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O 25 de Abril de 1974

Nascido em 1952, natural de Nelas, Portugal.

Completou os estudos primário e secundário em Torres Vedras, e o universitário em Lisboa, na Faculdade de Ciências (Matemática)

De atividade profissional de início variada (desenhador, professor), depois analista-programador e mais tarde administrador de redes e sistemas.


O 25 de Abril de 1974

Antes

É difícil descrever o que era o nosso viver antes do 25 de Abril. Talvez a melhor imagem seja dizer que vivíamos num mundo em tons de cinzento que explodiu em cores. Vamos por partes.

Nasci em 1952, filho de professores do ensino secundário. Cresci e fui nascendo para o mundo (ou o mundo foi crescendo em mim) numa vila do oeste.

Lá cheguei à juventude, a idade em que se começam a formar as representações do mundo mais largo que nos rodeia.

Era outro mundo. Inexistente a tecnologia que é hoje a base do nosso quotidiano. Comunicação/conexão permanente e acesso livre a toda a informação (dados), estava ausente do nosso mundo.

Computadores pessoais e Internet ainda por inventar, comunicação por linhas fixas e escassas. Não havia e-mail, só snail-mail (carta, envelope, selo, marco do correio, carteiro). Nada de streaming ou videos (o que é isso?). Ouvia-se rádio e trocávamos discos vinyl (singles, EPs e LPs) entre amigos. Um disco ouvia-se até à exaustão. Não eram objectos de consumo, eram objectos de usufruto. Televisão de canal único, do regime, sem cores e com horário reduzido. Nos jornais, censurados, tentávamos ler nas entre-linhas. De vez em quando lá conseguíamos obter uma publicação clandestina. Os cafés eram as redes sociais da altura.

Ia-se a um café para um jogo de matrecos ou bilhar, ia-se a outro para actualizar os resultados da bola, a um terceiro para encontrar o nosso grupo de amigos ou só para fazer um telefonema.

Não estávamos conectados, estavamos ali, em presença. Mas a suspeição era generalizada: qualquer um poderia ser um bufo (um informador) ou um agente provocador, puxando conversa para ver se alguém derrapava.

Politicamente vivíamos numa ditadura de características fascistas: o salazarismo. Partido único (as múmias da União Nacional), censura, conversas vigiadas, pouco ou nenhum acesso ao exterior, quer in loco, quer através de meios de comunicação (os jornais e os noticiários da rádio eram os principais, únicos).

Qualquer organização política exterior ao partido da Ditadura estava confinada à clandestinidade ou ao exílio.

Socialmente, a separação de sexos era rigorosa. Escolas femininas e escolas masculinas. Quando a demografia impunha escolas mistas as turmas eram separadas e com portas e recreios separados.

Convívio reduzido e controlado.

Namoros vigiados, sexo após o casamento. Desconhecíamo-nos.

No exterior a juventude agitava-se. O blues boom (UK), a swinging London, a pop music (UK/USA), o rock (USA) exprimiam novas maneiras de sentir. O Maio de 68 em França e S. Francisco 69 transformaram radicalmente a trama social do mundo ocidental.

África e Ásia eram campo das independências, do fim do impérios coloniais. Chegávam-nos ecos, rigorosamento censurados. Os estranjas a criar novos espaços de sentir e liberdade e nós na mesma, a aturar salazarentos de odor a bafio. Sentiamo-nos parte de um movimento do qual estávamos impedidos de fazer parte.

Nos locais pequenos o ambiente era mais abafado, exigia uma atitude maior concordância com os princípios conservadores do regime e a dissidência era socialmente castigada. Em Lisboa e Porto e nas classes de maior rendimento a margem de manobra era mais ampla. A vida do povo era miserável. Guardo na memória um pátio de uma vila das Beiras em que animais e crianças se misturavam em enorme imundíce. Os bairros de lata pululavam, com a sua falta de esgotos, água potável e electricidade. Vida dura, miserável e sem esperança. Muitos emigraram para França, para uma vida difícil mas com esperança.

Foram, sofreram, trabalharam e, felizmente, alguns voltaram. O pátio é hoje um local aprazível e imaculado. Mas é impossível perceber a situação política sem referir a Guerra Colonial.

Desde 1961, e após terem esgotado as tentativas de diálogo com o regime, uma insurreição armada ganhava terreno nas colónias de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Foi a calcanhar de Aquiles do regime. A Guerra Colonial marcou fortemente a sociedade. Embora o discurso fosse sempre triunfalista e patrioteiro a maioria da população duvidava da justeza de uma guerra que o regime não poderia ganhar, embora ninguém tivesse coragem de o afirmar. E o peso social era elevado. Quantos morreram, quantas ficaram por casar? E isto tanto para portugueses como para africanos. Os meninos iam à tropa, as meninas ficavam à espera que eles voltassem (inteiros). O recrutamento era obrigatório e o tempo de serviço foi aumentando de dois até quatro anos. Trabalho só com tropa feita. Ou seja: és jovem e em vez de namorares e começares a fazer pela vida põe-te uma G3 (fusil) nas mãos e mandam-te matar e morrer. Se és menina namoras com quêm? Os rapazes andam na guerra! Pelo menos podes tentar ir fazendo pela vida (aumentou o número de mulheres no mercado de trabalho). Os universitários tinham tratamento especial, a incorporação nas forças armadas era adiada até à conclusão do curso, em tempo razoável. Depois de concluído o curso universitário ingressavam nas FAs num curso para graduação em capitães.

Foi o que me safou! Nunca fiz guerra, estava com adiamento.

Cheguei à capital em 1969, para cursar Matemática. Em Lisboa a situação era mais relaxada, menos sufocante. O Ditador já tinha caído da cadeira e fora substituído por um delfim com vontade de dar cunho próprio à ditadura. Vivia-se a Primavera Marcelista, com algum relaxamento do regime. Sol de pouca dura, manifestamente insuficiente e rápidamente obscurecida pelos ultras do regime.

Junto com alguns amigos e amigas alugámos um andar. Melhor do que andar a viver em quartos alugados. Eram espaços para viver e conviver, espaços limitados de liberdade. E com colaterais importantes: tínhamos mais livros para ler e LPs (vinyl) para ouvir.

A convivência entre sexos já era frequente e mais natural. A pílula anti-concepcional apareceu e vulgarizou-se, lentamente. Convivíamos nos cafés. Ia-se a um café para imersão no mundo dos cinéfilos, ia-se a outro para encontrar uma determinada linha política (sempre a alterar de poiso). Sempre com cuidado e falando por alegorias. Os cine-clubes e as sessões especiais (filmes) eram o nosso passatempo e alimento.

Abundavam as organizações políticas clandestinas, desde as mais tradicionais às mais recentes de cunho maoísta, estas reduzidas ao universo estudantil.

Greves operárias, fortemente reprimidas, manifestações, sempre perseguidas pela polícia de choque, escrita de slogans em locais de larga visibilidade, divulgação de notícias e propaganda, organização das lutas estudantis, eram as principais actividades políticas. Recordo o enterro de Ribeiro Santos, estudante de económicas assassinado pela PIDE/DGS. Forte bordoada entre enlutados e polícia de choque. Fortíssima oposição à guerra colonial.

Desde logo se percebia que seria a Guerra Colonial a marcar o fim do regime.

Depois das tentativas do regime para virar o curso da guerra com o Gen. Spínola na Guiné-Bissau e Gen. Kaúlza em Moçambique, o regime estava num beco sem saída. O PAIGC (Partido Africano para Independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde) seguindo o caminho traçado por Amílcar Cabral, assassinado a 20 de janeiro de 1973, proclama a independência da Guiné-Bissau a 24 de Setembro de 1973, logo reconhecida por vários países e pela OUA (Organização de Unidade Africana). O reconhecimento pela ONU estava a caminho. O regime tinha os dias contados.

O dia

O 25 de Abril de 1974 foi um pronunciamento militar transformado em revolução pelo povo. Sabendo a guerra perdida ou impossível de ganhar os militares começaram a agitar-se. O Gen Spínola publica o “Portugal e o Futuro” (livro que teria sido notável se publicado no século XIX) tornando aparente a dissidência entre a tropa e o regime. O Gen Kaúlza de Arriaga também não escondia as suas opiniões. Em resumo: Spínola – o fim do regime; Kaúlza – reforço e endurecimento do regime. Estávamos nós nesta expectativa e dá-se o Golpe das Caldas, rapidamente abafado. Mais um sinal. Também sinal, cómico, foi o da Brigada do Reumático, em que a maioria dos generais foi prestar menagem ao Presidente do Conselho Marcelo Caetano (Primeiro Ministro). Faltaram Spínola e Costa Gomes. E chegou o “dia inicial inteiro e limpo” (Sophia é incontornável). Manhã cedinho bate-me à porta um amigo.

— Sabes o que se está a passar?

— Não.

— Saí de casa e dei de caras com um tanque

— Spínola ou Kaúlza?

— Não sei.

— Vamos ver.

Saímos para a rua. Íamos a descer em direcção à Baixa quando damos de caras com um grupo de “gorilas” (polícias de choque de elevado caparro). Ui, recua! Atrás da esquina avaliámos: seguimos ou damos a volta? Seguimos! Se perguntarem alguma coisa dizemos que vamos à Papelaria Fernandes comprar material escolar. E lá fomos descendo a rua. Ao passarmos junto a um dos “armários” ouvimos um tímido e afectuoso “Bom-dia”. Quase que saltávamos de alegria, o regime dava as últimas. Uma alegria, uma ansiedade: o futuro estava ali e era preciso agarrá-lo firmemente. Foi um dia em que as horas valiam por anos. O jornal com as últimas de há uma hora atrás já tinha sido ultrapassado pela nova edição. Não sei quantas edições teve cada jornal, cada hora havia uma nova edição e/ou um novo título.

À noite, em casa de amigos, à volta da televisão, ouvimos o comunicado da Junta de Salvação Nacional. Um grupo de tropas de aspecto um pouco sinistro (que me desculpem mas, calhando, deveriam ter procurado um melhor equilíbrio na iluminação).

Pontificava o Gen Spínola. Quando o ouvi falar no “Portugal pluricontinental” percebi que na manhã seguinte era para ir para a rua e acabar com a famigerada Guerra Colonial. Eu te dou o “pluricontinental”! E assim foi.

“Nem mais um só soldado para as colónias”. Enquanto não tive a certeza do fim da guerra continuei com a minha actividade política.

De 25 de abril a 1 de maio foi um pulinho, mal deu para fazer cartazes e bandeiras. Nunca mais vi tanta gente na rua! Nunca mais uma manifestação teve a dimensão deste primeiro 1º de Maio. Imensa, múltipla, feliz.

A vida era uma vertigem, dias continham meses de acontecimentos, num mês pulavam-se décadas. O ambiente que já se vivia nas escolas, de um modo limitado, tinha saltado para a rua. A rua era nossa, de todos. Comícios, assembleias, manifestações, jornais, actividades culturais. Floresciam as comissões de trabalhadores associadas a empresas ou instituições. Ocupação de casas e herdades, gestão de empresas entregues a, ou partilhada com, comissões de trabalhadores. Limpava-se a casa e rearrumava-se a mobília. O partido único fora-se, agora havia partidos para todas as escolhas. Colisões entre visões da sociedade, por vezes violentas, eram inevitáveis. Tacteávamos o futuro. Depois da escuridão, habituávamo-nos à luz.

Claro que houve peripécias: o 28 de Setembro, o 11 de Março, o 25 de Novembro, até que turbilhão revolucionário deu origem a uma nova normalidade cheia de potencialidades. Nova constituição, extinção natural dos orgãos político-militares e entrávamos na normalidade democrática.

Por vezes lamento que as gerações que depois vieram não tenham tido a oportunidade de viver a festa que nós vivemos. Mas a rolha do champanhe só salta uma vez, um acto súbito e irrepetível.

Embora o 25 de Abril de 1974 tenha os seus autores materiais conhecidos, continuo a agradecer a Amílcar Cabral pela sua clarividência no caminho que traçou. Não era uma guerra entre africanos e portugueses, era uma guerra de africanos e portugueses contra o fascismo e o colonialismo.

Depois

Eu tomei outro caminho, a militância tinha sido um imperativo, não um gosto ou tendência. Assim que tive a certeza do fim do salazarismo, da guerra e da independência da colónias, fui-me afastando da actividade política. No chamado verão quente de 75 (que precedeu o 25 de Novembro), já eu andava a organizar concertos de jazz. Outros teciam outros tecidos, dos muitos com que se tece uma sociedade.

Guerra acabada, festa finita, houve que construir um novo Portugal (e pagar a festa: FMI). Deu-se a Reforma Agrária (a terra a quem a trabalha), primeiro por ocupação direta de herdades e posteriormente regimentada por lei (polémica). Os bairros de barracas foram desaparecendo e surgiram os bairros sociais (SAAL, Serviço Ambulatório de Apoio Local). Foi criado o Serviço Nacional de Saúde (António Arnaut). O ensino teve reformas sucessivas, talvez demais. Entravam em cena sindicatos e associações. Sugiam novos jornais.

Novo país, novas gentes, careciam de um ambiente cultural que lhes exprimisse o sentir. Campanhas de alfabetização, sessões culturais/musicais por todo o país. Uma efervescência, um entusiasmo, constantes. Muito para fazer e urgentemente: havia que recuperar da estagnação prévia. Era tempo de semear e ver crescer.

E que resultados! Na música, na literatura, em todas as áreas da cultura temos hoje em dia um fértil ambiente.

Éramos já um país normal, sem estar “orgulhosamente só”, mas alegremente acompanhado. Já se podia viajar sem ser travado na fronteira. E vagueámos, trocando ideias, trocando sentires. E recebemos. Estrangeiros que nos vinham visitar, primeiro pela curiosidade de observar in loco a revolução, depois pelo nosso belo clima e praias. Recebemos também os que regressaram das ex-colónias. Depois é o percurso de décadas até ao presente. Entrada na EU, espaço de schengen, o euro, foram marcando os tempos. E a vida lá se foi fazendo, maninha que Portugal é um país pobre de gente pobre.

E hoje?

Esfumou-se o 25 de Abril, ou pelo menos os seus ideais. Voltámos à fézada, agora modernizada em unicorns e startups. Procuramos safar-nos individualmente descurando a construção de um sociedade mais justa e amigável. Os pilares da boa governação: a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação, tudo sob uma cúpula de uma justiça com leis por todos compreendidas, aceites e cumpridas, estão hoje severamente corroídos. A igualdade e fraternidade foram substituídas pelo individualismo e identidade. A liberdade pelo pensamento único. Rufam novamente os tambores da guerra, cada vez mais perto. A democracia representativa (o poder dos eleitores) foi substituíada pela democracia liberal (o poder da “economia”) sem que tívessemos sido ouvidos. A censura foi restaurada e entregue a corporações. O pronto-a-opinar invade o quotidiano, numa alienação consensual. As grandes causas transformaram-se numa multitude de micro-causas intransigentes. A fraca qualidade das elites que nos governam é patente (ah! que saudade das elites de antanho, mesmo daqueles que abominávamos).

A vida anda difícil e não se vislumbram melhoras nem alternativas. Em que ponto do caminho nos perdemos? Que novo caminho nos querem traçar? Que caminho queremos percorrer?

O 25 de Abril de 1974 é hoje uma data similar a tantas outras, uma oportunidade de as nossas elites botarem fatiota e produzirem discursos vacuosos, plenos de banalidades de base. Esperemos que seja um dia bonito e dê p’ra ir à praia.

Abril de 2023

#50anos25abril