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No caminho para a Glória, o meu encontro com quem nos trouxe a Liberdade

Nascida em 1955, natural de Pavia, Portugal.

Presidente da Junta de Freguesia de Pavia desde 2021, apicultora, mestre em Língua e Cultura Portuguesa (Universidade de Lisboa, 2007) e em Psicologia Educacional (ISPA/Université de Provence, 2001), especializada em Educação Especial (Escola Superior de Educação de Lisboa, 1993), professora do ensino primário/1º ciclo do ensino básico (Escola do Magistério Primário de Évora, 1973).


No caminho para a Glória, o meu encontro com quem nos trouxe a Liberdade

Pavia é uma pequena vila do concelho de Mora, no distrito de Évora. Aqui nasci em Setembro de 1955, no número 19 da Rua de Avis. Era uma casa tipicamente alentejana, caiada de branco, com a tradicional e enorme chaminé onde minha mãe fazia o lume de chão para cozinhar durante todo o ano, e que nos aquecia nos Invernos em que a água das poças das veredas congelava, com o frio que fazia.

Esta casa era dos meus avós maternos. Estes eram trabalhadores rurais e fizeram todo o tipo de trabalhos do campo. No entanto o meu avô materno, a partir de determinada altura da sua vida, dedicou-se ao pastoreio. Foi pastor de grandes rebanhos que, apesar de não lhe pertencerem, permitiram melhorar a vida destes meus avós e dos seus seis filhos, por ser trabalhador concertado e ter assim garantido o trabalho durante todo o ano.

Como trabalhadora rural a minha avó materna mondou e ceifou searas de trigo, centeio e cevada, “apanhou sezões”, que afinal, soubemos muito mais tarde, que era malária, nos combros de arroz onde o mondava ali na Herdade dos Condes, fez queijos de leite de ovelha, varejou, ripou e apanhou azeitona… Grande parte da sua vida fez o pão para toda a família e, apesar de não saber ler nem escrever, era muito boa cozinheira e foi muitas vezes contratada para preparar algumas bodas de pessoas um pouco mais abastadas e onde, com mestria, fazia também bolos muito apreciados.

Quando eu nasci os meus pais viviam em Malarranha, que dista uns 13 Km da sede da freguesia de Pavia e é uma pequena aldeia de casas dispersas, a que por aqui chamamos “montes”, numa casa que havia sido construída há uns anos pelo meu avô paterno. Este era um beirão de Caféde, do distrito de Castelo Branco, e canteiro de profissão.

Dos meus quatro avós, ele era o único que sabia ler e escrever, foi militar enviado para Angola durante a Primeira Guerra Mundial e veio para esta região em busca de melhor sorte para criar os seus quatro filhos, na década de 30 do Séc. XX.

Na sua terra abundavam os canteiros e ele veio tentar encontrar trabalho dentro da sua arte de bem trabalhar a pedra. Por aqui os canteiros eram poucos e talvez fosse possível encontrar mais facilmente trabalho durante largos anos, arriscou ele.

Enquanto não encontrou quem o contratasse para as primeiras obras de cantaria, este meu avô, os seus quatro filhos e a minha avó, passaram por momentos muito difíceis. O meu avô fazia de tudo um pouco para sustentar a família, mas nem sempre o conseguia na medida do que era necessário… os filhos apenas foram à escola para aprender os rudimentos da leitura e da escrita, andavam descalços, o que infelizmente, por aqui, não era raro.

Só depois de um grande lavrador de Cabeção lhe ter encomendado a primeira grande obra de cantaria mais delicada, e devido aos elogios que este foi espalhando, é que o meu avô começou a ter inúmeras obras, um pouco por todo o concelho de Mora. Estas ainda hoje se podem apreciar em casas particulares de Pavia, Cabeção e Mora, em várias Herdades e em alguns monumentos de Pavia e Cabeção.

Eu só nasci em Pavia porque a casa dos meus avós paternos tinha muito menos condições do que a dos meus avós maternos, e os meus pais decidiram que era melhor vir nascer numa casa onde, apesar de também não haver água canalizada, luz eléctrica, casa de banho, fogão de lenha, a gás ou a petróleo, tinha, no entanto, chão de cimento.

Esta condição permitia um conforto e higiene que o chão de terra batida da casa de Malarranha não permitia. Minha mãe contou-me que, depois de eu ter nascido, voltou comigo para esta casa com chão de terra e chorava muito, porque não conseguia imaginar-me a gatinhar naquele chão.

Apesar de ter vivido em casas muito modestas, o chão das casas que minha mãe conhecera até então tinha lajes de xisto ou cimento… Aquela grande tristeza de minha mãe fez com que, passado pouco tempo depois de eu ter nascido, viéssemos viver para Pavia.

Cresci sem brinquedos comprados. Lembro-me de ter bonecas de trapo que a minha avó materna e a minha mãe nos faziam, a mim e à minha irmã, e de moinhos de vento de Canavora feitos pelo meu pai. Assim, era a nossa imaginação que inventava brinquedos que imitavam os objectos do quotidiano que nos rodeava – “linguiças” com as folhas de malvas, com o caule enrolado e enfiadas num pequeno pau, pequenos queijos dos rebentos dessas mesmas malvas, folhas compridas de eucalipto com as quais “fazíamos de conta” que eram peixes, etc.

Não havia transportes públicos, não tínhamos carroça nem burro, andávamos a pé e, para nos visitarmos, percorríamos distâncias agora impensáveis.

Minha mãe contava-me muitas vezes que, quando eu ainda era muito pequena, ia a pé, com uma das suas irmãs, visitar os meus avós em Malarranha. Colocavam-me dentro de uma “Balalaica” – alcofa de junco colorida com espaço suficiente para transportar um bebé, e cada uma pegava em sua asa. Já mais crescida, íamos de carroça que os meus pais alugavam para nos transportar, nesses 13 ou 14 Km que nos separavam da casa dos meus avós…

Só tínhamos um par de sapatos, o que era uma sorte que nem todos os meninos e meninas da vila tinham… alguns andavam sempre descalços. Usávamos muitas vezes um algodão no bico do sapato pois, quando se comprava um par, havia a preocupação de poder ser usado durante muito tempo e comprava-se um pouco maior do que o pé…

Muitos de nós morriam sem terem visto o mar, um barco, uma cidade e sem saberem o que era andar de automóvel. Os livros que havia em casa eram apenas os escolares, e só a Biblioteca Itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian veio fazer a diferença nesta tão grave lacuna da nossa formação.

A primeira vez que me lembro de ter andado num automóvel foi quando fiz o exame da 4ª classe. Este era feito em Mora e, apesar de haver pouquíssimos carros em Pavia, o pai de uma das meninas da minha classe tinha um, e fez o favor de me levar.

Todos os domingos íamos à missa e lembro-me de haver uma completa separação de meninos de um lado e meninas do outro, nos bancos seguintes ficavam as mulheres e atrás os homens.

Íamos a pé para a escola, o que para mim, que morava na ponta norte da vila, era fácil, mas para meninos que moravam nos “montes” era muito longa a caminhada logo de manhã e depois de tarde. Alguns tinham mais de uma hora de caminho para percorrer a pé. Havia a Escola Masculina e a Feminina, com edifícios separados por vedação e arbustos que nos impediam de olhar o outro lado… Lembro também que os meus avós, e as outras pessoas das gerações do seu tempo, trabalhavam até terem força física, e quando deixavam de o poder fazer ficavam dependentes dos filhos porque não havia reformas ou outro tipo de subsídios. Havia um pequeno hospital na vila, que na minha meninice tinha um médico e uma auxiliar de enfermagem, mas muitas vezes não havia dinheiro para comprar medicamentos…

Não tínhamos água canalizada e lembro como era difícil carregar os cântaros no quadril ou à cabeça, com a ajuda de uma “sogra” geralmente feita de uma rodilha, e subir a ladeira íngreme que separa a Fonte da vila. Apesar de tantas dificuldades a nossa casa de Pavia já tinha uma cisterna que recolhia água da chuva, o que era uma grande ajuda para a minha mãe lavar a loiça e a roupa à mão, num pequeno tanque.

Lembro-me como era difícil fazer os trabalhos de casa à luz do único candeeiro de petróleo, que não dava luz suficiente porque tinha de se poupar e para tal, a chama que nos iluminava era sempre demasiado pequena.

Na cozinha era a grande chaminé que preenchia quase toda a divisão. Havia uma mesa de aba que se abria quando os meus avós, de longe em longe, nos visitavam… sim, porque um pastor não tinha domingos nem feriados, os animais tinham de pastar todos os dias. O mesmo acontecendo com o meu avô paterno que, como trabalhava em cantaria, era pago pelo conjunto da obra e por isso também não tinha dias de folga.

Não tínhamos móveis, a loiça era empilhada na cantoneira, que mais não era que duas ou três prateleiras em forma de triângulo colocadas num dos cantos da cozinha. Os cântaros ficavam no seu poial, que era uma pequena construção de alvenaria com uma altura que permitia ao adulto despejar a água dos cântaros facilmente. Por baixo deste poial colocavam-se geralmente os grandes alguidares de barro para amassar o pão, e outros para a matança do porco, por alturas de Janeiro, quando havia hipótese de criar algum.

Estes alguidares e outra loiça de barro eram geralmente comprados a oleiros de Redondo, que andavam de terra em terra e tinham um pregão muito peculiar – “Mel, Água-mel e Loiça…” Na cozinha havia também um lavatório em ferro, com bacia, balde para despejo das águas e jarro. Alguns tinham um suporte para um pequeno espelho.

Não sabíamos como era uma casa de banho, nunca tínhamos visto uma banheira, uma sanita, um bidé, um chuveiro… tomávamos banho por partes, num alguidar de zinco a que chamávamos Grande, mas que só quando bem pequenos cabíamos lá dentro.

O nosso colchão era feito de lã de ovelha. Todos os Verões havia que retirá-la do forro, lavar, secar e tornar fofa com o abrir dos pequenos tufos de lã. No entanto, na minha memória há ainda a lembrança do barulho que fazia um dos primeiros colchões onde dormia, por ser feito de palha de milho o que, quando nos virávamos, além do barulho, ia-se desfazendo e largava pó.

Comíamos muitas sopas de pão, muito saborosas. A minha mãe ou as minhas avós cozinhavam com os legumes que cultivavam no quintal ou que colhiam no campo, por serem espontâneos. Quando havia possibilidades de engordar um porco, e lembro que os meus pais nem todos os anos o conseguiam, havia “a matança” que permitia o enriquecimento das comidas com pequenos pedaços de carne e com enchidos que eram curados na chaminé, em lume de chão.

Por vezes, a minha mãe matava uma galinha e isso acontecia quase sempre se era dia de festa ou se algum de nós estava doente… fora isso, comíamos sopa de feijão com couve, sopa de beldroegas com ovo, cabeças de alho e pedaços de queijo cozido, sopa de feijão com nabiça, sopa de cardos, sopa de alabaças com feijão, açorda com ovo e azeitonas ou figos no tempo deles, sopa de tomate, feijão frade com ovo cozido de azeite e vinagre, sopa de feijão com mogango, gaspacho no Verão que refrescava até a alma. De longe em longe minha mãe fazia cozido de grão que era sempre muito apreciado, e onde os pedaços de carne eram muito pequenos porque havia que a poupar, para que chegasse para o ano inteiro…. gostava também muito do arroz de hortelã que a minha mãe fazia e que deixava um aroma na casa que ainda tenho na memória…

Lembro-me de brincar na rua com as meninas da minha idade, nas noites de verão em que ficávamos até mais tarde em alegres brincadeiras, e todos os vizinhos e vizinhas se sentavam à porta a apanhar fresco e a conversar. As mulheres ficavam quase sempre sentadas num “mocho” e viradas para a parede e os homens virados para a rua. Ainda hoje esse costume se mantém por aqui, na minha rua! No entanto, hoje homens e mulheres ficam viradas para onde lhes apetece, sem distinção dos géneros.

Muitos dos adultos que conhecia não sabiam ler nem escrever, mas eram mestres na ceifa, na monda, na apanha da azeitona, na vindima, no manobrar da charrua ou de um trilho, atrelados a uma parelha de mulas, no tirar cortiça, na condução de carroças… O meu pai, os meus tios e o meu avô paterno eram exímios canteiros. Sabiam procurar e retirar da pedreira o bloco melhor para a obra de cantaria que lhes havia sido encomendada e depois trabalhá-la com maceta e ponteiro, sem qualquer tipo de máquina que lhe facilitasse o trabalho.

Nas famílias havia muitas crianças que morriam quando pequenas, e muitas outras morriam à nascença por falta de cuidados médicos. A minha mãe contou-me que teve um nado-morto e que à sua mãe, minha avó materna, lhe morreu uma filha com 3 anos. Nascíamos todos em casa, com ajuda de uma mulher mais velha e experiente que ajudava a grávida, mas geralmente sem qualquer outro tipo de ajuda médica.

Quando fui para o Liceu Nacional de Évora, havia ainda a separação entre rapazes e raparigas. Apenas nas turmas de melhores alunos podíamos estar juntos.

Não podíamos entrar no Liceu sem meias e lembro que algumas amigas mais ousadas vinham com as meias no bolso da bata branca e, ao cimo da ladeira do Liceu, calçavam-nas então para que o senhor Almas não ralhasse.

Lembro com alguma tristeza o almoço gratuito dos alunos mais pobres, como eu. Nós, as meninas, tínhamos de “merecer” essa refeição com o pôr e levantar as mesas e colocar as terrinas e travessas nas mesas dos professores e alunos que podiam pagar a refeição.

Quando fiz o curso do Magistério Primário tive de estudar Organização Política e Administrativa da Nação e apercebi-me de desigualdades entre homens e mulheres que não sonhava existirem e acredito que muitos dos que não viveram nesse tempo nem sonham possíveis.

A título de exemplo deixo aqui alguns: para casarem, as professoras do ensino primário tinham de pedir autorização ao director do Distrito Escolar onde exerciam. E uma das condições da autorização era o ordenado desse pretendente não ser inferior ao dela.

Nos concursos para professores agregados, ou sejam aqueles que ainda não tinham um lugar de efectivos numa escola, a ordenação dos candidatos era feita primeiro por género, depois por nota e seguidamente por idade. Os homens ficavam em primeiro lugar e só depois vinham as mulheres. Por isso, independentemente de uma professora ter melhor nota do que um qualquer professor, eles ficavam sempre à frente e conseguiam geralmente ficar na escola que queriam.

Lembro-me também que, para obtermos a carta de condução antes de atingirmos a maioridade, aos 21 anos, tínhamos de ter a emancipação dada pelo pai. O pai, e só ele, era o responsável pela educação dos filhos.

Para casar com um oficial do exército português nós, mulheres, tínhamos de comprovar a nossa robustez física com atestado médico e apresentar um Registo Criminal sem mácula, passado pelo Governo Civil.

Os rapazes jovens tinham uma “espada” sobre a cabeça que se chamava Guerra Colonial. Infelizmente não há aldeia, vila ou cidade que não tenha tido jovens militares mortos nas antigas colónias. Foram cerca de nove mil os jovens portugueses que perderam a vida numa guerra que não queriam fazer. E quantos milhares de nativos terão morrido? Estima-se que terão sido à volta de trinta e cinco mil, entre crianças, mulheres, homens, gente de todas as idades…

Concluí o meu curso de Magistério Primário quando tinha quase 18 anos. Por isso, em Outubro de 1973, pude começar a dar aulas e fui colocada como professora agregada na Escola Primária de Glória. Esta aldeia linda do concelho de Estremoz acolheu-me com muito carinho, e lembro com muita ternura aqueles meninos e meninas da 1ª e da 4ª classe que ficaram na minha turma. Na escola havia 2 professoras e não tínhamos auxiliar. Eram as mães e avós dos meninos que faziam a limpeza à vez.

Quase todos os dias algumas daquelas crianças me levavam flores. Por vezes eram pequenos raminhos de flores do campo que colhiam nas veredas que percorriam até chegarem à escola, ou então algumas que as avós ou as mães colhiam, nas suas hortas… No entanto, sempre me diziam: “senhora, estas rosas são para si!”! Foi o único lugar do mundo que conheci onde todas as flores eram apelidadas de “Rosas”!

Eu deslocava-me de motoreta, entre Estremoz e a Glória, pois não tinha possibilidade de comprar um carro.

Esta motoreta fazia as delícias dos meus alunos quando, de vez em quando, alguns deles pediam para subir a ladeira sentados na motoreta, felizes, enquanto eu a pé conduzia ao lado dela, desde o sopé da pequena elevação onde se situava a escola.

Lembro claramente aquela manhã de 25 de Abril, desse ano de 1974 em que, como de costume, peguei na motoreta, circundei o Rossio Marquês de Pombal e dirigi-me à saída da cidade, passando como habitualmente pela Mata de Estremoz.

Ao entrar na Mata fiquei admirada com uma coluna militar com vários carros e peças de artilharia (penso ser este o verdadeiro nome), todos alinhados na beira do caminho. Os soldados estavam junto das viaturas, alguns dentro delas, e conversavam entre eles em conversa que me pareceu descontraída… A minha curiosidade e juventude fez-me parar a motoreta para perguntar se estava tudo bem, o porquê de estarem ali e para onde iriam.

De forma também descontraída, alguns sorrindo por me verem de motoreta, e apesar de não recordar textualmente as respostas que me deram, sei que disseram que sim, estava tudo bem, que estavam ali porque tinham recebido ordens para tal e que não sabiam para onde era a volta que se seguiria…

Saudámo-nos cordialmente com votos de um bom dia e voltei a acelerar a minha pequena motoreta até à Gloria.

A manhã decorreu como de costume; almocei na escola o pequeno farnel que habitualmente comia na companhia de alguns alunos, que também levavam, tal como eu, uma pequena marmita. No final da hora de almoço a colega Virgínia, que vivia na aldeia, voltou de casa com a notícia de que se devia ter passado qualquer coisa em Lisboa, porque a rádio estava a passar música clássica… eu confesso que não valorizei muito, mas lembrei-me então que já de manhã, ao acordar, não tinha conseguido fazer a minha ginástica matinal que nos era proposta pela rádio e que, também eu, apenas tinha ouvido música clássica.

Foi então que relatei à colega o facto de ter encontrado uma coluna de militares do Quartel de Cavalaria de Estremoz, estacionada na Mata.

Ainda assim cumprimos a nossa tarde de trabalho normalmente, sem preocupações.

Só quando, depois das aulas, cheguei a Estremoz e vi um grupo de pessoas em volta de um pequeno rádio, percebi que se passava mesmo qualquer coisa estranha… dirigi-me então à papelaria para tentar comprar algum jornal e estavam ali imensas pessoas que ouviam rádio, e comentavam que estava a acontecer um golpe militar para derrubar o governo.

Confesso que logo, logo, nem percebi porquê, pois a minha formação política era nula. Lembrei-me então da minha mãe que, de vez em quando se lamentava de não perceber a razão pela qual o meu irmão, na altura com apenas 8 anos, ter de ir para a guerra do Ultramar, daí a alguns anos.

Nessa tarde e serão foi a rádio a nossa permanente companhia, já que não havia televisão na casa do casal onde me hospedava, na Rua de Serpa Pinto, no número 110, em Estremoz, e lá fomos percebendo melhor o que se passava em Lisboa.

Só passado algum tempo fiquei a saber que a coluna militar de Cavalaria de Estremoz, que eu encontrara na Mata, tinha ajudado o saudoso Capitão Salgueiro Maia a tomar o Quartel do Carmo, nessa tarde.

E só alguns anos mais tarde soube que aquela coluna era comandada pelos capitães Andrade Moura e Alberto Ferreira, que tiveram também um papel determinante quando, pouco depois da rendição de Marcelo Caetano, neutralizaram, em colaboração com Forças de Fuzileiros da Marinha comandadas pelos tenentes Vargas de Matos e Lobo Varela e coordenadas pelo Comandante Costa Correia (que viria a organizar as eleições de 1976), a acção agressiva da PIDE-DGS que tinha entretanto abatido quatro manifestantes, bem como a posterior ocupação da respectiva Sede. Aqueles militares regressaram depois a Estremoz, onde seriam entusiasticamente recebidos.

Nos dias que se seguiram continuámos a ouvir a rádio e a ler alguns jornais.

Confesso que comecei a descobrir um mundo que não sabia que existia.

Por exemplo, foi grande a surpresa que tive quando conheci as funções da polícia política (DGS – PIDE) e daquilo que faziam aos presos políticos.

Poucos dias depois do 25 de Abril chegou o dia 1 de Maio. Deste dia eu apenas tinha a lembrança de, quando pequena, todos os anos, pela calada da noite de 30 de Abril, algumas raparigas solteiras enfeitarem os dois cruzeiros da minha vila, antes de nascer o primeiro Sol de Maio. E de manhã, os meus pais e vizinhos perguntavam uns aos outros se tinham deixado entrar o Maio. Isto porque, seguindo um hábito muito antigo, todos deviam levantar-se antes do nascer do Sol, para “não deixar entrar o Maio”. Mas este 1 de Maio, o primeiro 1º de Maio, não tinha nada a ver com este costume. Este Primeiro de Maio de 1974 trouxe para as ruas multidões em todas as cidades e vilas, houve discursos inflamados, as ruas encheram-se de gente de todos os lados, ninguém queria perder um momento daquela festa tão bonita de gente a sorrir e a gritar “O Povo Unido, Jamais Será Vencido”, “O Povo está com o MFA” e “Não à guerra, sim à paz”!

Foi por essa altura que soube que esta era, há muito, uma data importante pelo mundo fora…

É com satisfação e saudade que lembro a alegria de ter vivido aquela época de descobertas, de solidariedade, de vontade de ajudar a construir um país melhor.

Nas férias desse Verão de 1974, envolvi-me num trabalho voluntário que me trouxe enriquecimento humano e uma alegria muito grande que jamais esquecerei.

Durante um mês e meio a Câmara Municipal de Évora promoveu Campanhas de Alfabetização em dois locais da cidade e numa pequena aldeia que fica a uns treze quilómetros – Valverde.

Integrei um grupo de seis jovens – a Cristina, o Alfredo, o Luís, o Américo, o Manuel e eu – que rumou a Valverde para aquela aventura, e é com saudade que os lembro a todos. Dois deles eram também já professores de ensino primário, tal como eu.

Enquanto alfabetizadores tínhamos, essencialmente, duas grandes tarefas. Uma delas era ocupar os tempos livres das crianças da aldeia durante o dia, a outra era a alfabetização de homens e mulheres que queriam aprender a ler e escrever ou desenvolver o pouco que já soubessem.

A sala de aula estava sempre cheia. As aulas realizavam-se durante o serão, depois do regresso do trabalho e todos eram bem-vindos.
No processo de aprendizagem da leitura e escrita baseávamo-nos no método de Paulo Freire, que em Portugal foi adaptado pelo Professor Lindley Cintra e nele surgem palavras como tijolo, trabalho, ordenado, chuva, escola, vinho, saúde, máquina, etc. Foi assim que com 18 anos me vi a tentar ensinar mulheres e homens com idades compreendidas entre 28 e 80 anos e que queriam pelo menos aprender a fazer o seu nome, diziam.

Era muito comovente observar a alegria que acontecia naquela sala de aula quando descobriam palavras novas. Alguns choravam mesmo de alegria quando percebiam que eram capazes de ler palavras nos jornais, nos cartazes ou em qualquer suporte.

Aqueles rostos sorriam com um entusiasmo contagiante sempre que cada um deles descobria uma nova palavra, as nossas palavras. Era uma conquista gigantesca!

Foram dias muito felizes aqueles! Para nós, jovens voluntários, aquela experiência enriqueceu-nos e ligou-nos para sempre, numa amizade muito gratificante!

Um deles regressara de Moçambique em 1970, evacuado de urgência, gravemente ferido pela explosão de uma mina. Era um dos muitos jovens militares que, sendo pacíficos, eram obrigados a fazer a guerra colonial que não queriam. O seu corpo ficou cheio de estilhaços e foram necessários dois anos para recuperação, no Hospital da Estrela, de onde saiu com marcas irreversíveis. Se outro mérito não tivesse tido, a Revolução de 25 de Abril de 1974, pelo facto de ter acabado com a Guerra Colonial, já tinha valido a pena! Foram milhares de jovens que vieram sem pernas, sem braços, cegos, e com traumas que ainda hoje os martirizam e às suas famílias. Alguns deles formaram, mais tarde, a ADFA – Associação dos Deficientes das Forças Armadas, numa tentativa de se apoiarem uns aos outros.

Para nós foram tempos de muita descoberta, muita alegria. Eu nunca ouvira falar de muitos temas que a Revolução nos trouxe. Todos os dias surgiam novos assuntos que a pouco e pouco fomos desbravando. Pela primeira vez soube que havia censura nos jornais, nos livros, que havia uma polícia que prendia e torturava os que pensavam de maneira diferente do governo de então, que havia um campo horrível para onde eram desterrados os grandes opositores ao regime – o Tarrafal.

As ruas ganharam coloridos de bandeiras, manifestações e palavras de ordem que despertavam em mim curiosidade e ao mesmo tempo me motivavam para me tentar posicionar perante discussões diversas. Temas como novos métodos pedagógicos de ensino-aprendizagem, ensino de crianças com deficiências, eleição de representantes sindicais, constituição de cooperativas de ensino ou agrícolas e reforma agrária eram motivo de acesas conversas.

Apesar de ser muito jovem e muito inexperiente, eu sentia uma vontade enorme de contribuir para um mundo mais justo. No meu segundo ano de serviço fui colocada na Escola Conde de Ferreira em Montemor-o-Novo e lembro que encarava todas as dificuldades com positivismo e de uma maneira esperançosa, que penso ter conseguido manter em mim, sem esforço.

Tudo era novo, até as palavras. Muitas delas não faziam parte do meu vocabulário.

Palavras e expressões como democracia, guerra colonial, partidos políticos, eleições livres, direito ao voto, sessões de esclarecimento, igualdade de oportunidades, trabalho igual – salário igual e tantas outras que não usávamos até então, passaram a fazer parte de muitas conversas.

Todos estávamos a aprender e em todas as instituições se discutiam ideias e propostas para se encontrar a melhor maneira de fazer avançar a Democracia. Tudo demorava sempre muito tempo a analisar, pois os debates eram muito acesos e participados. Lembro aqui a importância que teve a aprovação da Constituição da República, em Abril de 1976 pela Assembleia Constituinte, onde pela primeira vez as mulheres passaram a ter os mesmos direitos que os homens. Casei em 1975 com o jovem que foi alfabetizador comigo em Valverde, e que viera de Moçambique com marcas profundas da guerra. A nossa casa passou então a acolher os encontros que organizávamos com os amigos, onde não faltavam a viola do Zé Pinto, o declamar inflamado do Brito, os solos melodiosos da Maria Eduarda, os poemas do querido António Monginho, as leituras de alguns poemas e textos dos nossos escritores preferidos, alguns que só então soube que tinham tido livros proibidos pela censura, e cantávamos em grupo e, no final, muitas vezes terminávamos com uma açorda que nos confortava…

Em tudo o que nos envolvíamos havia sempre um grande empenho e uma vontade de nos superarmos.

Lembro também os primeiros anos de comemorações do aniversário da Revolução. Além das cerimónias oficiais saíamos para a rua, cantávamos e festejávamos em grupos de amigos… num desses anos, na taberna do amigo Parreira, no Bairro do Frei Aleixo em Évora, já noite dentro, estivemos com o saudoso Adriano Correia de Oliveira, que chegou acompanhado por Manuel Teixeira Gil e o Joaquim Guerra, militares que também ajudaram a fazer a Revolução de Abril. Com eles e tantos outros que se foram juntando a nós, ouvimos e cantámos baladas, algumas antes proibidas e onde não faltou a Grândola, Vila Morena. Era tanta a felicidade que parecia não caber dentro de nós e os dias pareciam não chegar para tanto que havia por fazer.

Foram tantas as mudanças positivas que aconteceram no nosso país desde então que dificilmente conseguiria enumerá-las todas. Nessa impossibilidade referirei algumas que me marcaram muito…

Poucos anos depois do 25 de Abril de 1974 integrámos um grupo de professores e pais de crianças com deficiência e fundámos uma Cooperativa de Educação e Reabilitação de Crianças e Jovens Inadaptados de Évora, a CERCIDIANA que ainda existe.

No início apenas tínhamos uma sede provisória numa oficina da cidade e depois, por cedência da Cooperativa Agrícola da Herdade das Cortiçadas em S. Sebastião da Giesteira, começámos as aulas e terapias com um pequeno grupo de alunos, numa casa grande daquela Herdade. Era difícil e dispendioso o transporte das crianças e jovens para aquela localidade, uma vez que nessa altura ainda não possuíamos uma carrinha e começámos a transportar os alunos em Táxis… paralelamente solicitámos apoios a várias entidades. Todo o mobiliário, utensílios, ferramentas, carrinhas para transportar os alunos foi conseguido com apoio da Segurança Social, do Ministério da Educação, do IEFP, da saudosa Condessa de Vilalva, de pessoas anónimas e do trabalho não remunerado de tantas horas de pais, técnicos e de nós professores, que nos desdobrávamos para conseguir condições de apoio e aprendizagem para aquelas crianças e jovens, que até então estavam em casa ou com grandes dificuldades nas escolas regulares…

Veio por fim a hipótese de adquirir uma Quinta nos arredores de Évora, perto do belíssimo Convento do Espinheiro, hoje Hotel, a Quinta do Feijão que com a ajuda de várias instituições do estado português e de alguns cooperantes se conseguiu comprar. Era um espaço adequado para proporcionar aos alunos o desenvolvimento das suas competências e aprendizagens e tinha espaço ao ar livre para diversificar actividades, fora de salas de aula…

Uns anos mais tarde fomos cofundadores de uma IPSS (Instituição Privada de Solidariedade Social), a ARASS (Associação de Reabilitação Apoio e Solidariedade Social), com o objectivo de construir uma residência e proporcionar terapias ocupacionais para os jovens com deficiência grave da CERCIDIANA, e outros, cujos pais estavam com dificuldades em cuidar deles por terem idades avançadas. Felizmente esta instituição ainda existe também e “está de boa saúde”.

A Democracia permitiu que todas as crianças e jovens tivessem direito à igualdade de oportunidades para ir à “Escola”, ainda que nesta fase não se falasse de Inclusão, mas sim de Integração na sociedade. Isto foi um avanço muito significativo no nosso país. Mais tarde começou a preferir-se que as crianças que apresentavam algum tipo de deficiência não muito grave, em vez de irem para as instituições pudessem estar nas escolas regulares com alguns apoios regulares de professores especializados.

A aprovação do Serviço Nacional de Saúde foi outra valiosa e muitíssimo importante medida que veio permitir melhorar a vida dos portugueses de uma maneira muito significativa, e contribuiu também para baixar imenso a mortalidade infantil.

Lembro também que foi depois da revolução que as classes trabalhadoras mais pobres puderam comprar frigoríficos, fogões a gás, televisão, etc. As Câmaras Municipais e Juntas de Freguesias começaram a apetrechar os seus territórios com a rede de distribuição de água canalizada, de esgotos e energia eléctrica e por isso, um pouco por todo o país, as casas de habitação, mesmo as de aldeias mais distantes de grandes centros, começaram a ter muito melhores condições de habitabilidade.

Nas escolas, além da generalização dos apoios a todas as crianças, muitas alargaram a sua oferta de formação em horário pós-laboral. O mesmo aconteceu em algumas universidades, o que motivou muitos adultos que já trabalhavam a continuar os estudos, como foi o meu caso.

A pouco e pouco foram começando a surgir nomes de mulheres nas listas para os vários órgãos de poder da nossa jovem Democracia. Mas muito raramente elas encabeçavam essas listas.

Algumas vezes o nome delas até surgia em terceiro lugar e muito mais raramente em segundo, mas como a lei permitia que o primeiro candidato da lista vencedora escolhesse de entre os restantes quem ele quisesse para a constituição dos executivos, quase sempre acontecia que estes órgãos ficavam constituídos só por homens. Quanto à minha experiência no campo das organizações associativas ou de órgãos de poder eleitos, posso referir que no final dos anos 70, apesar dos meus vinte e poucos anos, fui eleita delegada sindical do SPZS (Sindicato dos Professores da Zona Sul) e logo depois integrei por alguns anos a direcção desse mesmo sindicato. Depois desta curta incursão na vida sindical, não mais voltei a envolver-me numa organização deste género. Só muito mais tarde, já com 50 anos de idade e durante dois mandatos (de 2005 até 2013), fui convidada para integrar a lista de candidatos do PS à Assembleia Municipal de Évora. Aceitei como independente e pela primeira vez tive oportunidade de participar em algumas reuniões da Assembleia Municipal, a substituir membros eleitos.

Entretanto no final de 2007 voltei a Pavia e aqui permaneço desde então. Restabeleci velhos laços, avivei memórias de lugares e pessoas, fiz-me apicultora e em 2013, para minha admiração, fui convidada por duas forças políticas para integrar as suas listas candidatas à Assembleia de Freguesia de Pavia. O convite chegou-me por parte do PS, de novo e da CDU, pela primeira vez.

Depois de alguma reflexão, pareceu-me que me identificava mais com algumas das pessoas da lista da CDU.

Aceitei então fazer parte da lista para a Assembleia de Freguesia de Pavia, como independente, na lista apoiada por aquela coligação.

O meu nome foi colocado em 3º lugar na lista ordenada, tendo dois homens nos dois primeiros lugares e de novo outro homem colocado em 4º lugar.

Aquela coligação venceu as eleições e, se fosse aplicada a Lei da Paridade, eu teria sido convidada a integrar o executivo da Junta, uma vez que este era e é constituído por 3 elementos e o meu nome surgia em 3º lugar. Mas não, o executivo ficou com 3 homens, com a chamada para o executivo do candidato que surgia na lista depois de mim, e eu assumi o cargo de presidente do órgão deliberativo que é a Assembleia de Freguesia.

Este procedimento não faz justiça ao espírito da lei. Na minha perspectiva, uma mulher naquele executivo poderia enriquecê-lo e não diminuí-lo.

Infelizmente muito está por cumprir no que toca a colocar as mulheres em posições elegíveis. Elas ocupam apenas vinte por cento das presidências de Juntas de Freguesias e menos de dez por cento das presidências de Câmaras Municipais em Portugal.

No entanto, passados 47 anos sobre o 25 de Abril de 1974, encabecei a lista de candidatos nas eleições autárquicas para a Assembleia de Freguesia de Pavia, em 2021. Integrei essa lista como independente, de novo apoiada pelo PS, e ganhámos a eleição. Pavia passou a ter no conjunto do executivo da Junta e da Assembleia de Freguesia, pela primeira vez na sua história, o mesmo número de mulheres e homens, num total de 10 elementos. O executivo da Junta ficou constituído pelos três primeiros elementos que encabeçavam a lista candidata, pela ordem em que se apresentaram ao eleitorado na campanha eleitoral. Cumprindo a sequência de uma mulher, um homem, o executivo ficou então com duas mulheres e um homem.

Com emoção afirmo que talvez tenha chegado a hora de, a partir desta eleição, começarmos finalmente a estar atentos e a cumprir na prática a igualdade de oportunidades para homens e mulheres, também nesta questão dos lugares elegíveis, como defende a nossa Constituição e que os partidos políticos dizem defender, em teoria.

Foi graças à Democracia que os militares que fizeram o 25 de Abril de 1974 nos proporcionaram, que é possível desde então uma mulher do povo, como eu sou, chegar a presidente da Junta desta pequena Freguesia, do distrito de Évora, onde nasci. Felizmente isso já vinha acontecendo noutros pequenos lugares. Mas aqui, neste Alentejo profundo, foi necessária quase meia centena de anos sobre a chegada da Democracia ao nosso país para se cumprir esta importante conquista…

Parece-me que estamos no bom caminho. É necessário estarmos atentos e não deixarmos que situações injustas se instalem. A Democracia só será plena se nos empenharmos todos e exercermos os nossos deveres e direitos de cidadãos para que ela funcione em pleno em todos os lugares e chegue a pessoas de todas as origens sociais.

Para sempre lembrarei com gratidão o que os jovens “Militares de Abril” nos proporcionaram, com a “Revolução dos Cravos”.

O Estado Social que a Democracia nos trouxe, por muitos erros que contenha, é, sem dúvida, incomparavelmente mais justo do que aquele que os nossos avós, pais e nós próprios ainda vivenciámos. Para não nos esquecermos disto, desde a comemoração do 25 de Abril de 2022, depois da nossa eleição, na varanda da nossa Junta de Freguesia está o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta maior do Séc. XX português:

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”

Viva o Cinquentenário do 25 de Abril de 1974 e vivam os militares que o fizeram!

Viva a Democracia!

Pavia, Julho de 2023

Custódia Casanova escreve pela norma anterior ao novo Acordo Ortográfico.

#50anos25abril