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A crise académica suscitou uma onda de solidariedade entre os setores da sociedade que tinham sido vítimas de censura e repressão ou que eram opositores políticos.

Implicou também uma nova relação entre os estudantes e os professores universitários que compreenderam as causas do seu protesto. A crise representa ainda uma rutura entre duas gerações: os pais, com legítimas expectativas, e os filhos, desencantados pelas perspetivas oferecidas pela universidade e indignados com a violência que lhes é infligida.

Destacam-se três casos exemplares: a atuação do professor Lindley Cintra; a carta de Mário Cardia, pai de Mário Sottomayor Cardia, a Salazar; e o abaixo-assinado da Sociedade Portuguesa de Escritores em solidariedade com os estudantes.

Panfleto divulgando uma carta aberta, assinada por 98 docentes das Universidades de Lisboa, dirigida ao professor Lindley Cintra. 11 de maio de 1962. Fonte: FMSMB-DAS Panfleto divulgando uma carta aberta, assinada por 98 docentes das Universidades de Lisboa, dirigida ao professor Lindley Cintra. 11 de maio de 1962. Fonte: FMSMB-DAS
Relato do professor Luís Lindley Cintra sobre os acontecimentos de 4 de junho de 1962 e a sua intervenção no conflito ocorrido entre os estudantes e a policia, no qual foi ferido. Fonte: FMSMB-DAS Relato do professor Luís Lindley Cintra sobre os acontecimentos de 4 de junho de 1962 e a sua intervenção no conflito ocorrido entre os estudantes e a policia, no qual foi ferido. Fonte: FMSMB-DAS

Entre diversos professores universitários, Luís Lindley Cintra destacou-se no apoio aos estudantes mobilizados durante a crise.

Filólogo prestigiado e professor na Faculdade de Letras, foi um dos docentes mais graduados a compreender as reivindicações dos estudantes, participou nos plenários e usou do seu estatuto de professor para tentar dialogar com as forças policiais. Lindley Cintra acabaria por ser agredido pela polícia de choque na manhã de 4 de junho, à entrada da Faculdade de Medicina, e foi assistido no hospital. A agressão de que foi vítima suscitou a solidariedade dos seus colegas universitários.

Professor Lindley Cintra. 1962. Coleção particular Professor Lindley Cintra. 1962. Coleção particular
Quadro de Fernando Azevedo oferecido pelos estudantes a Lindley Cintra, professor da Faculdade de Letras, que apoiou a contestação estudantil e foi agredido pela polícia de choque. Espólio de Jorge Sampaio Quadro de Fernando Azevedo oferecido pelos estudantes a Lindley Cintra, professor da Faculdade de Letras, que apoiou a contestação estudantil e foi agredido pela polícia de choque. Espólio de Jorge Sampaio

Em homenagem ao professor Lindley Cintra, os estudantes quotizaram-se para comprar e oferecer-lhe um quadro do pintor Fernando Azevedo. O quadro, que ficou na posse do seu filho, Luís Miguel Cintra, foi devolvido a Jorge Sampaio pouco antes de este assumir a Presidência da República. É um objeto simbólico, que invoca a solidariedade entre estudantes e professores.

Professor de História Económica e Social, Vitorino Magalhães Godinho foi afastado da universidade pela primeira vez ainda nos anos quarenta.

Em 1960, depois de ter concluído o doutoramento em Paris, regressou a Portugal para lecionar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, a convite de Adriano Moreira.

 

«TIVE A HONRA DE SER O ÚNICO PROFESSOR CATEDRÁTICO DEMITIDO»

Vitorino M. Godinho

 

A crise académica foi também uma rutura entre duas gerações.

Os pais dos estudantes universitários, que tinham a expectativa de os seus filhos ingressarem na administração pública ou terem um futuro profissional garantido pela formação superior, expressaram a sua preocupação com o ativismo estudantil. Em alguns casos, não compreenderam os anseios da juventude. Ou, simplesmente, acreditavam que as ideias dos seus filhos não correspondiam às notícias divulgadas pelo Governo.

Carta de Mário Cardia, pai de Mário Sottomayor Cardia, dirigida a Salazar sobre o processo disciplinar movido ao seu filho. Porto, 2 de julho de 1962. Fonte: FMSMB-DSC.

Exemplo desta rutura é a carta de Mário Cardia dirigida a Salazar, na qual defende que o seu filho, alvo de um processo disciplinar, aderiu à crise com motivações exclusivamente académicas e não políticas. O filho, Mário Sottomayor Cardia, futuro ministro da Educação, foi um destacado líder estudantil e coautor dos comunicados das associações de estudantes.

 
«Meu filho nunca poderia ser considerado, até pelo seu temperamento e pela preocupação absorvente em estudar, como agitador e como político. A sua personalidade bem vincada certamente o impediria de se deixar levar por influências estranhas a fins académicos».

«Se se cometesse a tremenda injustiça de afastar o meu filho da Universidade de Lisboa, eu não poderia negar-lhe a possibilidade de frequentar uma Universidade estrangeira para seguir a extraordinária vocação que tem mostrado para o curso que escolheu – Filosofia. Todos nós, as muitas pessoas da nossa família que admiram V. Exª e, diariamente, rezam para que a sua saúde permita que se conserve à frente dos destinos de Portugal, sofreríamos imenso por vermos esse rapaz tão bom e tão sério afastar-se do nosso convívio, possivelmente rodeado de inimigos de Portugal».

A solidariedade com os estudantes estende-se a diversos setores da sociedade, em particular àqueles que já tinham sofrido o peso da censura e da repressão.

A 15 de maio de 1962, a Sociedade Portuguesa de Escritores, que seria encerrada pelo Governo em 1965, apresenta um abaixo-assinado em solidariedade com os estudantes.

Entre os subscritores estão alguns dos maiores vultos da literatura portuguesa do século XX: José Cardoso Pires, José Saramago, Aquilino Ribeiro e Sophia de Mello Breyner Andresen.

Solidariedade para os universitários portugueses! Abaixo-assinado de intelectuais portugueses manifestando a sua solidariedade com as associações de estudantes durante a crise académica de 1962. Encontram-se, entre os primeiros subscritores, Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Bernardo Santareno, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, Romeu Correia e Mário Cesariny de Vasconcelos. Abril de 1962. Fonte: FMSMB-DDR Solidariedade para os universitários portugueses! Abaixo-assinado de intelectuais portugueses manifestando a sua solidariedade com as associações de estudantes durante a crise académica de 1962. Encontram-se, entre os primeiros subscritores, Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Bernardo Santareno, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, Romeu Correia e Mário Cesariny de Vasconcelos. Abril de 1962. Fonte: FMSMB-DDR
Abaixo-assinado dos membros da Sociedade Portuguesa de Escritores, solidarizando-se com as associações de estudantes durante a crise académica. 15 de maio de 1962. Fonte: FMSMB-DAS Abaixo-assinado dos membros da Sociedade Portuguesa de Escritores, solidarizando-se com as associações de estudantes durante a crise académica. 15 de maio de 1962. Fonte: FMSMB-DAS

Num verdadeiro duelo, a ação coletiva dos estudantes e a repressão do Governo sobre o movimento estudantil avançaram quase ao mesmo ritmo.

As associações de estudantes foram o palco de exercício de liberdade e de representação democrática. Nos plenários, os dirigentes relacionam-se com as massas e tomam decisões legitimadas pela maioria dos estudantes presentes. Ao serem confrontadas com a proibição do Dia do Estudante, as associações desobedecem ao poder. A posição de irreverência dos estudantes é o ponto de partida para a escalada da repressão.

Comunicado nº5 das Associações de Estudantes de Lisboa, divulgando o programa das comemorações do Dia do Estudante, entregue aos reitores das Universidades e ao Ministério da Educação Nacional. Lisboa, 31 de março de 1962. Fonte: FMSMB-DAS Comunicado nº5 das Associações de Estudantes de Lisboa, divulgando o programa das comemorações do Dia do Estudante, entregue aos reitores das Universidades e ao Ministério da Educação Nacional. Lisboa, 31 de março de 1962. Fonte: FMSMB-DAS
Carta circular escrita por Eurico Figueiredo, a solicitar aos antigos alunos universitários apoio financeiro para fazer face à ameaça do Governo de retirar as bolsas de estudo a estudantes envolvidos na crise académica. Fonte: FMSMB-DDR Carta circular escrita por Eurico Figueiredo, a solicitar aos antigos alunos universitários apoio financeiro para fazer face à ameaça do Governo de retirar as bolsas de estudo a estudantes envolvidos na crise académica. Fonte: FMSMB-DDR
Comunicado nº15 das Associações de Estudantes de Lisboa. 13 de abril de 1962. Fonte: FMSMB-DDR Comunicado nº15 das Associações de Estudantes de Lisboa. 13 de abril de 1962. Fonte: FMSMB-DDR

O Governo, perante a capacidade de mobilização dos estudantes, percebeu que não podia conter a revolta estudantil apenas com a força policial. A repressão é exercida de múltiplas formas e com uma intensidade crescente. Além das proibições dos encontros, são impostos processos disciplinares aos alunos e suspensas as direções associativas. Na imprensa, as notas oficiosas do Governo procuram isolar o movimento e afirmam que os estudantes são uma minoria subversiva e antipatriótica. O Ministério da Educação Nacional pede à universidade as listas dos alunos que faltam às aulas e recebem apoios sociais para os poder ameaçar com represálias.

As medidas do Governo acabam por reforçar a ação colectiva e por induzir a unidade na luta. Taticamente, os estudantes afirmam, nos comunicados, que lutam pela autonomia universitária, que foi posta em causa pelas autoridades, e não apenas pelos seus interesses. O confronto entre estudantes e governo teve momentos de pausa, quando os docentes intervieram para mediar o conflito entre as duas partes. No entanto, a ausência de cedências e o reforço de medidas repressivas animaram os estudantes a tomarem medidas extremas.

E assim se compreende a greve da fome, em Lisboa, e a ocupação das instalações da Associação Académica de Coimbra. Foi a constante repressão do Governo que produziu as mais criativas formas de ação colectiva e uma inovação na contestação política ao regime. Mas, a última palavra seria do Governo: as prisões em massa e as expulsões da universidade foram duros golpes sobre os estudantes. E provaram que a crise académica não era um mero episódio passageiro, mas o despertar de uma geração com a ousadia de enfrentar o poder.

 

Fotografia alusiva à crise académica de 1962. Legenda manuscrita no verso: “A polícia com o carro d’água (ao fundo) corta a passagem aos estudantes que se dirigiam para o MEN, na Av. 28 de Maio. 1962-Lisboa”. Fonte: FMSMB-FACEI
Fotografia alusiva à crise académica de 1962. Legenda manuscrita no verso: “A polícia com o carro d’água (ao fundo) corta a passagem aos estudantes que se dirigiam para o MEN, na Av. 28 de Maio. 1962 Lisboa”. Fonte: FMSMB-FACEI

 

 

COM 2 ANOS DE EXCLUSÃO DE TODAS AS ESCOLAS NACIONAIS
DAVID MADUREIRA REBELO • EDUARDO JORGE FRIAS SOEIRO • FRANCISCO DELGADO • FRANCISCO LEAL PAIVA • JOSÉ AUGUSTO ROCHA • MARIA MARGARIDA LUCAS

COM 18 MESES DE EXCLUSÃO DE TODAS AS ESCOLAS NACIONAIS
ANTÓNIO DE ALMEIDA TABORDA • JOSÉ SUMMAVIELLE

COM 1 ANO DE EXCLUSÃO DE TODAS AS ESCOLAS NACIONAIS
LUÍS FILIPE MADEIRA

COM 30 MESES DE EXCLUSÃO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
ANTÓNIO CARVALHO • MARIA FERNANDA DIAS • MÁRIO BROCHADO COELHO

COM 2 ANOS DE EXCLUSÃO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
ALBANO SERRA PINA • ALBERTO MENDONÇA NEVES • ALFREDO ESTRELA ESTEVES • ANTÓNIO LAMEIRAS DE FIGUEIREDO • ANTÓNIO DE SOUSA ALMEIDA • CARLOS ALBERTO FURTADO • EDUARDO CASAIS • JOÃO BILHAU • JOÃO QUINTELA • JORGE DE SOUSA ROCHA • LUÍS LEMOS • MANUEL DA SILVA VENTURA • MARIA FERNANDA GRANADO • RUI NAMORADO • RUI NEVES

COM 1 ANO DE EXCLUSÃO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
ANTÓNIO MACHADO VAZ • JOSÉ LUÍS MORAIS ALÇADA • JOSÉ LUÍS SANTOS LIMA • JOSÉ MACEDO CRUZ • VLADIMIRO PEREIRA MATEUS

COM 6 MESES DE EXCLUSÃO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
JOSÉ LUÍS NUNES • PARCÍDIO SUMMAVIELLE • ALBERTO RUI PEREIRA • ANTÓNIO DA SILVA COELHO • CÉSAR OLIVEIRA • JOAQUIM TOMÉ • SIMÃO SANTIAGO

 

 

COM 30 MESES DE EXCLUSÃO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ABÍLIO TEIXEIRA MENDES • ANTÓNIO DA CONCEIÇÃO BENTO • ANTÓNIO CORREIA DE CAMPOS • ANTÓNIO DA CRUZ RATO • ANTÓNIO MONTEZ • ANTÓNIO REGO CHAVES • ANTÓNIO RIBEIRO • ANTÓNIO VALENTIM ALEXANDRE • AUGUSTO JOSÉ AMORIM • EUGÉNIO PINTO BASTO • EURICO FIGUEIREDO • ISABEL VILA MAIOR • JOÃO CARLOS PASSO VALENTE • JOÃO DE FREITAS REGO SANTOS • JOSÉ EMÍDIO CALVÁRIO • JOSÉ GARIBALDI • JOSÉ LUÍS BOAVENTURA • JOSÉ MARQUES FELISMINO • MANUEL DA SILVA TAVARES • MÁRIO SOTTOMAYOR CARDIA • NUNO BREDERODE SANTOS

Boletim nº 8/62 confidencial, da Direção dos Serviços de Censura dando instruções para serem cortadas quaisquer referências às comemorações do Dia do Estudante, projetadas pelas Associações de Estudantes de Lisboa, dada a sua “inconveniência politica e social”. Lisboa, 12 de março de 1962. Fonte: FMSMB-DJL Boletim nº 8/62 confidencial, da Direção dos Serviços de Censura dando instruções para serem cortadas quaisquer referências às comemorações do Dia do Estudante, projetadas pelas Associações de Estudantes de Lisboa, dada a sua “inconveniência politica e social”. Lisboa, 12 de março de 1962. Fonte: FMSMB-DJL
Informação das Associações Académicas aos estudantes e professores acerca do comunicado do Secretariado Nacional de Informação de 7 de abril de 1962. Fonte: FMSMB-DSC Informação das Associações Académicas aos estudantes e professores acerca do comunicado do Secretariado Nacional de Informação de 7 de abril de 1962. Fonte: FMSMB-DSC
Recorte sobre a crise académica de 1962, com referências ao almoço de convívio entre estudantes e professores na Cidade Universitária. Refere-se ainda à audiência do ministro de Estado aos representantes dos estudantes, e a exoneração do reitor prof. Marcelo Caetano. Diário de Lisboa. 11 de abril de 1962. Fonte: FMSMB-DDR Recorte sobre a crise académica de 1962, com referências ao almoço de convívio entre estudantes e professores na Cidade Universitária. Refere-se ainda à audiência do ministro de Estado aos representantes dos estudantes, e a exoneração do reitor prof. Marcelo Caetano. Diário de Lisboa. 11 de abril de 1962. Fonte: FMSMB-DDR
Via Latina, 7 de abril de 1962. Fonte: FMSMB- DDR Via Latina, 7 de abril de 1962. Fonte: FMSMB- DDR

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