Skip to main content

Como vivi e tenho vivido o 25 de Abril

Nascido em 1930, natural de Lourenço Marques, atual Maputo, Moçambique.

Licenciou-se em Engenharia Electrotécnica, pelo Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Entre 1955 e 1976, viveu de novo em Moçambique, onde além de dirigir e administrar companhias gasolineiras, calculou a rede de iluminação pública da cidade de Lourenço Marques, ensinou literatura na universidade local e desenvolveu grande actividade de animação cultural, publicando livros e textos de ensaio e crítica em revistas e jornais. Leccionou também na UNISA (universidade aberta, em Pretória). Esteve um ano, como docente (1977), na Universidade de Estocolmo, dezassete anos, como Conselheiro Cultural, na Embaixada de Portugal, em Londres, onde teve também grande intervenção nas universidades inglesas (obteve um grau de Doutor Honoris Causa, pela Universidade de Nottingham), regressando a Portugal, em 1995, onde desempenhou as funções de Presidente da Comissão Nacional da UNESCO (1995/1998) e de Professor Catedrático Visitante da Universidade de Aveiro (que lhe deu também o grau de Doutor Honoris Causa). Tem obra muito vasta, como ensaísta e crítico literário (com publicação em Portugal e no estrangeiro), como poeta e como memorialista (seis volumes) e diarista (dois volumes).

Recebeu quatro prémios literários (poesia, ensaio, biografia e um prémio de carreira). Tem seis condecorações, duas inglesas e quatro portuguesas.

É patrono do Prémio Eugénio Lisboa / INCM, para escritores em Moçambique.

 


Como vivi e tenho vivido o 25 de Abril

O 25 de Abril de 1974 apanhou-me em Lourenço Marques, então capital de Moçambique, onde nascera 44 anos antes.

Não foi, para mim, completamente inesperado, pois a guerra, que ali se arrastava, havia nove anos, dava ares de se andar a desfazer do lado português. Apesar das mensagens delirantes que o cônsul geral francês, Jacques Honoré, mandava para Lisboa, para o seu embaixador- segundo ele, o império português estava para durar mil anos – via-se que a Frelimo apertava o cerco, estava às portas da cidade da Beira, a população branca começara a perder a fé nas forças armadas portuguesas e estas não acreditavam grande coisa na missão que ali as levara: a guerra era mundialmente impopular e a África pouco ou nada lhes dizia.

Devo dizer que via o fim da guerra, com ânsia positiva, a futura independência como coisa desejável, mas com não pequena inquietação. Moçambique, apesar de todos os travões que o Estado Novo pusera ao seu desenvolvimento, era um grande país, com estruturas razoavelmente sofisticadas e eu não via que a Frelimo tivesse formado quadros para gerir tudo aquilo. Era muito mais fácil destruir, com slogans revolucionários, do que construir, com os pés bem na terra. O futuro próximo confirmou os meus receios. À hora do almoço de 25 de Abril, estava eu na minha residência em Lourenço Marques, onde viera da vila da Matola, onde trabalhava, numa gasolineira, quando o meu pai me telefonou a dizer que houvera um golpe militar em Lisboa: não sabia ainda se fora de esquerda ou de direita. Depois do almoço, dirigi-me, de automóvel, como de costume, para o meu escritório, na Matola, indo comigo o pintor António Quadros, que era também o poeta João Pedro Grabato Dias. Íamos especulando e receávamos muito que se tratasse de um golpe de direita… Pelo dia fora, verificámos que, afinal, o golpe não fora de direita.

Veio então um período breve em que o advogado Soares de Melo foi empossado como Governador-Geral, a que se seguiu o governo transitório, com Joaquim Chissano à cabeça. Este mostrou-se sensato, conciliador, trazendo alguma acalmia à população branca, inquieta quanto ao seu futuro. Por outro lado, Samora Machel, espalhafatoso, mas não corrupto – facto de assinalar em governos africanos – ia, com os seus discursos incendiários, provocando o êxodo irreversível da população branca qualificada, competente e barata… (tratava-se de uma política deliberada, concebida e incentivada pelos regimes de leste e de que Samora se mostraria arrependido, pouco antes do acidente que o matou: fazer sair de Moçambique os portugueses – disse-mo o meu amigo José Craveirinha, que era amigo de longa data de Samora Machel).

O 25 de Abril e o que se lhe seguiu trouxe ao de cima muito do pior que tem a natureza humana: o excesso, a irresponsabilidade destrutiva, o mais feio oportunismo dos que, sendo na véspera, bardos entusiastas da guerra imperial, se tornaram, do dia para a noite, entusiastas frenéticos da esquerda soviética ou maoísta, tanto fazia. De resto, os seus serviços foram logo bem recebidos pelos novos poderes: os vira-casacas são utilíssimos para o trabalho sujo que sempre aparece. Aos que, durante o Estado Novo, o combateram com coragem, mas eram independentes e não comprometidos com qualquer forma de ditadura, agradeceu-se-lhes a integridade, fez-se-lhe um aceno simpático, mas fecharam-lhes imediatamente o jornal em que haviam combatido… A pretexto de não poderem gerir tudo ao mesmo tempo…

Vou dar um exemplo deste comportamento que fere a estética, antes de ferir a ética. Poucos dias antes do 25 de Abril, Rui Oliveira, que dirigia uma simpática e bem sortida livraria, em Lourenço Marques, convidara-me para ali fazer uma conferência sobre as relações da arte com o povo, no dia 29 de Abril. Chegou 25 de Abril, mas Rui Oliveira não viu razões para cancelar a conferência, muito pelo contrário. E lá fui, no dia 29: abonando-me muito no notável ensaio de Ortega y Gasset, A Desumanização da Arte, procurei mostrar como, em certos períodos da História, como por exemplo, o Romantismo, a grande arte se tornou muito popular, com Hugo ou Delacroix, ao passo que, noutros períodos (cubismo, abstracionismo), se tornou menos acessível aos populares. O ensaio de Ortega é fascinante e riquíssimo de sugestões e pareceu-me que a minha conversa foi, no geral, bem recebida. Mas, qual não foi o meu espanto, quando, no dia seguinte, no NOTÍCIAS DE LOURENÇO MARQUES, que fora até aí um vigoroso defensor das glórias do império, um senhor Solano de Almeida, até 24 de Abril, um sólido promotor do Estado Novo, apareceu com uma “crítica” à minha conferência – Arte e Povo – , dizendo que eu falara muito de arte e pouco de povo. É sempre assim: os cristãos novos são mais cristãos do que os cristãos velhos. Isto é só um exemplo. As sujeiras neste gosto grassaram por todo o lado. Até conheci casos de indivíduos que, para não pagarem dívidas que tinham, denunciaram, como sabotadores, aos novos poderes, as pessoas a quem deviam…

A independência foi proclamada no dia 25 de Junho de 1975. Passei todo esse dia, desde o pequeno-almoço até à noite, com um editor da Tanzania, amigo dos dirigentes da Frelimo. Ele mostrara interesse em saber do mundo editorial naquela minha terra e alguém, na Frelimo, mandara-o para mim. Falámos abertamente, durante o dia, sem travões nem fusíveis. No fim, perguntei-lhe o que pensava do que vira em Moçambique. Disse-me, francamente, que estava aterrado. Nunca pensara que Moçambique fosse um país com tantas e tão sofisticadas estruturas. E, como conhecia bem a Frelimo, sabia que ela não tinha minimamente quadros, para gerir em condições aquele gigante. Claro que não tinha e, ao espantar os portugueses competentes, amantes da terra e baratos, ia colocar-se, como se colocou, nas mãos de cooperantes incompetentes, gananciosos, racistas e caros.

Foi o que se pode chamar um mau negócio.

Com a independência, veio a loucura das nacionalizações apressadas, da destruição criminosa de estruturas valiosas, do carreirismo desenfreado, do oportunismo garimpante. Com a destruição voraz dos serviços de saúde (eu tinha duas filhas pequenas), com a censura à liberdade de expressão e com tudo contra que antes lutara a voltar em grau mais elevado, resolvi fazer as malas. Avisei, um mês antes, que ia sair, fiz uma visita ao meu amigo Luis Bernardo Honwana, que tinha um gabinete mesmo ao lado do de Samora Machel, despejei o saco, ele agradeceu, desejámo-nos mutuamente felicidades e vim-me embora, com o coração a sangrar.

NOTA: Para muito maior pormenor, poder-se-á consultar o meu terceiro volume de memórias, ACTA EST FABULA – Memórias III – Lourenço Marques Revisited (1955 – 1976)

Junho de 2023

#50anos25abril