No final da década de 40, o panorama artístico nacional acompanha a realidade política de ascendente oposição à ditadura do Estado Novo. No contexto do pós-guerra, os movimentos de oposição ao regime tomam novo fôlego, na expectativa de que a mudança na política europeia pudesse favorecer o fim da Ditadura portuguesa, esperança que em breve se veria gorada, com a reafirmação do regime e a sua permanência até à instauração da Democracia em 25 de Abril de 1974.
É neste contexto social e político que a escritora, jornalista e ativista feminista Maria Lamas realiza o projeto editorial de «As Mulheres do Meu País». O seu percurso de ativista e opositora política ao regime consolida-se neste período, com a presidência do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1911-1947), as suas participações na Federação Democrática Internacional das Mulheres (1945) e no Movimento de Unidade Democrática, um dos coletivos políticos mais ativos na oposição à Ditadura na década de 40.
O projeto de As Mulheres do Meu País foi editado em fascículos, entre maio de 1948 e abril de 1950, e foi uma resposta/protesto da autora pela ordem política de dissolução do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, em 1947, organização histórica à qual presidia desde 1945 e que teve desde a sua criação em 1914 um papel determinante na representação, a nível nacional, das lutas do movimento feminista internacional.
A obra teve nos últimos anos uma redescoberta da sua singularidade fotográfica e sociológica, sendo interpretada por muitos autores como uma obra de “contra-poder”, face aos modelos iconográficos produzidos pelo regime do Estado Novo.
Para além dessa interpretação, o livro é também um projeto sobre o trabalho e a condição feminina, o que desde logo o coloca num âmbito singular, sobretudo quando a política de propaganda do Estado Novo promovia a tipificação estético cultural da população portuguesa.
Maria Lamas rompe com os modelos oficiais de caracterização folclórica e pitoresca da população trabalhadora feminina, o que lhe permitirá desenvolver uma via ideológica documental muito particular, sobretudo, no que diz respeito à articulação de imagem e texto.
A sua relevância advém não só pela matéria sociológica e antropológica
produzida sobre a condição das mulheres portuguesas, mas também pelo significativo corpo de imagens que ela própria realizou de norte a sul do país, complementadas com imagens de outros autores e proveniências.
O resultado final é um documento único sobre a condição de vida das mulheres trabalhadoras portuguesas (organizado em 5 grandes grupos: Camponesa, Mulher do Mar, Operária, Doméstica, Empregada (que englobava as profissões liberais, intelectuais e artistas) e que revela algumas especificidades de natureza ideológica e formal, inéditas no panorama cultural nacional.
Para entendermos melhor estas especificidades, importa realçar que o movimento neorrealista português deste período teve um papel determinante como expressão artística na luta política de oposição à Ditadura, mas não conseguiu enquadrar aprofundadamente a fotografia, nem teórica nem plasticamente, enquanto registo privilegiado da realidade e poder documental histórico.
É a este contexto de inconsequência que a obra de Maria Lamas dá resposta na sua obra, na eficaz aliança entre texto e imagem, realizando um projeto que pode ser interpretado de acordo com uma vertente da filosofia materialista estética, que “criticava a ilusão e punha em crise a representação” (Bertolt Brecht).
A edição do livro não obedece a uma relação tradicional entre texto explicativo e imagem ilustrativa, muito embora pareça ser essa a sua estrutura matricial. Cada imagem, ainda que inserida no texto geral, apresenta comentários longos, micronarrativas cujo objetivo é a compreensão da vida real destas mulheres. A autora interpela constantemente o significado das imagens, as suas e as de outros autores, revelando com as suas legendas longas a identidade singular e coletiva deste vasto retrato feminino, explicando o que vemos, a sua marca histórica e social, as suas consequências, os seus paradoxos e impossibilidades, criando mesmo tensões de significado entre a imagem e o texto. Procede assim a uma desconstrução da ilusão testemunhal das imagens, ciente de que é necessário dotá-las de uma leitura do seu significado, de que a sua apreensão necessita de uma ação pedagógica, essencial para uma visão crítica do sujeito e do mundo. Uma das preocupações e notas mais referida em todo o livro é a questão da falta de instrução, do enorme espectro de analfabetismo que recaia de forma mais evidente sobre a população feminina, impossibilitando-a de tomar consciência política e social da sua condição.
Mas nesta obra, Maria Lamas coloca também em destaque o analfabetismo na leitura das imagens, tema tão caro ao materialismo estético enunciado, e combate-o ao “mostrar que mostra”, fazendo da imagem um veículo de conhecimento e não de ilusão. (Georges Didi-Huberman)
É também uma crítica da representação porque desafia as nomenclaturas tradicionais de conhecimento do real, tanto no interior da teoria e prática neorrealistas, como no confronto com as obras de propaganda do regime do Estado Novo, que tanto utilizaram a imagem fotográfica. É por isso significativo que as outras fontes de imagens que Maria Lamas utiliza sejam, na sua maioria, de fotógrafos que estavam ausentes das grandes publicações do Estado Novo.
Em «As Mulheres do Meu País», a fotografia é utilizada como “um método de combate”, ao qual o fotógrafo deve acrescentar uma legenda “que lhe confira um uso revolucionário”. (Walter Benjamin) Tarefa tão mais necessária, sobretudo quando a natureza documental da imagem é ainda assombrada pelo lirismo naturalista que persistiu no gosto estético oficial, contaminando até o movimento neorrealista.
As imagens são constantemente desafiadas, tanto na sua função testemunhal como na sua estética onírica, por exemplo, quando contrapõe o lirismo rural ao rude esforço da vida, quando dá voz e rosto às mulheres que não conhecem senão o servilismo, as dificuldades, e vivem na ignorância da sua força e importância.
Maria Lamas concebeu este livro como uma “expressão de fraternal solidariedade para com as mulheres do meu país”, e confessava então que o realizou na fase mais tormentosa da sua vida.
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