcio fossem constitucionalizados.
A Reforma Agrária em Portugal não é resultado da aplicação do programa de um governo revolucionário. É fruto da luta dos assalariados rurais dos campos do Sul, no período subsequente a Abril de 1974, por melhores salários e garantia de emprego, os quais, num quadro de desarticulação do aparelho repressivo do Estado e no âmbito de uma correlação de forças, local e regional, que lhes era favorável, ocuparam milhares de hectares de terra onde estabeleceram formas de exploração coletiva na esperança de construírem um futuro melhor.
Apesar de a Reforma Agrária permanecer consagrada na Constituição de 1976 até à revisão de 1989, um conjunto de leis foi sendo aprovado para a desmantelar, nomeadamente a chamada lei Barreto (1977), permitindo que paulatinamente se devolvesse as grandes propriedades aos latifundiários que delas tinham sido despossuídos.
Diminuídas na sua área, confinadas às terras mais pobres, incapazes de competirem com as explorações agrícolas do setor capitalista, as Unidades Coletivas de Produção e as cooperativas entram num processo irreversível de desagregação. Aquela que ficou conhecida como “Zona de Intervenção da Reforma Agrária” abrangia uma área com 3.200.000 hectares. Deste total, o máximo de terra que chegou a estar na posse dos trabalhadores foi de 1.140.000 hectares, ou seja, 35,6% da área total. No ano agrícola de 1985/86 , os trabalhadores já só ocupam 360 000 hectares de terra, parte dela arrendada aos beneficiários do direito de reserva.
Janeiro de 1979. Assalariadas rurais do Alentejo leem as notícias do dia. Desde havia dois anos que a aplicação da Lei Barreto procurava desmantelar a Reforma Agrária iniciada em 1975, na qual as camponesas alentejanas tiveram uma participação essencial.