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25 de Abril de 1974

Nascido em 1941, natural da Nazaré, Portugal.

Magistrado de carreira, é Juiz Jubilado do Supremo Tribunal de Justiça. De 1980 a 1996, exerceu, sucessivamente, as funções de Director do Centro de Estudos Judiciários, Secretário de Estado da Administração Judiciária, Ministro da Justiça e Deputado à Assembleia da República. Entre 2003 e 2006, ocupou o cargo de Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores. Com intensa actividade cívica é membro dirigente, entre outras, de associações como a APAV e a CRESCER-SER, de que é sócio fundador. Com artigos publicados e inúmeras palestras proferidas, é autor de livros como A Justiça e os Justos (1999), Palácio da Justiça (2007), Educação, Arte e Cidadania (2008), O Julgamento – Uma Narrativa Crítica da Justiça (2012), Levante-se o Véu, este em co-autoria (2011), e ainda os romances O Chamador (2014), O Homem Que Escrevia Azulejos (2016), O Beco da Liberdade (2019) e As Sombras de uma Azinheira (2022).

Premiado na área da Psicologia, foi-lhe atribuída, em 2016, pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, a Medalha de Reconhecimento; e, em 2017, pela Associação Pró-Inclusão, a medalha de mérito.

Foi agraciado por Sua Majestade, o Rei de Espanha com a Grã-Cruz da Ordem de D. Raimundo de Peñaforte; e por Sua Excelência o Presidente da República Portuguesa, com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.

Entre 2013 e 2017, foi Presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho. É Membro Eleito da Academia Internacional da Cultura Portuguesa.

Em Fevereiro de 2019 foi-lhe atribuído pela Universidade do Minho o título de Doutor Honoris Causa em Ciências da Educação.


25 de Abril de 1974

Era o dia 25 de Abril de 1974.

Longe da Capital, entre caixotes, numa mudança de casa e de comarca, as notícias chegavam à mistura com as dúvidas sobre o sentido dos acontecimentos. A alegria, por incontida, ameaçava romper a barreira da expectativa tecida por entre as contradições que se acumulavam comunicado a comunicado. Tinha de ser a revolução desejada. Mas… podia ser o pior.

O refúgio da memória, enchendo o tempo da espera, trazia, entretanto, breves traços do passado. Como naquela vez, nos tempos distantes dos inícios de sessenta. Éramos estudantes. Na casa que nos servia as refeições, à mesa, éramos doze. Cinco de cada lado, dois nas cabeceiras.

Na mais distante da entrada sentava-se o finalista de Medicina. Mais velho, era o decano. Com história feita na academia, enchia as refeições de episódios relatados com um humor que acompanhava com gargalhadas francas de quem antecipa o aplauso garantido. Gostávamos de o ouvir e abríamo-nos com ele, entre ditos e perguntas de principiantes.

O outro extremo era ocupado por um alto funcionário alemão, de passagem, em comissão, no nosso país. Sofisticado no porte, discreto na comunicação, era pouco dado ao riso em comum. Tinha o olhar penetrante de um homem atento, de quem ouve muito e fala pouco.

A breve trecho, as refeições dividiram-se em duas partes. A primeira, antes da chegada do estrangeiro, era feita de alegria, partilha de experiências, confissão de pensamentos ainda em formação; a segunda, já com aquele presente, rendia-se ao silêncio, era defensiva, pautada pela figura austera do recém-chegado. O tipo é da PIDE, concluíra o conclave. Não era! Um dia, os ocupantes dos extremos não chegaram. O alemão fora preso. Pela PIDE. O finalista de Medicina dera por concluída com êxito a sua tarefa de informador. E desaparecera, levando consigo muito do que disséramos, entre risadas. Deixara em nós a revolta e o medo.

Nunca assines nada, diziam os pais quando viam partir os filhos para os estudos. E duvida. Duvida de todos até saberes quem são. Não confies em ninguém.

Acordei das recordações com as imagens chegadas do Largo do Carmo. Que importavam as dúvidas? A alegria não se continha mais. Havia cravos no lugar das baionetas. Eu, homem de poucos prantos, deixava que as lágrimas escorregassem pelo rosto sem um gesto sequer para as conter. Abri a janela em busca daquele ar renovado. Em baixo, na rua, um velho, a correr como podia, gritava para ninguém, «sou livre, sou livre».

Passavam pela minha vida, de novo, os tempos de estudante universitário. «Já noite, um jovem […] como nós, subiu lentamente os degraus que acompanhavam o perfil da rua. Subitamente, de um carro preto parado, saltaram dois [homens]. Num ápice, o jovem estava dentro. O carro arrancou, deixando um cheiro a pneus queimados. Nos olhos, ficou o filme do mais forte agarrando o rapaz, enfiando-lhe um braço entre o peito e o braço esquerdo e fracturando-o com o peso do corpo e a força da mão deixada livre. Tudo com precisão. Era um homem experimentado. Nos ouvidos ficou o grito da dor e da raiva. No peito, a revolta. Mais um! Nos últimos tempos era assim. Todas as semanas faltava gente». Eram colegas torturadas e torturados pela polícia política; amigas e amigos expulsos da Universidade; outros presos; outros ainda mortos ou refractários, vítimas de uma guerra alheia, para eles sem sentido.

E a alegria chocava com a injustiça das suas ausências. E as lágrimas embrulhavam-se numa mistura de sentimentos.

Doíam-me as costas da carga da GNR, a cavalo. Lembrava a PSP e o ridículo da chamada à esquadra, por um beijo de namoro, dado na rua, ultrajando a moral pública. Recordava a ameaça da PIDE pela autoria do texto representado num sarau académico, caricaturando a figura do «Presidente do Concelho».

Pela tarde fora, já não havia dúvidas. Estava em marcha a Revolução dos Cravos. Em menos de vinte e quatro horas, «o mundo [assistia] ao derrube da mais antiga ditadura europeia contemporânea», haveria de dizer mais tarde Maria Inácia Rezola.

Continuar a recordar tinha agora um sabor bom a despedida. Com a modéstia das coragens a apresentar, era dos medos que me libertava. Como magistrado, que era, tinha a consciência de nunca ter hesitado nas curvas apertadas de uma justiça administrada em tempo de ditadura, mas sabia bem da preocupação e dos receios que, aqui e ali, ficavam a pairar após as decisões tomadas. Tinha bem vivo o perigo das coisas simples: o República debaixo do braço, a Seara Nova passeada na rua, a opinião expendida em público, um ou outro artigo, ainda que inocente nos temas, sempre espreitado pela Censura.

A liberdade jorrou por toda a parte e, de tanto ter sido reprimida, não houve quem a segurasse. Ninguém se lembrava, então, de proclamar que «a liberdade de cada um termina quando começa a do outro». A liberdade não termina. A liberdade de cada um vive-se com a liberdade do outro. E, entre pressas e hesitações, entre virtudes e defeitos, entre sucessos e desmandos, a Democracia, que é afinal tudo isso na beleza da sua fragilidade, chegou e ficou. Não cabe, aqui, desfiar o rol imenso de conquistas que, em todos os sectores da vida social, se foram consolidando e que permitem hoje considerar própria do campo da imoralidade a tentativa de comparar, para então decidirmos pelo melhor, o país que somos com aquele que éramos.

Já, porém, comparar o país que somos com o que podíamos ser, e levar essa comparação até àquilo que queremos que ele seja, são tarefas tão indispensáveis quanto urgentes, cabendo esta última, pela natureza das coisas, sobretudo aos jovens e às jovens de hoje.

Um dia, também eles e elas ouvirão a memória dos seus tempos de juventude e não poderão fugir ao juízo da sua consciência.

Na verdade, quase cinquenta anos volvidos, à beira da grande comemoração, importa pensar o futuro. Combater a indiferença, rejeitar o que é imposto sob o manto da «inevitabilidade», essa nova e insinuante ditadura, sem aparente ditador. Como sempre, é o Poder que está no centro do debate, e a legitimidade democrática do seu exercício. Trata-se de conferir poder à liberdade. Visto que apenas revestida de poder a liberdade tem substância e sentido verdadeiramente político.

Repetindo o que disse noutro lugar, com o 25 de Abril em mente, «é urgente que regressemos a esse [dia] libertador, idos precisamente do futuro concreto transformado em acto e, em defesa dos valores que nele recebemos como testemunho, alargarmos o ponto de vista e olharmos agora também para o passado, para o antes de setenta e quatro e, na ansiedade dos novos tempos, sempre em nome de Abril, proclamarmos que, para ali, não há, nem pode haver retorno».

Abril de 2023

#50anos25abril