Memórias
Nascido em 1951, natural de Lisboa, Portugal.
MEMÓRIAS
Memórias serão sempre um quadriculado de histórias, imagens, vivências, emoções que se vivem lá para trás e que, se revelam, acumulam, sobrepõem até se podem anular. Às vezes já nem sabemos bem o que foi verdade e o que não foi. E é por isso que quando juntamos as memórias de uma pessoa às de outra muitas vezes se faz luz. E é essa luz que ainda nos ilumina quando os anos se acumulam. É essa luz que nos traz saudades, reafirma ou questiona certezas, e nos veste de um grande orgulho de nunca termos virado as costas a uma coisa qualquer que se chama revolta ou utopia e que ainda hoje nos alimenta.
A malta “do meu tempo” é a malta nascida nos últimos anos 40 e inícios de 50. É a malta que cresceu em pleno salazarismo, durante a guerra colonial, malta que viveu de longe as notícias do Maio de 68 e foi sabendo do movimento hippy e da guerra do Vietname. Gritámos por dentro do peito “Make Love not war”. Crescemos a ouvir o Zeca, o Adriano e os outros. Mais os discos trazidos “lá de fora” dos Beatles, do Dylan, do Ferré, o Paco Ibañez e tantos mais.
Fizemos teatro, imprimimos panfletos, lemos livros proibidos, participámos em greves e manifestações. Fugimos à polícia. Alguns foram presos e torturados. Outros fugiram para o estrangeiro.
OS CINEMAS DE LISBOA
O cinema e os cinemas tiveram um papel fundamental na minha vida, na vida de nós todos. Não crescemos com a televisão mas com a rádio, com os serões para trabalhadores, os fadinhos, as cantigas manhosas do que viemos a chamar o nacional-cançonetismo e mais os relatos de futebol com a competente voz do Artur Agostinho a trazer-nos fintas fantásticas e defesas quase impossíveis. Mais tarde, assim que a idade permitiu, chegámos ao cinema. E foi o cinema que chegou muito cedo às minhas paixões, embora tenha começado mal.
A verdade é que o primeiro filme que vi, miúdo ainda, provocou-me um medo de fugir, de gritar, de fazer xixi nos calções. Era uma sessão ao domingo à tarde a que a minha mãe me levou nas instalações da igreja de S. João de Deus à Praça de Londres. Tinha um auditório. Coisa moderna. E o filme era “As vinte mil léguas submarinas” baseado no livro do Júlio Verne. Meu Deus! O que eu sofri. O terror que senti. O medo.
Não sei que idade teria. 4, 5 anos, talvez. Só sei que estive quase para morrer.
Mas sobrevivi para passar a frequentar mais tarde a Promotora no Calvário, lá pelos meus 10 anos. Depois veio uma procissão sem fim de pequenos cinemas chamados de reprise. Uma sessão, dois filmes e o bilhete baratito. O Paris, o Jardim Cinema a que chamávamos o Palhinhas porque as cadeiras eram de palhinha, e mais o Chiado-Terrasse, o Lys, o Cinearte, tantos…
Um pouco mais tarde cheguei aos grandes cinemas, com estreias de estalo, o Monumental, o Império, o S. Jorge, o Eden… Finalmente os estúdios, mais pequenos, com cortinados, veludos filmes mais exigentes e a pedir olho cinéfilo.
Comecei a namorar pela primeira vez num cinema. Éramos estudantes. Eu acabado de entrar em Arquitectura. Ela ainda no 7º ano do Liceu.
O escurinho do cinema sempre foi propício a muita coisa, das ternuras diversas aos protestos entusiastas.
Nos anos 30, cada filme era acompanhado de Notícias do Mundo. E as notícias, segundo o meu amigo romancista e historiador Sérgio Luís de Carvalho, à época, essas notícias eram maioritariamente da Alemanha de Hitler, da Itália de Mussolini ou da Espanha de Franco. E havia sempre alguém que, no escuro e num acto de resistência popular gritava “Vivó Benfica!” e logo era secundado pela gente que enchia o cinema.
Mas voltemos aos anos 60. Ao lado dela, no escurinho do cinema, tive vergonha, timidez, receio de ser invasivo, de perder o momento certo. E era tão desejada a proximidade do corpo, a mão na mão, a respiração partilhada pelos dois.
Tanto quanto me lembro foi ela que tomou a iniciativa. A sua mão voou e eu apanhei-a no ar. Foi no Cine 444 na, Av. Defensores de Chaves, junto ao Campo Pequeno. Era um dos pequenos cinemas aparecidos então, com uma programação de qualidade, filmes franceses, italianos e por aí. Como é natural, desse dia não faço a mínima ideia de qual fosse o filme que nos viu começar a namorar.
Vamos chamar-lhe a ela Mariazinha. Andava no Maria Amália, Liceu para quem não souber, 7º ano, ou seja, final do Secundário.
Os Liceus ainda eram de raparigas ou de rapazes. Nada de misturas. Era o que faltava. E nada de ir buscar as namoradas à porta do Liceu. Nem pensar. Eu esperava por ela no café da esquina.
Seguíamos por uma cidade de “bons costumes”, vigiada pela farda cinzenta, olho gordo e barriga a extravasar dos polícias, vigilantes de maus costumes e ofensas à moralidade pública.
Bem… Este era um dos lados de uma moeda que tinha um outro lado, nojento e porco, que ficou conhecido pelo nome de “Ballets Roses”.
À porta de alguns liceus femininos, carros negros do estado iam buscar meninas e uma ou outra professora, para festas que envolviam abuso sexual por parte de gradas figuras do impoluto e tão religioso regime salazarista.
O outro era o lado luminoso, do amor “com carácter de urgência”, como cantou Daniel Filipe no seu extraordinário poema “A invenção do amor”.
O amor era como o cantavam os Beatles: o “She loves you yé yé yé”, “I want to hold your hand”, “Yesterday” e tantas outras canções. O amor , o amor como o vivíamos aqui, era também uma forma de luta contra este país cinzento da cor daquelas fardas da PSP. Eles andavam de vigia e nós com uma fome enorme de ternura, amor e mão na mão. passávamos-lhes à frente e insistíamos no acto “revolucionário” de dar um beijo na boca.
E ainda hoje, passados cinquenta e tal anos ,cá para mim, cinema é para ver numa sala escurinha e um beijo na boca será sempre um acto de amor e, por isso, de resistência em relação a este mundo que às vezes, tantas vezes, nos quer reduzir a gente sem alegria nem alma, seja lá o que isso for.
Julho de 2023