A propósito do 50.º aniversário do 25 de Abril
Nascido em 1938, natural de Laceiras, Carregal do Sal, Portugal.
Professor Catedrático (aposentado) de Matemática na Universidade de Coimbra. Foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática.
A propósito do 50.º aniversário do 25 de Abril
O Portugal que encontrei quando nasci e o Portugal que habito na última fase da vida são dois países totalmente distintos.
Nasci numa aldeia da Beira Alta. Muitos andavam descalços, fosse verão fosse inverno, não havia electricidade (poucos sabiam o que isso era) nem a água corria das torneiras, tinha de se carregar à cabeça do chafariz, tarefa reservada às mulheres. Era difícil matar a sede no verão, a minha mãe não permitia que bebesse água sem a ferver previamente com receio do tifo e outras maleitas. Como não havia frigoríficos, tinha de me dessedentar com água morna coisa que no mês de Agosto era um martírio. Tomar banho era luxo desconhecido ou sacrifício de domingo numa tina em que à água fria se podia juntar uma cafeteira de água quente.
Havia muitos analfabetos, as mulheres de mais idade eram-no praticamente todas. Médico, só para quem tinha dinheiro (ou cartão de indigente como eu próprio cheguei a ter, anos mais tarde) e tinha de vir a cavalo da povoação mais próxima. A participação em feiras e romarias era feita a pé, percorrendo-se quilómetros através dos matos. A fome e a miséria grassavam.
Por volta dos meus 5 anos os meus pais emigraram para Aveiro onde fiz a escola primária. Muitos colegas de turma não tinham sapatos e escrevíamos numa lousa que se apagava cuspindo- lhe e depois esfregando com a mão.
Os meus progenitores viviam com graves dificuldades financeiras o que motivou a mudança para Lisboa e, pouco depois, para Angola, Moçâmedes onde há muito vivia uma irmã da minha mãe que muito nos ajudou.
Fomos de barco, eu tinha 12 anos. A primeira imagem quando o barco chegou a Luanda ficou-me gravada na retina até hoje. Procedia-se às manobras de atracamento e descortinei no cais dezenas de homens pretos (nunca tinha visto tantos) vestidos com farrapos. Impressionou-me a miséria. Nunca vi com bons olhos a maneira como os chamados indígenas eram encarados e tratados pela generalidade da população branca. E conto um episódio da minha estada em Moçâmedes revelador da candura e ingenuidade dos 13 anos. Um dia, em amena cavaqueira com um garoto da mesma idade, este referiu um massacre que teria acontecido no norte em que a força aérea desempenhou um papel decisivo para a manutenção da ordem colonial. E então pusemos o problema: como é que os angolanos se hão-de ver livres do domínio português? Achámos que sem força aérea seria impossível e considerámos que uma via seria os indígenas tentarem inscrever-se num aero clube (que, suponho, existiam) e obterem o brevet que os habilitaria a pilotar avionetes. Parecia um bom começo mas, de repente, ocorreu-me um pensamento: se para tirar a carta de condução de um automóvel era necessário ter a quarta classe, para conseguir o brevet de certeza que também seria. Acontecia que pouquíssimos, quase nenhuns, tinham essa habilitação. Conclusão dum miúdo de 13 anos: nunca se libertarão.
Em 1953 regressámos à metrópole como, na época, se dizia.
Acabámos residindo em Coimbra onde fiz o Liceu (no D. João III, hoje José Falcão), a licenciatura e o doutoramento em Matemática.
Concluí a licenciatura em Julho de 1961 e fui de imediato convidado para assistente da Faculdade de Ciências. Um facto hoje difícil de entender e de aceitar é que, nesse tempo, não admitiam mulheres na Secção de Matemática (não se chamava Departamento) apesar de várias se terem licenciado com classificações elevadas. Isso era assumido com clareza e não disfarçado, e bem aceite incluindo pelas próprias mulheres. Depois de várias manobras (em que as minhas intrigas desempenharam algum papel) a primeira mulher, e depois por indução uma segunda, foi admitida na Matemática. Mas há um pormenor que convém recordar. Eu, sendo homem, fui logo convidado sem problemas. Para elas foi diferente. Os professores decidiram abrir duas vagas anunciadas por meio de um edital, aconselhando-as, em privado, a concorrer. Sendo notório que não eram de esperar outros concorrentes pois poucos se licenciavam pelo que se sabia que não haveria ninguém com curriculum e interesse para o efeito, certamente (ou quase) seriam admitidas. Homens entravam para o corpo docente, mulheres tinham de requerer.
No início de Agosto de 1962 nasceu o meu primeiro filho e passados dois dias tive de me apresentar em Mafra para iniciar o cumprimento do serviço militar. Do qual nenhum rapaz escapava (salvo se sofresse de deficiência muito grave) pois já tinha começado a guerra colonial. Regressei de África em Agosto de 1966 e encontrei a Secção de Matemática com inúmeras mulheres assistentes. Tinham aberto o precedente em 1961 e os rapazes faltavam porque andavam a bater-se na guerra colonial. Alguma coisa ia mudando.
Nunca esquecerei a crise na Universidade de Coimbra nem os acontecimentos de 17 de Abril de 1969, quando Alberto Martins solicitou a palavra a Américo Tomás. Vivi a crise intensamente mas não assisti ao 17 de Abril. Nesse dia teve lugar a inauguração do novo edifício do Departamento de Matemática onde eu trabalhava. Era um recém doutorado, tinha prestado provas de doutoramento no mês anterior. Detestava as pessoas ditas importantes que estariam presentes na cerimónia. Não gostava de conviver com gente do regime e por isso, nesse dia, não fui ao Departamento e preferi passar o tempo passeando pela cidade. Só de tarde, acabada a inauguração me desloquei ao Departamento e soube o que se tinha passado. Fiquei desgostoso por não ter assistido. Foi o início da crise coimbrã de 1969. Meses depois (em Novembro, se bem me lembro) fui demitido das minhas funções e fiquei desempregado.
Depois de variadas peripécias entrámos na década de 70 e o 25 de Abril aproximava-se sem o sabermos. Apesar disso para mim não foi inteira surpresa porque, casualmente, notei vários indícios. O mais significativo terá sido em Dezembro de 1973. Em Lisboa, visitei um dos meus amigos, o Professor António Brotas, o qual me mostrou um panfleto que circularia entre os militares. Como fui militar miliciano por mais de 3 anos e conhecia a rigidez do sentimento de hierarquia e até fidelidade predominante entre os militares profissionais, a linguagem utilizada naquele escrito surpreendeu-me e deixou-me a arreigada impressão de que algo estaria iminente. As movimentações das Caldas da Rainha confirmaram até que, finalmente, chega o 25 de Abril.
Na noite de 24 para 25 dormi em Alfragide e dispunha de um carro emprestado que devia devolver à proprietária (a Amélia Lima Rêgo, mulher de Sebastião Lima Rêgo preso em Caxias) no dia seguinte, suponho que até às 9 horas. Por isso levantei-me cedo, receando o trânsito àquela hora. Para minha surpresa havia muito pouco trânsito o que me fez estranhar. Passei pela Alameda das Linhas de Torres e vi muitos soldados e alguns veículos militares à porta de um quartel ali situado e de cuja designação não me recordo. Pouco depois confirmei o que se estava a passar.
Depois daquela data Portugal tornou-se diferente como a noite do dia. Vimo-nos livres da censura que Marcelo Caetano baptizou de exame prévio. Dissolveu-se a PIDE. A expressão do que pensávamos passou a ser livre sem peias, passou a haver liberdade de reunião e de associação. Poucos dias depois a manifestação do primeiro de Maio (até aí não era permitido celebrá-lo) foi um espectáculo inesquecível. Apareceram Partidos Políticos, coisa que muitos cidadãos nunca tinha visto, e sindicatos livres. Algumas consequências práticas tiveram grande influência na vida do dia a dia. Recordo o que se chamou poder local e o saneamento básico que despertaram justificadamente um grande entusiasmo.
O Portugal de hoje não o descrevo. Quem vive hoje conhece-o, há variadas opiniões bem como há milhares ou milhões de cidadãos que não conheceram, salvo de ouvir falar ou de ler, o Portugal de ontem. São duas realidades completamente diferentes. Hoje não há guerra colonial (que foi um espectro terrível), não há PIDE, não há censura, pode falar-se, debater criticar e votar. Ainda há muita pobreza, é certo, mas pode falar-se dela, não temos de a ocultar. O Serviço Nacional de Saúde atravessa uma crise grave mas já não se dá cartão de indigente a ninguém e podemos lutar pela seu revigoramento. Os professores enfrentam sérios problemas mas já praticamente não há analfabetos nem crianças que não vão à Escola, nem se discriminam por sexo para efeitos de escolarização.
Há ainda (e sempre haverá) um longo caminho a percorrer. Mas o 25 de Abril foi um enorme salto em frente.
Janeiro de 2024