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A crise de 1969 transcendeu as reivindicações que a motivaram e marcou a memória dos movimentos estudantis.

Numa espiral de acontecimentos estimulada pela repressão governamental, transformou-se numa manifestação de repúdio generalizado por um regime caduco, tolhido pelo impasse da Guerra Colonial. Espelho desse sentimento coletivo foi a percentagem de exames boicotados que, apesar de todos os riscos, rondou os 87%. É certo que a reação tampouco se fez esperar. Durante o verão foram detidos inúmeros estudantes e 49 acabaram por ser compulsivamente incorporados e destacados para a Guerra Colonial – punição que se tornaria recorrente no consulado de Veiga Simão.

No entanto, a luta dos estudantes de 1969 colocou o discurso anticolonial e contra a guerra no centro da luta antifascista. As incorporações aceleraram o processo de politização e a dissidência nas fileiras do Exército, fatores essenciais para o movimento que conduziu à Revolução. Foi também um dos momentos que intensificou a demarcação das elites em relação ao regime.

O movimento estudantil de 1969, particularmente forte em Coimbra, abriu as portas à radicalização que caracterizou o ambiente estudantil nos anos seguintes e contribuiu decisivamente para derrubar a ditadura.

Alberto Martins com companheiros de caserna no Quartel de Mafra, após a incorporação no serviço militar. À guitarra, Rui Pato. Fonte: Secção Fotográfica da AAC. Espólio Alberto Martins Alberto Martins com companheiros de caserna no Quartel de Mafra, após a incorporação no serviço militar. À guitarra, Rui Pato. Fonte: Secção Fotográfica da AAC. Espólio Alberto Martins

EPI Mafra – 12 de outubro de 1969

AGOSTINHO PESSANHA GONÇALVES • ALBERTO DE SOUSA MARTINS • AMÍLCAR JOSÉ DA SILVA CAMPOS • ANTÓNIO ARNALDO DA CUNHA OLIVEIRA MESQUITA • ANTÓNIO JOAQUIM TRAVANCA DA COSTA • ANTÓNIO PIRES CARVALHO • AUGUSTO ROGÉRIO RODRIGUES CARVALHO LEITÃO • BENTO DA COSTA RIBEIRO MACHADO • CARLOS HUET VIANA JORGE • CARLOS JOSÉ BRANCO PIRES • CARLOS MANUEL GUERRA FRAIÃO • CÉSAR NUNES CORDEIRO • DÉCIO BERNARDINO PEREIRA DE SOUSA • EDUARDO DIAS CORREIA TELES MORGADO • FERNANDO JORGE PAIS RIBEIRO DA CUNHA • FERNANDO JOSÉ DE ALMEIDA CATROGA • FRANCISCO JOSÉ BEJA DA SILVA SARDO • JACINTO JOSÉ PALMA DIAS • JOÃO ANTÓNIO SIMÕES FERREIRA MARQUES • JOÃO CELSO DA ROCHA CRUZEIRO • JOÃO MANUEL DOS REIS DUARTE RODRIGUES • JOÃO NUNO RODRIGUES SAMPAIO • JOAQUIM DOS SANTOS DUARTE BRANDÃO • JOAQUIM MARIA VALENÇA PAIS DE BRITO • JORGE MANUEL GASPAR DE ALMEIDA E SOUSA • JOSÉ AGOSTINHO BALDAIA DA SILVA MOREIRA • JOSÉ ÁLVARO MELO FERREIRA MARQUES • JOSÉ ANTUNES GIL FERREIRA • JOSÉ AURÉLIO DA SILVA BARROS MOURA • JOSÉ DE ALMEIDA FERREIRA • JOSÉ DE OLIVEIRA BARATA • JOSÉ DUARTE DA SILVA VAZ TEIXEIRA • JOSÉ LUÍS PIO DA COSTA ABREU • JOSÉ MANUEL HENRIQUE ROUPIÇO SIMÕES • JOSÉ MARIA RAMOS TEIXEIRA GOMES • JOSÉ RAMOS GOMES CABRAL • JOSÉ ROBERTO TINOCO DE CAVALHEIRO • JOSÉ TORRES MIGUÉNS • JUVENAL AUGUSTO DE MATOS SOBRAL • LUÍS CASTRO BASTOS DOS SANTOS NAMORADO • LUÍS FREDERICO REDONDO LOPES • MANUEL ARTUR GASPAR BARBOSA LEÃO • MÁRIO MENDES DO VALE LIMA • OSVALDO ALBERTO ROSÁRIO SARMENTO E CASTRO • PEDRO MANUEL PINTO MENDES DE ABREU • ROBERTO LEAL RAMOS MONTEIRO • ROGÉRIO DA CONCEIÇÃO PALMA RODRIGUES • RUI DE MELO PATO • TEÓFILO ÓSCAR RIBEIRO GONÇALVES LEITE

Alberto Martins (1945)

Eleito presidente da Direção-Geral da AAC pela lista patrocinada pelo Conselho de Repúblicas. Natural de Guimarães, cursou Direito na Universidade de Coimbra, tendo sido repúblico na Real República dos Pyn-Guyns.

Representante da tendência socialista radical, vai ficar incumbido de pedir a palavra durante a cerimónia de inauguração do Edifício das Matemáticas, transmitindo o descontentamento dos estudantes com a impossibilidade de dialogar com o ministro da Educação Nacional, no sentido de exigir a reforma da universidade. Teria de escolher um momento oportuno, que não fosse visto como uma provocação, que não perturbasse o ato solene e que fosse, por isso, inatacável. Era uma solução de último recurso, esgotadas que foram as tentativas de garantir, pelos canais próprios, que a voz dos estudantes fosse ouvida na cerimónia.

Quando se levanta para pedir a palavra, já muitos estudantes se encontravam na sala e no átrio adjacente. O seu gesto seria aplaudido com entusiasmo pelos colegas. A palavra não lhe foi concedida, mas as repercussões foram imediatas.

Alberto Martins discursando na inauguração “oficiosa” do Edifício das Matemáticas. 17 de abril de 1969. Fonte: Secção Fotográfica da AAC. Reproduções de Alexandre Ramires Alberto Martins discursando na inauguração “oficiosa” do Edifício das Matemáticas. 17 de abril de 1969. Fonte: Secção Fotográfica da AAC. Reproduções de Alexandre Ramires
Alberto Martins na República dos Pyn-Guyns. 15 de abril de 1969. Fonte: Biblioteca Municipal de Coimbra - Imagoteca Alberto Martins na República dos Pyn-Guyns. 15 de abril de 1969. Fonte: Biblioteca Municipal de Coimbra - Imagoteca

Assim que o Chefe de Estado e demais individualidades abandonaram, abruptamente, a sala, esta foi tomada pelos estudantes. Coube também a Alberto Martins presidir à “inauguração oficiosa” que se seguiu. Estava dado o mote para o início da crise académica de 1969. Na madrugada seguinte, Alberto Martins é detido pela PIDE quando se encontrava na sede da AAC.

A detenção é presenciada por vários colegas, que imediatamente se dedicam a difundir a notícia e a organizar uma vigília em seu apoio, duramente reprimida pela polícia de choque. Foi libertado pelas 11h20, ainda a tempo de participar na Assembleia Magna que teria lugar ao meio-dia no pátio da universidade. Nos meses seguintes, continuou a ser o rosto da luta dos estudantes, discursando em diversas assembleias e plenários.

É suspenso da universidade e, já no refluxo da “crise”, vai ser um dos 49 estudantes compulsivamente mobilizados para o Curso de Oficiais Milicianos. No entanto, o seu gesto audaz e de inegável coragem tornou-se num marco, não só para a luta dos estudantes, mas também para a causa da liberdade.

Celso Cruzeiro (1945)

Eleito para a Direção-Geral da AAC pela lista patrocinada pelo Conselho de Repúblicas. Natural de Cajadães, Oliveira de Frades, cursou Direito na Universidade de Coimbra, cidade onde viveu entre 1963 e 1969, tendo sido repúblico na República Palácio da Loucura.

No ano letivo de 1966/1967 integrou o Secretariado do Conselho de Repúblicas e, no ano seguinte, a Comissão Pró-Eleições. Em ambos os casos, tratava-se de estruturas que procuravam democratizar uma AAC, que, desde 1965, vinha sendo dirigida por sucessivas Comissões Administrativas impostas pelo regime. Fez ainda parte da estrutura clandestina CONGE, organização inspirada pelos debates acerca do sindicalismo estudantil que tinham lugar na UNEF. Foi um dos responsáveis pela edição do jornal O Badalo, órgão do Conselho de Repúblicas, colaborando com assiduidade para as revistas Vértice e Capa e Batina.

Celso Cruzeiro com Osvaldo Castro e José Roupiço Simões, após a inauguração do Edifício das Matemáticas. 17 de abril de 1969. Fonte: Secção Fotográfica da AAC. Reproduções de Alexandre Ramires.
Celso Cruzeiro com Osvaldo Castro e José Roupiço Simões, após a inauguração do Edifício das Matemáticas. 17 de abril de 1969. Fonte: Secção Fotográfica da AAC. Reproduções de Alexandre Ramires

 

Já enquanto membro da Direção-Geral, fica encarregue da organização das atividades culturais da AAC. Representante da tendência “comunista crítica” (juntamente com Fernanda Bernarda e Osvaldo Castro), vai ser um dos proponentes da intervenção na inauguração do Edifício das Matemáticas, reivindicando o direito de representação dos estudantes e contrariando, desse modo, as tendências que perfilavam posturas mais defensivas. No dia 17 de abril, coadjuva Alberto Martins na sua missão de “pedir a palavra” durante a cerimónia. É ele que, aos ombros dos colegas, convida os estudantes a entrar no edifício, que rapidamente ficou ao barrote e
inundado por dísticos carregando as palavras de ordem do movimento. Apesar de suspenso e compulsivamente incorporado em consequência do seu papel de “agitador”, foi uma das figuras mais decisivas da organização da luta dos estudantes de Coimbra durante os meses seguintes.

Foi um dos líderes incontornáveis da crise académica de 1969 e, nos anos seguintes, tornou-se igualmente num dos seus mais prolixos cronistas.

Fernanda Bernarda (1944-2018)

A única mulher que integrou a direção da Associação Académica de Coimbra no mandato de 1969 nasceu em Alcobaça. Estudava em Coimbra desde o 6.º ano, e, por isso, acompanhou a crise académica de 1962, fazendo parte da Pró-Associação dos Estudantes dos Liceus.

Em 1965, foi uma das fundadoras da primeira república feminina de estudantes, a Araras. Militante do PCP desde 1967, Fernanda Bernarda era uma das ativistas principais do Conselho de Repúblicas (CR). Esse facto gerou um dos episódios que recordava com humor. Dada a clivagem política entre as estratégias oposicionistas dos jovens comunistas e dos membros do CR, Fernanda Bernarda enfrentou, por várias vezes, discussões acesas com José Barros Moura. Nenhum dos dois sabia que ambos eram, afinal, camaradas de partido – dada a necessidade de sigilo sobre a militância clandestina. Um dia, o PCP entregou a Barros Moura uma credencial para um encontro reservado, fora de Coimbra, que continha a indicação de que devia aguardar por uma mulher. À hora marcada, a mulher que recebera a mesma indicação do partido chegou. Era Fernanda Bernarda. A surpresa dos dois foi evidente.

Mas nem a revelação da sua camaradagem com Barros Moura alterou a forma como Fernanda Bernarda participou na crise académica de Coimbra. Manteve-se no lado que escolhera antes, como dinamizadora do Conselho de Repúblicas, mesmo que a linha dos estudantes comunistas fosse diferente. Fernanda era estudante de Direito e muito ativa no Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC).

Quando, a 12 de fevereiro de 1969, a sua lista ganhou as eleições para a direção da Associação Académica, Fernanda foi eleita pelos seus pares secretária-geral. Depois de ter um papel preponderante na organização dos acontecimentos de 17 de abril, e na contestação que se seguiu, foi presa a 8 de agosto, sendo interrogada na sede da Polícia Judiciária de Lisboa durante 15 dias.

 

Testemunho de Fernanda Bernarda sobre o 3 de junho de 1969, que ficou conhecido como “Operação Flor”. Fonte: Adelaide Martins R. Cosme (org.), 69. Pretextos para… , Coimbra: Coordenadora de Matemática/ DG da AAC, 1989, p. 35.

«Ao fim da manhã de um dia de junho, a polícia impediu, à bastonada, que os estudantes prosseguissem para iniciar a sua atividade de informação. Os cavalos entraram no Mercado onde os grevistas procuravam refúgios e naquele atropelo a polícia virou as bancas dos vendedores. Mas o medo não tinha forma.

No dia seguinte os estudantes voltaram. Dirigiram-se ao Mercado e compraram todas as flores que se encontravam à venda. A alegria era esfuziante dos dois lados. O Mercado estava conquistado.

Os estudantes, cheios de flores, desfilaram então para a Baixa, oferecendo-as a quem passava… até aos elementos das “forças da ordem”. Toda a Ferreira Borges estava engalanada. Os estudantes passavam entre aplausos. A população estava do nosso lado».

#50anos25abril