O meu 25 de Abril, o que passou e o que continua
Nascida em 1960, natural do Porto, Portugal.
Licenciada em Psicologia, jornalista entre 1980 e 2008, tendo passado pelos mais relevantes títulos de informação nacional e económica, desde “Jornal de Notícias”, “Expresso”, “Público”, “Diário Económico” e “Jornal de Negócios”. Fez uma primeira incursão na área cultural na Capital Europeia da Cultura Porto 2001, sector ao qual regressou através da Fundação Casa da Música, onde trabalha desde 2010.
O meu 25 de Abril, o que passou e o que continua
O 25 de Abril apanhou-me em plena adolescência. Ainda demasiado nova para participar nos movimentos políticos que se seguiram mas já com boa idade para entender a viragem e acompanhar de perto todos os acontecimentos, com a sensação de ser uma revolucionária de bancada. Aí nasceu, aliás, o fascínio pelo jornalismo, a ver reportagens de rua na televisão, a ler o jornal diariamente, uma visão romântica do repórter que ficou a germinar e floresceu anos mais tarde.
Do Estado Novo tenho algumas memórias, sendo a primeira o ensino em escolas femininas, que me acompanhou até ao fim do secundário. Da escola primária pública ficou o registo da omnipresente fotografia do Américo Tomás e da cruz por cima do quadro, além de uma evidente estratificação social na sala da aula, entre as melhores alunas, provenientes de famílias de classe média como eu, e as de meios mais desfavorecidos, quase sempre mais atrasadas na aprendizagem e frequentes vítimas das reguadas e castigos afins.
Também recordo bem a entrada em cena de Marcelo Caetano, das “conversas em família” e de algum entusiasmo que a mudança suscitou na maior parte dos membros da família. Aliás, cantei para ele quando visitou a Escola Aurélia de Sousa, onde frequentava o ciclo preparatório (2º ciclo). Ou do risco da guerra em África que pendia sobre os meus irmãos, no caso deles adiado pela frequência do ensino universitário.
Numa família de classe média, com irmãos mais velhos estudantes, embora não muito politicamente activos, havia conversas sobre a contestação na Universidade. E uma politização que começou incipientemente com os mais velhos e a ser fiel ouvinte do programa Página Um na Rádio Renascença, pelas vozes de Zeca Afonso, Sérgio Godinho e José Mário Branco.
Na manhã daquele dia de Abril saí para as aulas na ignorância do que se passava. No primeiro intervalo da manhã começaram as conversas, havia quem soubesse mais. Mas estava bem próxima a lembrança da anterior tentativa de golpe falhada, a 16 de Março. Depois do segundo tempo as aulas foram interrompidas com ordem de permanência nas instalações, até sermos finalmente dispensadas e enviadas para casa. O liceu ficava nas proximidades da sede da PIDE no Porto e os sinais das movimentações militares eram perceptíveis.
Passei o resto do dia em casa, colada ao televisor desde que a emissão reabriu, até que ao fim da tarde um dos irmãos chegou com notícias das ruas da Baixa em discurso directo. O êxito do MFA foi celebrado por todos e tive orgulho em participar no primeiro Primeiro de Maio em liberdade com um mar de gente a enchera a Avenida dos Aliados e no festival da Canção Popular no pavilhão do Palácio de Cristal onde actuaram os meus heróis da música de intervenção.
Os 18 meses seguintes foram de grande excitação, a acompanhar notícias e as discussões políticas, que se tornaram mais crispadas à medida que a unanimidade inicial deu lugar a diferentes posicionamentos. A aceleração do processo revolucionário foi deixando muitos para trás, até ser evidente que as vanguardas já não representavam a maioria dos cidadãos – logo nas eleições de 25 de Abril de 1975 para a Constituinte e nas autárquicas e nas presidenciais de 1976. Embora não tivesse idade para votar acompanhava todos os debates e as notícias. Nessa época, as pessoas juntavam-se para acompanhar o apuramento dos resultados, que demoravam horas, em verdadeiras noitadas pós-eleitorais, pois tudo era verdadeiramente novo e empolgante.
Estava sempre com os mais revolucionários, idolatrava os militares e outros heróis do Poder Popular. O 25 de Novembro representou o desmoronar das expectativas de criar um mundo melhor, ancorado numa democracia mais participativa do que representativa. Foi a experiência do amargo da derrota, que demorou a ultrapassar. Foram precisos alguns anos para me ser possível um olhar mais distanciado e racional sobre o PREC, os seus excessos e os riscos que se correram. “A festa foi bonita, pá”, mas deixou pesado lastro. Tenho hoje bem claro que a liberdade é o valor fundamental, que a democracia representativa, apesar dos seus defeitos, é o melhor dos regimes e que a aceleração revolucionária acabaria a procurar impor-se pela força. Louvo a coragem dos militares que arriscaram tudo para fazer o 25 de Abril mas também dos que tiveram o discernimento de se impor à deriva revolucionária, mantendo as liberdades, sem cedências aos sectores revanchistas do extremo oposto.
O 25 de Abril não mudou apenas o país, mudou também a minha vida. Do ponto de vista individual, a sociedade que resultou do gesto fundador dos militares de Abril abriu perspectivas até aí inacessíveis a uma jovem mulher e aumentou os graus de liberdade para as escolhas de vida. As mulheres adquiriram cidadania de pleno direito e foram dando passos seguros no caminho da emancipação. Pessoalmente, como jornalista, fiz um percurso profissional num mundo que começou por ser esmagadoramente masculino e não senti que tivesse sido prejudicada pelo meu género. Entretanto as redacções passaram a ter mais mulheres do que homens e são cada vez mais as que chegam a lugares de topo. O progresso na educação foi brutal, mesmo se os indicadores quantitativos não produziram resultados comparáveis a nível qualitativo. O aumento da escolaridade obrigatória e o acesso alargado à universidade fizeram-nos passar de um país com 26% de analfabetos em 1970 (31% nas mulheres) para exportador de quadros capazes de se afirmarem à escala global. E aquela que considero a maior conquista da democracia, a criação de um Serviço Nacional de Saúde público e de acesso universal.
Ouve-se demasiadas vezes dizer que as promessas de Abril ficaram por cumprir. Dos três D – Democratizar, Descolonizar e Desenvolver – definidos pelo Movimento das Forças Armadas como objectivos do 25 de Abril, no terceiro continuamos aquém do potencial. Da “paz, do pão, habitação, saúde educação”, recorrendo a Sérgio Godinho, apenas a primeira foi totalmente cumprida.
Mas seria muito pouco sério não reconhecer os enormes progressos registados em todas as áreas, mesmo se a prevalência da pobreza continua acima do moralmente aceitável; se o direito à habitação é comprometido, como acontece agora, pela dinâmica de um mercado muito permeável, até pela pequena dimensão, a fluxos crescentes de investimento estrangeiro e de utilização dos imóveis para fins turísticos. Os desequilíbrios no SNS não impediram a resposta à pandemia, que, contudo, tornou mais evidentes a desadequação da forma de funcionamento às necessidades actuais e a dificuldade de sucessivos governos promoverem as reformas necessárias sem comprometer o que é estrutural – a garantia de acesso para todos. Sobre a educação, já referida, o mais preocupante é o desajuste de muita oferta formativa face ao mercado de trabalho e as consequentes expectativas goradas em alunos e famílias.
E chegamos ao D com resultados mais insatisfatórios, o desenvolvimento económico. Foi o 25 de Abril que permitiu a Portugal ser membro da actual União Europeia, com o que significa ser membro da família das democracias europeias em termos políticos, económicos e sociais. Os primeiros anos após a adesão foram de grande desenvolvimento, sem chegar a igualar o crescimento recorde do início dos anos 70, após a adesão à EFTA ainda durante o Estado Novo. Já as duas últimas décadas têm-se saldado por retrocessos em relação à média europeia. Portugal perde terreno face aos países do alargamento a Leste e ainda não recuperou das alterações geoeconómicas que resultaram da entrada da China no mercado global, há 20 anos, apesar da dimensão dos apoios financeiros recebidos da Europa.
Um pequeno país na periferia da Europa – ou no centro do Mundo como demonstraram os navegadores dos Quinhentos – tem-se revelado incapaz de acompanhar a aceleração registada no Mundo, de definir objectivos e planear os meios e os processos. Uma limitação que é mais grave ao nível dos quadros dirigentes políticos e administrativos mas é transversal a toda a sociedade, das empresas aos cidadãos. Se a falha é colectiva não isenta de maiores responsabilidades quem detém o poder de decisão ao nível da administração do Estado e do aparelho económico.
O outro D – de democracia – atravessa especiais desafios, para os quais os agentes políticos estão impreparados. O desenvolvimento da internet, que possibilitou o aparecimento das redes sociais, foi saudado com euforia, em tempos (hoje parecem longínquos) nos quais se celebravam as possibilidades da participação directa e do jornalismo cidadão. O reverso da medalha tem ficado evidente com os desenvolvimentos mais recentes. A participação directa foi utilizada por movimentos populistas para engrossar fileiras. O debate sério e informado substituído pelo advento de tribalismo e radicalismos que ameaçam os valores comuns da sociedade. A internet e o acesso gratuito à informação provocaram a decadência do modelo de negócio que sustentava as empresas jornalísticas. Deu lugar a um negócio de informação selvagem e sem credibilidade, absorvida sem quaisquer filtros pelos cidadãos consumidores. Neste aspecto, as ameaças à democracia que Portugal enfrenta não se distinguem das que afectam países com democracias consolidadas há séculos. Estamos todos a aprender ao mesmo tempo.
No debate entre optimistas e pessimistas, prefiro alinhar pelos primeiros, embora considere que o país podia e devia ter sido melhor sucedido. Aplico à nação a ética individual que procuro seguir: analisar os erros, não para encontrar culpados, mas para identificar causas e corrigir as práticas.
Acredito nas gerações mais jovens, que beneficiaram e puderam aproveitar um nível de educação impensável para um jovem português de classe média nos anos 70. Nem sempre os jovens quadros políticos têm dado boas provas mas, globalmente, têm acesso a mais e melhor informação, andaram pela Europa e pelo Mundo, muitos nas melhores escolas, têm que estar necessariamente melhor preparados. Pouco importa que para a maioria o 25 de Abril seja apenas uma data histórica, que valorizam mais ou menos. É sinal de que foi cumprido o objectivo mais fundamental de quem o fez: a liberdade.
Abril de 2023