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Tinha quinze anos no 25 de Abril

Nascido em 1959, natural de Huambo, Angola.

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Tinha quinze anos no 25 de Abril

No dia 25 de Abril de 1974, tinha quinze anos, feitos há pouco menos de um mês.

Quando acordei de manhã, nessa quinta-feira, os meus pais disseram-me que não havia escola, que havia um movimento militar, uma revolução na rua.

Fiquei em casa, aliás ficámos todos os três, os meus pais e eu. A situação era no mínimo peculiar: a rádio e a televisão debitavam continuamente comunicados de um MOVIMENTO DAS FORÇAS ARMADAS, “MFA”, apelando para que a população, com serenidade, se mantivesse em casa.

As emissões normais de rádio e televisão tinham sido suspensas, eram só os comunicados do MFA, e músicas castrenses, estilo bandas militares.

Desde logo senti, eu que não percebia nada de política, uma certa alegria no ar: algo se estava a passar, e era bom!

Infelizmente, tenho poucas recordações desse dia e dos seguintes. Adolescente ainda, não me interessava nem um pouco por política, e, por isso, muito do que então sucedeu era para mim algo distante.

Hoje tenho muita pena de não me lembrar de mais coisas, e de não ter vivido mais intensamente aqueles momentos.

Os jornais, nesse dia e nos que se lhe seguiram, tinham várias edições diárias – ainda hoje guardo religiosamente alguns.

No dia seguinte, sexta-feira, 26, fui até ao liceu onde andava – o liceu D. Pedro V, a Sete Rios – preparado para ter aulas, mas o liceu não funcionava, estava fechado.

Regressei, com mais colegas, e ao passarmos em Sete Rios, vimos os militares que ocupavam a escola da PIDE, num extremo do largo, no ínicio da Estrada de Benfica.

Armados de G3, e com cravos na lapela, mostravam as instalações a quem quisesse, fazendo “visitas guiadas”.

Nós, miúdos do liceu – andávamos no 5º ano, actual 9º – fomos visitá-las, cheios de curiosidade e entusiasmo, olhando para as viaturas da tropa e para as armas dos soldados (acho que foi a primeiríssima vez que estava tão perto de armas militares) Creio que nunca tinha ouvido que aquele edifício que eu via sempre fechado, albergava a escola da polícia política, a temível PIDE, que toda a gente sabia que existia, mas de que nem falar se podia… de que ninguém falava, apenas se sussurrava baixinho o nome…

Efectivamente, antes DAQUELE dia 25, havia um medo latente de dizer certas coisas, que eram consideradas proibidas…

Sabia-se que havia “bufos” por todo o lado – eram aqueles que não pertencendo à PIDE, espiavam e relatavam conversas escutadas, comportamentos observados, papéis encontrados…

Por exemplo, conto uma pequena história mas que ilustra bem isto que acabei de dizer:

A água das Pedras tinha inscrita nas caricas das garrafas a sigla “VMPS” (Vidago Melgaço – Pedras Salgadas). Nós, miúdos, que jogávamos à carica, quando por vezes nos deparávamos com uma dessas caricas, dizíamos uns para os outros, muito baixinho (não fosse alguém escutar…) “Vamos Mandar Prender Salazar”….

Outro episódio do “antes”, de que me lembro bem, eram as visitas a casa dos meus pais da minha prima e madrinha de baptismo, a Lília. A Lília era uma dúzia de anos mais velha que eu, uma democrata: quando estudante na Faculdade de Letras andou nas revoltas estudantis, viveu aí as cargas da polícia de choque. E n’A Brasileira também.

Quando ia lá a casa, depois do jantar, ela e o meu pai entusiasmavam-se, começavam a falar alto, de política, a pedir “a democratização do capital”, como o meu pai lhe chamava. E a minha mãe, em pânico pedia-lhes para falarem mais baixo, “vocês vejam lá”, e encostava a porta da sala e a porta do corredor, não fosse o diabo tecê-las… E eu, puto, brincava tranquilamente com os meus carros no quarto…

Era isto, a sensação de que não se podia falar em liberdade, falar alto, que alguém – um “bufo” – podia ouvir…

Depois os anos foram passando, nunca me interessei muito por política (nem hoje ainda, aliás…), e aos 18 anos – em 1977 – entrei para a Academia Militar, onde fiz o curso de Engenharia Militar, tendo depois seguido a carreira das armas.

Como cadete, lembro-me que gostava de ver na tv o Presidente da República, general Ramalho Eanes, fardado de uniforme Nº1, o mesmo uniforme que eu usava na Academia (é o uniforme de saída do cadete-aluno da Academia Militar). Sentia uma pontinha de orgulho por usar a mesma farda que o Comandante Supremo das Forças Armadas.

O tempo foi passando, e só passados anos, ia ouvindo aqui e ali que determinado oficial “tinha estado no 25 de Abril”. A minha curiosidade sobre o golpe militar foi-se intensificando.

Assim, em Tancos, na Escola Prática de Engenharia (EPE), aí por 1984/85, como tenente, tive como instrutor o então major Luís Macedo, de quem ouvi dizer muito vagamente, “esteve no 25 de Abril”. Mas nada de concreto soube então.

Pouco ou nada sabia ainda sobre aquela data histórica do nosso País, e do movimento militar que tinha derrubado o regime.

Em 1986, por ocasião de uma visita de estudo do curso de promoção a capitão, que eu então frequentava, à Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, tive oportunidade de cumprimentar o Salgueiro Maia, então tenente-coronel e responsável pelo Museu da Cavalaria.

Estava longe de pensar, que anos volvidos, lhe estaria a prestar uma última homenagem na capela da Academia Militar…

Decorridos mais uns anos, sendo eu já capitão, foi colocado na EPE o então tenente-coronel Pinto Soares, o conhecido militar ligado ao 25 de Abril. Apesar de logo termos ficado muito amigos, mesmo com a diferença de idades e postos (ele insistia para que eu o tratasse por “tu” e pelo nome próprio – “sou apenas um camarada um pouco mais velho”, mas eu não era capaz). No entanto, pouco ou nada falei com ele sobre o 25 de Abril.

Creio que foi só anos mais tarde, já eu era coronel e professor na Academia Militar, mercê de um almoço semanal de camaradas, que conheci um outro capitão de Abril, já coronel, o Manuel Barbosa Pereira, que me foi falando sobre o 25 de Abril, as reuniões conspiratórias, o movimento militar, os tempos imediatamente a seguir à revolução. Fui então tomando conhecimento com uma série de militares ligados ao MFA, a maioria meus conhecidos, pelo menos de nome.

Entretanto fiz-me sócio da Associação 25 de Abril (A25A), e passei a frequentar a sua sede, para almoçar ou assistir a debates, colóquios e conferências.

Por essa mesma altura, enquanto professor na Academia Militar (estive lá de 2006 a 2008), “descobri” que um professor militar, já na reserva, era “o” coronel Sanches Osório, que como major integrou o Posto de Comando do MFA (PCmd MFA). E ainda para mais, oficial da mesma Arma (Engenharia) que eu. Travámos amizade, falámos bastante e ainda hoje o fazemos.

Um momento, verdadeiramente histórico para mim, e que recordo com muito carinho foi um almoço na A25A com todos os militares então ainda vivos que constituíram no Regimento de Engenharia da Pontinha o PCmd MFA. Estiveram presentes: o Otelo Saraiva de Carvalho, o Sanches Osório, o Luís Macedo (com quem falei então pessoalmente, não o via há décadas, ele tinha ido trabalhar para Moçambique há muitos anos), o Garcia dos Santos e o Vítor Crespo. Foi já depois de ter deixado o serviço activo que vim a saber por um camarada do meu curso, que esteve muito tempo na GNR, que um coronel que esteve comigo na Academia Militar no já citado período de 2006-2008, era o alferes miliciano Maia Loureiro, que acompanhou o capitão Salgueiro Maia até Lisboa na madrugada do dia 25 de Abril, e que aparece em inúmeras fotografias, algumas icónicas da Revolução, especialmente no Terreiro do Paço e na Ribeira das Naus. Entretanto já falámos e já lhe disse o quanto o admiro, como protagonista de momentos tão relevantes da nossa história.

Ou seja, fui conhecendo (melhor dizendo, re-conhecendo) gradualmente, ao longo dos anos, muitos militares que intervieram na madrugada libertadora. Enfim, mais vale tarde que nunca… Já como sócio da A25A, tive oportunidade, quando de um aniversário recente do 25A, de explicar a um grupo de alunos de uma escola de Loulé a acção desenvolvida por Salgueiro Maia, o movimento para Lisboa da coluna de militares da EPC por este capitaneada, o que se passou depois no Terreiro do Paço e o movimento para o Largo do Carmo.

É com muito orgulho que sou amigo e conheço pessoalmente todos estes camaradas militares, que, num acto de abnegada coragem, nos deram a Liberdade, naquela madrugada revolucionária.

Lisboa, Junho de 2023

PS: A ortografia deste texto não respeita – felizmente – o dito Novo Acordo Ortográfico.

#50anos25abril