25 de Abril – Testemunho
Nascido em 1940, natural de São Brás de Alportel, Portugal.
25 de Abril – testemunho
Antes de falar sobre o movimento na Marinha que nos levou ao 25 de Abril e a minha participação, julgo útil para os leitores informar como se formou a minha consciência social, moral, cultural e política que motivou o meu profundo envolvimento na preparação e nas transformações que ocorreram antes e depois desse momento singular da nossa História que foi o 25 de Abril.
Nasci em Outubro de 1940 no concelho de São Brás de Alportel – barrocal algarvio, entre a serra e o mar. Cresci com grande liberdade e autonomia de movimentos, dispunha de uma motorizada para as deslocações num raio de 50 Km, numa relação muito próxima com a natureza e com amplos horizontes que a situação geográfica e a vida no campo me proporcionavam. Da casa dos meus pais, a cerca de 17 Km de Faro, avistava- se o mar, a ilha da Culatra e o Farol de Santa Maria.
Apercebi-me desde muito jovem das dificuldades e da dureza dos trabalhos agrícolas e da apanha dos frutos secos. Fiz a escola primária nesse espaço rural.
Mais tarde, quando fui frequentar o liceu de Faro, deslocava-me na motorizada, e constatei a diferença entre o habitante da cidade e o habitante do campo, entre o agricultor ou o trabalhador rural e os trabalhadores dos serviços, do comércio ou da indústria. O meu sentido de solidariedade para com os outros desenvolveu-se nesse contexto de desigualdade de situações e possibilidades. Na adolescência, já no Liceu, ajudava colegas que tinham dificuldades nos estudos, acabei por dar explicações a sério, o que me permitiu uma certa autonomia financeira a juntar à mobilidade e liberdade que a motorizada me permitia.
Aos 18 anos quando entrei para a Escola Naval tinha uma consciência clara das diferenças sociais, mas ainda não conhecia a miséria que existia na grande cidade de Lisboa. Foi através da conferência de São Vicente de Paulo na Escola Naval e do Movimento Para Um Mundo Melhor ligado à Igreja Católica Progressista que tomei consciência da enorme desigualdade entre os diferentes estratos sociais.
Nessa altura comecei a perceber que o regime político português era uma ditadura. Consolidava-se uma consciência política iniciada em 1958, quando da campanha eleitoral de Humberto Delgado. Cresciam as dúvidas sobre os ensinamentos recebidos na escola primária e secundária relativamente ao Império colonial português e ao país pluricontinental e multirracial.
Quando concorri à Escola Naval, para minha surpresa, fui o primeiro classificado, este facto veio a ter grande influência em toda a minha vida, trouxe-me obrigações e responsabilidades acrescidas quer por ser o chefe de curso, quer pelas consequências de tal situação.
Desenvolvi um forte sentido de justiça relativa para com os outros sobretudo os que se encontravam em situações mais vulneráveis, e um enorme repúdio pelos castigos injustos, em especial quando atingiam inocentes.
Quando as coisas corriam mal quem pagava era o chefe de curso ou todo o curso caso não se conseguisse identificar o culpado, era a prática dos castigos coletivos ou do castigo ao mais “antigo” ainda que se soubesse que eram inocentes. Todos os castigos colectivos atingem inocentes, igualmente as formas de segregação social são verdadeiras punições a inocentes e aos mais fracos. A minha experiência de vida na Escola Naval reforçou muito o meu sentido de justiça em geral e da justiça social em especial, consolidei a ideia de que punir inocentes é das maiores violências morais que muitos responsáveis da nossa sociedade e do Estado praticam. Assumi que seria preferível deixar escapar o responsável (culpado) a ter de punir inocentes ou que fazer justiça a um grupo implica, por vezes, admitir que pode haver aproveitamento por parte de “infiltrados” que apresentam condições semelhantes.
Quando em 1962 saí da Escola Naval embarquei na fragata Nuno Tristão e fiz uma Comissão de 18 meses na Guiné, com passagem por Angola. Vivi a experiência da guerra colonial, fiquei sem dúvidas sobre o estatuto dos “territórios ultramarinos”; também ficou claro para mim qual a natureza da guerra que tinha sido desencadeada pelos movimentos independentistas africanos. Era evidente que as chamadas províncias ultramarinas eram colónias e que a guerra era do tipo colonial, semelhante à que os franceses tinham conduzido na Indochina ou na Argélia; e os ingleses em África no Quénia ou na Malásia.
A solução para tais conflitos tinha de ser política, sem qualquer dúvida. Os povos autóctones tinham todo o direito à autodeterminação como nós portugueses, tivemos direito de nos libertarmos dos “mouros”.
Mais tarde em 1966, após concurso, fui para a Universidade de Génova frequentar o curso de engenharia naval e mecânica que concluí em 1969. Durante 4 anos tive uma experiência de vida num país ocidental democrático, conheci o modo de vida e de intervenção nessa sociedade; contactei de perto com os acontecimentos de Maio de 68 em França e o fim da Primavera de Praga em Agosto de 1968.
Com esta experiência de vida a minha consciência e formação políticas consolidam-se e firmam-se em bases teóricas e práticas adquiridas numa sociedade democrática. Quando regressei a Portugal, no fim de 1969, estava determinado a contribuir para o fim da ditadura portuguesa e para a resolução do problema da guerra colonial.
Entrei sem qualquer hesitação na dinâmica já existente na Marinha, criada pelos oficiais mais jovens através do Clube Militar Naval e da vida nas unidades navais. De 1970 até ao 25 de Abril de 1974 impulsionámos um processo dentro da Marinha que viria a ter muita importância e influência no 25 de Abril e nos anos seguintes. Para melhor percebermos o que foi a ação destes jovens oficiais de Marinha na preparação do 25 de Abril e no processo que se lhe seguiu convém fazer uma breve síntese sobre a nossa atividade no período de 1968 a 1974 e conhecer os valores e os princípios que nos orientaram.
A tradição republicana, democrática e mesmo revolucionária é um dos elementos constituintes da cultura da Marinha, alicerçada nos valores da liberdade, responsabilidade, solidariedade e dignidade, camaradagem, respeito pelo outro, abertura ao mundo, espírito crítico e numa especial formação, instrução e treino para atuação no meio hostil, o mar.
Muitos são os elementos e valores que marcam a cultura naval que vão da linguagem às metodologias de trabalho, tendentes à redução da possibilidade de erro, ao sentido de equipa, ao rigor profissional, à sobriedade, à disciplina, ao culto da ética e da estética. Atitude perante o perigo e o risco, horizontes de grandes espaços, visão a longo prazo e de conjunto, consciência dos limites do EU e da grandeza do Nós.
O mar e o navio imprimem traços indeléveis no comportamento do Homem e nos seus modos de agir e encarar a realidade. Na Marinha a liberdade de expressão e debate de ideias foi sempre uma realidade normalmente expressa no ambiente de Câmara das unidades navais e no Clube Militar Naval, associação de oficiais, formada em 1866. Existiu sempre abertura a novas ideias e ao contato com outros povos e outras experiências políticas.
As viagens e os cursos frequentados no estrangeiro, parte essencial ou complementar da formação profissional, as vivências de Maio de 68 e a longa permanência no estrangeiro na recepção de navios construídos em França, Alemanha, Inglaterra ou Estados Unidos, tiveram uma forte influência nos jovens oficiais. A natureza da guerra em África começou por nos suscitar muitas interrogações. Rapidamente concluímos pela imperiosa necessidade de uma solução política.
A realidade portuguesa de então caracterizava-se pelo isolamento Internacional do país, apesar do cinismo das relações de poder e dos diferentes interesses nacionais. A sociedade portuguesa estava bloqueada, a juventude na guerra ou emigrada na Europa. O regime político de partido Único não tinha capacidade para encontrar uma saída política para o país e insistia na guerra da qual dependia a sua sobrevivência.
Em 1970 um núcleo de oficiais de Marinha concluía que a saída teria de ser política, e que para a queda do regime era essencial a ação dentro das forças armadas. Impunha-se retirar ao regime um dos seus pilares de suporte, haveria, portanto, que preparar e consciencializar os militares para o efeito, articular as várias frentes, áreas de contato e possibilidades de atuação nos campos: profissional, social, cultural e político.
Nos anos de 1968, 69 e 70 jovens oficiais no Clube Militar Naval e Cadetes na Escola Naval conduziram várias ações de contestação e agitação, mostrando o seu mal-estar e descontentamento com a situação. Seguiu-se a passagem a uma fase de maior organização e melhor definição dos objetivos a atingir. Objetivos de dignificação profissional e de fim da guerra e do regime. Sempre que, em nosso entender, valores essenciais da cultura naval ou princípios da dignidade humana eram postos em causa encontrávamos formas de os defender e de nos manifestarmos reforçando a dinâmica e consolidando a coesão do grupo. Foram muitos os casos de forte manifestação de solidariedade e apoio a camaradas injustamente punidos ou discriminados. O trabalho da consciencialização cultural e política foi avançando com consistência e alargou- se aos sargentos, marinheiros e civis da Marinha e ainda a alguns oficiais milicianos da reserva naval com formação política, que se encontravam a fazer o serviço militar obrigatório na Armada. Um grupo de 13 oficiais e Cadetes participam de forma organizada no 3º Congresso da Oposição Democrática em Aveiro em Abril de 1973. Criámos uma “escola” no edifício do Ministério da Marinha e participámos directamente na escola do desportivo da Cova da Piedade no ensino das disciplinas do 5º ano do Liceu , aos marinheiros que desejavam estudar e valorizar-se profissional e culturalmente, alguns continuaram e conseguiram concluir cursos superiores ou fazer o curso para oficial, tínhamos consciência plena da importância fundamental da educação para o progresso dos indivíduos e da sociedade.
Ao longo destes anos entre os elementos mais conscientes e motivados, incluindo as nossas famílias, foram- se estabelecendo fortes laços de amizade e solidariedade. As realizações culturais e de convívio com as famílias eram frequentes. As nossas mulheres participavam diretamente na organização de algumas atividades culturais, traduziam textos pedagógicos que contribuíam para o aumento do conhecimento de todos os que desejavam saber mais sobre a situação portuguesa e sobre uma possível saída política para terminar com a guerra e conquistar a democracia.
Quando se chega ao 25 de Abril um forte núcleo de oficiais de Marinha tem uma clara consciência política, sabe o que quer como solução política para o país.
Desde Setembro de 1973, momento em que surgiu o movimento dos capitães, acompanhámos e estabelecemos ligação com os camaradas do Exército. Naturalmente com os cuidados e reservas que as diferentes culturas, organização, conhecimento e confiança recíproca exigiam. Já em 1974, assumimos com os camaradas do Exército- o Otelo, um compromisso de neutralizar militarmente a Marinha impedindo que houvesse alguma ação hostil para com o movimento dos capitães. Numa reunião de 130 oficiais em 13 de Março no Clube militar naval manifestámos a nossa solidariedade para com os camaradas do Exército.
Desde o início de 74 que procurávamos encontrar pessoas com quem dialogar politicamente, felizmente, através de um oficial miliciano o alferes Leal Loureiro, chegámos ao contato com Melo Antunes no início de Fevereiro e com ele acertámos as ideias principais do que seria um documento político do movimento militar em preparação. Estabelecemos um compromisso de apoio e defesa das suas posições, de forma a conseguirmos um programa político para o MFA.
Não obstante alguma dificuldade inicial tal documento veio a concretizar-se a partir de um projecto elaborado por Melo Antunes, cuja redação final foi concluida por um grupo conjunto de oficiais do Exército, da Marinha e da Força Aérea liderados por Vítor Alves.
O compromisso militar que o Otelo nos tinha solicitado e que nós aceitamos sem qualquer hesitação significava preparar-nos, através da nossa estrutura e rede de ligações nas principais unidades, para neutralizarmos a Marinha ou seja: neutralizarmos a Base Naval, os navios operacionais, os grupos de escolas e os fuzileiros. Transmitimos tal instrução aos nossos elementos que a assumiram de forma clara. Não se tratava de fazer sair as unidades navais , mas sim de neutralizar qualquer ação que o regime tentasse fazer contra o movimento dos capitães. No dia 21, por intermédio do Vítor Crespo, tivemos conhecimento que a ordem de operações a ser ultimada não contemplava a Pide como objetivo militar. Manifestamos ao Otelo a nossa forte discordância perante tal facto. O Otelo disse-nos que se discordávamos então executássemos nós essa ação, o que originou para nós uma situação nova, não prevista, que nos levou a considerar agora a possibilidade de intervenção militar direta. Nesse sentido, eu e o Vítor Crespo no dia 22 contatámos a única unidade operacional de fuzileiros com possibilidade de intervenção, um destacamento de fuzileiros que dentro de dias iria embarcar para Moçambique. Na reunião com o comandante do destacamento e 2 oficiais da nossa estrutura, que tinham concluído com ele o curso, analisámos a possibilidade do destacamento intervir tendo como objetivo as instalações da Pide na rua António Maria Cardoso. Perante as dificuldades de preparar tal intervenção em cima da hora considerámos também uma alternativa, possibilidade de tomarmos a prisão militar da Trafaria e libertarmos os camaradas do Exército aí presos. Não foi tomada uma decisão final. Ficámos de ponderar melhor o que seria possível fazer .
No dia 23 entreguei ao comandante Pinheiro de Azevedo a ordem de operações militares, informando-o de que poderia ocorrer a saída de um destacamento de fuzileiros sediado na força de fuzileiros por si comandada. Provavelmente seria contatado antes sobre o assunto. Pinheiro de Azevedo estava dentro de todo o processo, tinha sido eleito por nós para Presidente do Clube Militar Naval devido à ligação com o nosso movimento desde 1972. Quando lhe entreguei a ordem de Operações ele já estava formalmente comprometido com o movimento, tinha aceitado ser um dos nossos 2 elementos na Junta de Salvação nacional.
Vítor Crespo, eu e o Almada Contreiras tínhamos sido designados e eleitos por uma comissão coordenadora como os elementos da Direcção do processo na Marinha.
No dia 24 de Abril eu e o Almada Contreiras falámos mais uma vez ao telefone sobre o processo em desenvolvimento. Vítor Crespo jantou em minha casa antes de ir para o posto de comando na Pontinha. Trocámos impressões sobre as tarefas definidas e as linhas estabelecidas. Verificámos os nossos contactos de modo a garantir a neutralização da Marinha caso houvesse qualquer tentativa de ação por parte do poder. Depois do jantar e da saída de Vítor Crespo para a Pontinha começaram a chegar a minha casa, vários camaradas da nossa comissão coordenadora. Ouvimos com alguma ansiedade os sinais de rádio previstos. Depois, cada um partiu para as suas unidades, de modo a ficar vigilante e impedir ou neutralizar quaisquer ações por parte do regime.
A minha casa em Algés ficou como ponto de contato físico ou telefónico durante a noite, caso fosse necessário tomar alguma decisão ou efectuar alguma atuação não prevista. O nosso posto de comando seria no centro de comunicações da Armada dirigido por Almada Contreiras. Cerca das 7h30 saí de casa, apanhei o comboio em Algés e dirigi-me para o meu serviço a Direção das Construções Navais no edifício do Ministério da Marinha, mas fui primeiro à Doca da Marinha verificar se os navios da esquadra NATO já tinham largado todos para o mar.
Tive alguma dificuldade em passar do cais do Sodré para a Doca da Marinha dado que no cais do Sodré estavam as forças de cavalaria 7 que eram do regime e pretendiam opor-se às forças de cavalaria do Salgueiro Maia que estavam no Terreiro do Paço. Contornei-as e passei pela rua do Ferragial.
Ao entrar no meu Serviço contactei com os camaradas que faziam a ligação nas diferentes unidades da margem sul. Constatei que a situação estava controlada pelo nosso movimento. Já se sabia, então, que o Ministro se tinha ausentado do seu gabinete, só mais tarde vim a saber que havia saído de forma precipitada na companhia de outros ministros para a rua do Arsenal por uma passagem aberta na casa do marinheiro. Cerca das 10h30 decidi cumprir a minha missão pessoal que era entregar o programa original do MFA no jornal República no momento em que considerasse oportuno. Assim fiz, no jornal República na rua da Misericórdia procurei contactar o jornalista Álvaro Guerra, com quem Melo Antunes havia estabelecido o código para os nossos encontros e entrega de documentos. Como Álvaro Guerra não estava disponível para um primeiro contato, resolvi descer até à rua António Maria Cardoso e verificar o que se passava por ali. Constatei que na rua do Alecrim existiam forças do Exército de cavalaria 7 e verifiquei com surpresa que um destacamento de fuzileiros, fardados de azul, vinha a sair da rua em passo rápido deslocavam-se para os autocarros da Marinha que se encontravam entre o Chiado e o largo Camões. Abordei o comandante Cavalheiro que os comandava, para saber o que se tinha passado e para ver se podiam ficar por perto, de modo a articularmos a ação contra a Pide com forças do MFA do Exército. Ainda contactei, por telefone de uma cabine, com Vítor Crespo na Pontinha mas não foi possível naquele momento coordenar a ação e manter os fuzileiros por ali, dado que não tínhamos uma ideia clara de quem estava no terreno. O destacamento de fuzileiros retirou para a margem sul para uma posição mais segura, com a intenção de voltar à ação de forma mais articulada e coordenada com o Exército.
Voltei ao jornal República, forcei a passagem. Entreguei o programa do MFA a Álvaro Guerra que, com toda aquela agitação de noticiar a ação militar que se desenrolava ali no terreno, não se apercebeu bem da importância do documento que acabara de receber e disse-me que mais tarde o publicaria, embora já tivesse material suficiente para a edição seguinte.
O programa original do MFA foi publicado na segunda edição do Jornal República do dia 26. Mal cheguei ao meu Serviço, contactei Almada Contreiras e informei-o que os fuzileiros que foram à António Maria Cardoso estavam de regresso à força de fuzileiros na margem sul, Contreiras não me esclareceu sobre a ordem e as instruções dadas aos fuzileiros, estava com outra urgência entre mãos, informou-me do que entretanto se passava com a fragata Gago Coutinho em frente ao Terreiro do Paço. Seguidamente contactei Paiva de Andrade que a partir da esquadrilha de submarinos, me confirmou o que se passava com a fragata e que a situação estava controlada.
À hora de almoço, já estou convicto de que as forças do regime perderam. Não tinham conseguido sucesso na sua contra ofensiva com o envolvimento de cavalaria 7 e o Estado-Maior da Armada. Nós tínhamos conseguido evitar que a fragata fizesse fogo; neutralizamos todas as ordens do Chefe de Estado Maior e do Vice Chefe ou do EMA para o comando naval, base naval e para os fuzileiros –força e escola ou inviabilizamos o seguimento que hierarquia desejava. O regime estava derrotado. Marcelo Caetano entregara-se, Tomás e vários ministros estavam detidos ou em parte incerta.
A tentativa do regime de envolver a Marinha ao lado da Cavalaria 7 da Ajuda, na contra ofensiva contra o MFA não tivera qualquer sucesso, impedimos e inviabilizámos iniciativas do Calvão e do Estado Maior da Armada (EMA) de desenvolverem acções através de navios ou de forças de fuzileiros, de apoio ao regime e contra o MFA, pelo contrário saíram forças de fuzileiros mas para executarem missões ordenadas pelo MFA e por Pinheiro de Azevedo. O povo festejava nas ruas. Só a Pide ainda não se rendera, mas isso era uma questão de horas, de facto, no dia seguinte de manhã, a Pide rende-se a uma força conjunta da cavalaria de Estremoz e de fuzileiros comandada por Costa Correia.
O 25 de Abril e a revolução Portuguesa que se seguiu, são casos muito especiais da participação de militares em processos revolucionários e da instauração da democracia num país após uma longa existência de um regime Corporativo fascista e de uma guerra colonial em três frentes, durante 11 anos consecutivos. A ditadura portuguesa mantinha o país no isolamento internacional e num grande atraso económico, social e cultural, reprimia violentamente qualquer oposição. A guerra colonial esgotava os recursos e capacidades da nação.
A emigração dos jovens era uma forma de fugirem à guerra e à pobreza. Na década de 1960 mais de 1.000.000 de portugueses emigraram para a França e Alemanha, quase outro milhão participou no longo período da guerra colonial, estes dois factores, além dos já indicados, marcaram profundamente a sociedade portuguesa. Na província eram as mulheres, as responsáveis pela família e quem executava a maior parte das tarefas agrícolas. O povo desejava paz, liberdade e melhores condições de vida, estas eram as aspirações profundas da imensa maioria dos portugueses, claramente expressas no III congresso da Oposição Democrática em Aveiro, em Abril de 1973
O 25 de Abril foi recebido com enorme alegria por toda a gente, a generosidade e o espírito de sacrifício e desapego ao poder dos jovens militares fundiu-se com a imensa alegria da liberdade e a descoberta de outro presente e de outro futuro feito pela generalidade dos cidadãos, tudo parecia possível. O 25 de Abril fez história em Portugal, o processo de instauração da democracia em Portugal fez história no mundo, inspirou novas democracias na Europa e na América Latina; em Africa nasceram novas independências e novos países.
Hoje, o 25 de Abril, é o factor mais recente da identidade portuguesa. Visto e sentido com orgulho pela maioria dos portugueses no país e nas comunidades de emigrantes no estrangeiro. Há um antes e um depois do 25 de Abril na nossa história e na nossa identidade.
A revolução portuguesa, como todas as revoluções, não realizou todos os seus objetivos e sonhos. A liberdade e a democracia alimentam-se e constroem-se todos os dias, não se concretizam completamente, há sempre muito que fazer, nada é definitivo, é preciso continuar o trabalho de consolidação da democracia e do seu fortalecimento. Os cidadãos portugueses têm hoje a oportunidade de continuar o caminho da liberdade e da realização humana sobre novas formas de fortalecer as instituições da República e de melhorar a qualidade da democracia e das suas vidas. São tarefas que implicam os órgãos do poder democrático e o conjunto dos cidadãos em diferentes posições e com diferentes responsabilidades. A cidadania tem de ser activa e exigente, sem essa componente de democracia participativa os responsáveis políticos tendem sobretudo a preocupar-se com a sua continuação no poder, esquecendo os seus deveres e os compromissos assumidos para com a sociedade
A originalidade, singularidade e a especificidade do 25 de Abril e da revolução portuguesa impõem que se tente perceber o que foi o nosso processo revolucionário e de libertação de um povo, sem procurar forçar a sua interpretação através de modelos pré-concebidos ou alinhados com teorias revolucionárias anteriores, em modelos ou processos vividos no passado ou explicados e baseados em concepções sociológicas e ideológicas. O nosso processo não seguiu regras nem modelos de outros, não seguiu casos nacionais anteriores, casos estrangeiros, previsões ou teses revolucionárias elaboradas e aceites por organizações ou partidos que se consideravam revolucionários.
O MFA que derrubou o regime e permitiu que, em aliança com o movimento popular, se desenvolvesse uma dinâmica revolucionária, não seguiu quaisquer tentativas anteriores de golpes militares ou de envolvimento conjunto de militares e civis em acções específicas contra a ditadura. Embora tenha conhecido e estudado os anteriores insucessos, procurámos não repetir os erros do passado e trabalhar a partir das nossas condições e situação específica, elaborámos a nossa própria estratégia militar e programa político.
Estas duas componentes foram essenciais para uma acção militar bem sucedida, sem derramamento de sangue e para o arranque de um processo revolucionário de transformação da sociedade portuguesa, com transferência do poder e devolução da soberania ao povo português, que através de uma Assembleia Constituinte eleita democraticamente escolheu o novo regime e modelo politico para o Estado e a Sociedade portuguesa.
Perante a incapacidade e a falta de vontade do poder ditatorial para encontrar uma saída política para a guerra colonial iniciada em 1961, os jovens militares profissionais vão tomando consciência que a guerra não é solução nem para o povo português nem para os povos colonizados. A solução tem de ser política. Em 1973, aproveitando um problema corporativo de evolução das carreiras militares, os jovens capitães organizam-se em movimento de contestação que rapidamente adquire consciência política. Alarga-se a militares da força aérea, liga-se ao movimento da marinha, em conjunto elaboramos um programa político, elemento fundamental para que a acção militar não se transformasse num mero golpe de Estado.
A criação do MFA e a ação militar de 25 de Abril originou uma revolução, porque provocou uma profunda ruptura nas forças armadas e na sua hierarquia, viabilizando múltiplas rupturas na sociedade portuguesa, rupturas: política, económica, ideológica, social, cultural e estética.
• Ruptura no plano político com regime ditatorial – de partido único – suportado por uma polícia política, a PIDE/ DGS, Tribunais especiais, organização de Juventude totalitária, censura aberta, repressão dos intelectuais e dos trabalhadores, controlo claro da imprensa, rádio e televisão.
• Ruptura no plano económico -rompe-se com o condicionamento industrial, acaba-se com os sindicatos e grémios do regime acabam se as corporações.
• Ruptura no plano ideológico -com uma ideologia salazarenta católica, conservadora e corporativo fascista.
• Ruptura no plano social com a sociedade rural conservadora, em que é vigiada de perto pela polícia e submissa relativamente à Igreja.
• Ruptura nos planos cultural e estético como sociedade reprimida de pensamento único.
A adesão popular ao movimento de jovens militares na manhã do dia 25 de Abril foi a confirmação de que estávamos certos e interpretámos corretamente os seus anseios de paz e liberdade. Esta adesão popular teve forte influência no desenrolar da ação militar e transformou rapidamente o derrube do regime ditatorial num processo revolucionário.
A realidade objetiva que esteve na origem do 25 de Abril foi da maior importância mas é indispensável considerar o significado e a força das motivações éticas, dos valores e das ideias que nos moveram, ou seja, a nossa realidade subjetiva.
Os valores do programa do MFA são: liberdade, democracia, igualdade, fraternidade, paz, solidariedade e cooperação. São ainda os valores da revolução francesa, expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e, mais tarde, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que constitui o núcleo essencial da dignidade humana, do que deve ser a expressão exercício da cidadania num Estado republicano democrático, num Estado de direito.
Nós, jovens militares, numa situação de guerra e de enormes limitações de liberdade e de recursos materiais, impulsionados por um forte sentido de dignidade e de solidariedade entre todos e com os povos colonizados, abrimos portas à vocação libertadora dos homens e dos povos.
O 25 de Abril, nasceu de uma convicção profunda sobre a fraternidade e igualdade dos que partilham a condição humana. Essa foi uma poderosa motivação que nos levou a quebrar a hierarquia e a derrubar o regime ditatorial sem derramamento de sangue. Foram, pois, também razões éticas, princípios e valores que nos motivaram nesse impulso para a libertação de todos os que estavam submetidos: o povo português e os povos coloniais.
Partimos de uma situação de atraso económico, político, social e cívico. Atingimos depois do 25 de Abril uma plataforma mais elevada, uma honrosa posição na Europa e no mundo. Que hoje está de novo em risco.
No 25 de Abril, os militares do MFA e a generalidade dos portugueses expressaram o melhor da natureza e da condição humana. Até ao primeiro de Maio de 1974 vivemos uma semana extraordinária de alegria, harmonia e liberdade. Percebemos que se quisermos ser livres, não podemos construir a nossa liberdade à custa da submissão ou escravidão de outros.
No 25 de Abril fomos todos solidários em Portugal e com os povos colonizados. Essa manifestação de solidariedade e liberdade de todos produziu um dos momentos mais extraordinários da nossa história e criou estética própria.
À generosidade e força das ideias políticas da liberdade alcançada e da prática democrática, juntou-se a criatividade popular da expressão plástica, musical, cinematográfica e teatral. Essa estética libertadora e contagiante saiu de um grupo de jovens militares e de um povo em completa sintonia com tão improvável grupo de Libertadores, os Capitães de Abril da liberdade e da dignidade.
Na originalidade e na singularidade do 25 de Abril constatamos que os jovens militares, que derrubam um regime ditatorial, têm um programa político democrático e entregam o poder a uma junta militar, a Junta de Salvação Nacional e a um Governo Provisório civil para que num período não superior a um ano, promova eleições livres para uma Assembleia Constituinte que devolverá a soberania ao povo.
O derrube da ditadura pelo MFA dá-lhe uma legitimidade revolucionária reconhecida pelo povo que a não reconhece na Junta de Salvação Nacional, no Presidente da República ou no I Governo provisório. O movimento popular e o povo em geral a quem reconhecem a legitimidade é ao MFA -aos jovens militares que derrubaram o regime, mas não assumiram qualquer função no exercício do poder.
Estes jovens militares, o MFA, não se movem por ambição de poder nem pretendem para si próprios quaisquer vantagens ou benefícios. Correm todos os riscos motivados por razões éticas e morais, na condução da ação militar preocupa-os o não derramamento de sangue, a dignidade, os direitos humanos e o respeito pelos outros. O 25 de Abril não foi apenas uma ação militar, um golpe de Estado. Foi um acontecimento de rupturas múltiplas que originou em Portugal uma revolução com consequências na Europa e em todo o mundo. Em especial a África e América Latina. Acto singular da história portuguesa e provavelmente da história mundial. Não conhecemos outro semelhante feito por jovens militares.
Os improváveis Libertadores surgiram de um dos pilares do regime opressor- as forças armadas. Nenhuma teoria revolucionária nem os movimentos de oposição democrática tinham previsto que a libertação do fascismo pudesse ocorrer desta forma.
O 25 de Abril é de todos. Faz parte do imaginário português, mudou rapidamente a imagem que os portugueses tinham de si próprios. Está de tal maneira interiorizado pelo povo que quando não estamos satisfeitos com o funcionamento das instituições se ouve dizer – o 25 de Abril não chegou aqui, ou – é necessário outro 25 de Abril. O 25 de Abril não foi a vitória especifica das correntes A, B ou C… da oposição, ou a vitória de uma classe ou camada social especifica, foi sim a vitória de todos os que desejavam paz, liberdade e melhores condições de vida e trabalho na sociedade portuguesa, foi a vitória da generalidade do povo português. O 25 de Abril é o traço mais recente da identidade portuguesa. Transporta em si uma estética própria, libertadora de elevado simbolismo, impulsionada pela criatividade popular. A senha foi a canção Grândola Vila Morena …o povo é quem mais ordena… a metralha dos soldados são cravos, as flores que nasceram da adesão da dona Celeste e das floristas no Rossio, dando origem a uma poderosa imagem difusora da revolução e dos seus ideais por todo o mundo. A ação militar, não obstante a contra resposta do Governo, desenrola-se sem derramamento de sangue, exceto por ação da Pide que dispara sobre os populares e provoca 5 mortes.
A adesão espontânea do povo desde o primeiro momento, transforma a ação militar no início de uma revolução política, económica, social e cultural. Potenciada pela articulação e apoio mútuo entre o movimento popular e o movimento militar do MFA. É esta adesão, é este movimento popular que vai chamar os jovens militares a assumirem responsabilidades políticas diretas a partir do segundo governo provisório.
A aceleração do processo revolucionário não se deve a radicalização do MFA, é provocada sobretudo pelas tentativas das forças conservadoras e contra revolucionárias que procuram travar a marcha do movimento libertador e pela luta interna das forças políticas nacionais pela conquista de influências e Poder. Foi o que aconteceu no início de Junho, com a queda do primeiro Governo provisório, no 28 de Setembro com a demissão de Spínola de Presidente da República e no 11 de Março de 1975 com a tentativa de golpe militar.
Os principais partidos políticos conscientes das suas fraquezas e debilidades procuraram encontrar apoio externo e tentaram seduzir ou conquistar militares do MFA para as suas opções políticas de conquista do poder, a sua capacidade própria era limitada.
O 25 de Abril que ocorreu sem qualquer interferência de forças politicas partidárias nacionais ou de forças e influências externas e por isso foi tão extraordinário e singular, foi para os diferentes actores políticos internacionais uma surpresa, iria ser objecto de atenção internacional e de muitas influências ou pressões externas, umas solicitadas pelas forças politicas nacionais outras decididas pelos centros de poder internacional.
As influências externas, nomeadamente dos países ocidentais, foram determinantes no condicionamento do processo de transformação da sociedade, na radicalização e polarização da revolução portuguesa. Hoje, através de documentos oficiais de diferentes origens, temos conhecimento das interferências concretas, de como esse processo se desenvolveu em ligação com forças e actores políticos nacionais que nem sempre colocaram o patriotismo como valor maior, de como foram explorados certos preconceitos e ideias existentes ou injectadas na sociedade portuguesa, mas isso é outra história.
A nós, militares do MFA, importa sobretudo salientar o patriotismo dos intervenientes, a originalidade, singularidade e total autonomia do 25 de Abril de 1974, um dia muito especial da nossa História que muito dignificou Portugal e os portugueses, que continuará a ser uma referência de valores e inspiração para o futuro, com vista à construção de uma sociedade, mais justa, livre e solidária prevista e plasmada na nossa Constituição.
Algés, 15 de Abril de 2023