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Liberdade, liberdade, quem a tem chama-lhe sua

Nascida em 1952, natural de Lisboa, Portugal.

Licenciada em Filologia Românica pela FLUL em 1977.

Professora do ensino secundário a partir de 1976, foi igualmente professora de Português Língua Estrangeira e Leitora de Português nas Universidades de Grenoble e de Estrasburgo. Foi formadora de professores em Portugal, em S. Tomé e Príncipe e em Moçambique.

Foi assessora do Director Geral do Ensino Secundário (1997-2001), adjunta do Secretário de Estado da Administração Educativa (2001 e 2002) e Chefe do Gabinete do Secretário de Estado da Educação (2005-2009).


Liberdade, liberdade, quem a tem chama-lhe sua

Em Abril de 1974, tinha quase 22 anos e uma filha de 4 meses. Estudava e trabalhava. O meu marido cumpria o serviço militar obrigatório e vivíamos no medo constante de uma mobilização para a guerra. Falávamos, muitas vezes, de “dar o salto” se tal acontecesse mas nunca fizemos planos sérios para sair do país. Teria sido, aliás, muito difícil pois não tínhamos família no estrangeiro nem contactos. Afinal, não foi preciso pois o MFA libertou Portugal e libertou-nos do medo e da guerra.

Nasci numa família modesta que, embora vivendo em Lisboa, tinha raízes na terra, no campo, na província, como então se dizia. Tanto a minha mãe como a minha avó materna trabalhavam, não dependiam financeiramente dos maridos. As tarefas domésticas, porém, estavam todas a cargo delas. Delas e de mim, é claro, mal tive três palmos de altura. “O trabalho do menino é pouco, mas quem o perde é louco” era um aforismo muito popular no Estado Novo e que se aplicava lá em casa. As meninas (eu, neste caso) deviam aprender – fazendo – as lides domésticas, os encantos da culinária e as “prendas de mãos”. Para mim, tudo uma chatice. Felizmente, a leitura era fortemente encorajada e, desde que não houvesse nada para fazer, também me era permitido ir brincar para a rua com as outras crianças. Frequentei sempre o ensino público. Nos dois primeiros anos da escola primária, as meninas, todas de bata branca, sentavam-se ajuizadamente nas carteiras, viradas para o quadro e para a professora. Não podíamos voltar-nos para trás ou conversar e ai de quem quebrasse as regras da disciplina ou não soubesse a lição: os castigos iam do puxão de orelhas às reguadas, passando pelas piadas desagradáveis e humilhantes. As “melhores” alunas, eram por vezes chamadas a ensinar as outras e repetiam os comportamentos agressivos da professora dando ponteiradas na cabeça das colegas. Nesse tempo, aos Sábados, havia escola mas as aulas eram substituídas por outras actividades. Lembro-me de uma senhora mais jovem e sorridente do que a nossa professora e que nos ensinava cantigas das quais apenas recordo uma talvez pelo absurdo que representava para os meus 7 anos. A letra era assim:

A a a, heróis de Dradrá
E e e, lutai pela fé
I i i, Nagar-Aveli
O o o, Goa não está só
U u u, nada com Nehru

Escusado será dizer que só muito mais tarde entendi o sentido daquelas palavras e o propósito com que no-las faziam repetir.

O liceu era diferente, mesmo nos primeiros anos. Havia uma grande distância entre nós e as professoras, algumas das quais nos chamavam pelos números e não pelos nomes. Lembro-me de ter sido a 43, no primeiro ano e a 37, talvez no quinto. A disciplina era rígida em todos os domínios: não podíamos usar calças nem correr nos corredores, não podíamos usar as escadas reservadas ao corpo docente, devíamos levantar-nos sempre que uma professora nos dirigia a palavra, mesmo que estivéssemos sentadas no recreio a ler um livro, por exemplo. Mas tive a sorte de ter tido algumas excelentes professoras que nos ensinavam a pensar, que nos incentivavam a ler e a investigar, que nos encorajavam a experimentar. No final dos anos 60, o liceu Rainha D. Leonor era o liceu feminino mais progressista de Lisboa onde até foi possível ganharmos “a revolta do mata”. O jogo do mata era muito popular. Em todos os intervalos, as equipas organizadas atiravam com entusiasmo a bola ou o “ringue” umas contra as outras. O objectivo era não se deixar “matar”, isto é, não ser atingida pela bola que devia ser evitada ou apanhada. Ganhava a equipa que, evidentemente, tivesse menos baixas. Havia verdadeiras especialistas, heroínas que nunca se deixavam matar. Um dia, porém, uma bola mal lançada atingiu – parece que com força – uma professora; e a reitora proibiu o jogo. O que se seguiu foi inédito. Durante uns dias, em todos os intervalos, as meninas sentavam-se no recreio e gritavam em coro a plenos pulmões: “Queremos jogar ao mata! Queremos jogar ao mata!” A reitora acabou por ceder e voltou a autorizar o jogo.

A década de 60 aproximava-se do fim e o meu curso dos liceus também. Começámos a angariar dinheiro para a viagem de finalistas. Queríamos ir a Paris. Não nos deixaram por causa dos acontecimentos de Maio de 68. Foi uma enorme desilusão. A adolescente que eu era começava a rebelar-se abertamente contra a autoridade. Faltava a aulas, questionava algumas professoras, ia a umas reuniões do MAESL. Queria ser independente, não ter que pedir licença, não ter que prestar contas. E, para isso, precisava de ganhar dinheiro. Comecei a dar explicações.

Quando entrei para a faculdade de letras, em 69, tinha acabado de fazer 17 anos e gostava de literatura, de teatro e de política. Vivi em pleno a chamada crise académica desse ano – era ministro da educação José Hermano Saraiva – e fiz greve pela primeira vez. Passava muito tempo na Pró-associação, ouvia mais do que falava, ia com prazer a algumas aulas. Conheci muitas pessoas, fiz amigos. Comecei a sair à noite, a ir casa a deste e daquele para ouvir música, ter grandes discussões sobre cinema ou política ou a qualidade do ensino. Às vezes voltava para casa de madrugada, sorrateira, pé ante pé para não ser ouvida. Ainda não era independente…

Não sei bem como mas, a certa altura, dei por mim apaixonada. Queríamos viver juntos e, por isso e para isso, decidimos casar. Eu tinha passado a estudante voluntária (não era obrigada a ir às aulas mas apenas aos exames) e já trabalhava; ele estudava, dava umas explicações para ganhar algum dinheiro, e tinha sempre o espectro da tropa a ensombrar-lhe a existência. Quando conseguiu arranjar o trabalho que lhe interessava (mas sem deixar a faculdade), casámos. Em Agosto de 1971; o meu pai teve de dar autorização porque eu era de menor idade. Tive uns dias de licença de casamento porque era funcionária pública; o meu marido teve de ir trabalhar no dia seguinte. Não houve lua de mel.

No dia 25 de Abril de 1974, quando nos preparávamos para seguir a nossa rotina matinal, fomos surpreendidos pelo que ouvimos – e pelo que não ouvimos – na rádio. Não havia noticiários nem publicidade nem outra música a não ser a marcha “A Life on the Ocean Wave” e uma voz que, de vez em quando repetia: “Aqui, posto de comando do movimento das forças armadas …” O meu marido ia todos os dias para o quartel e eu, antes de ir deixar a nossa filha em casa da minha avó e de seguir para o trabalho, levava-o a Belém onde ele apanhava o barco para a Trafaria. Era esta a rotina e não foi muito alterada: ele seguiu para o quartel (onde ficou de prevenção vários dias…), levei a avó e a filha para casa da minha mãe, passei pela escola de enfermagem onde trabalhava apenas para dizer que não ficava e arranquei para o Terreiro do Paço com o meu irmão. O céu estava cinzento, a ameaçar chuva e nem olhei para o rio. Só tinha olhos para os tanques que ocupavam a praça. Percebíamos que havia um golpe militar mas não sabíamos se de esquerda se de direita; não havia noticiários; a voz que se fazia ouvir quer na rádio quer na televisão apelava a que as pessoas se mantivessem em casa mas havia cada vez mais gente na rua. Todo o dia vagueámos pela cidade e fomos percebendo, a pouco e pouco, que aquilo era a revolução por que tanto tínhamos esperado, e que aquele era “o dia inicial inteiro e limpo”, nas palavras de Sophia.

Os meses que se seguiram foram de euforia mas também de confusão. Tínhamos todos de nos reajustar às perspectivas novas que se abriam diante de nós. E se nos congratulávamos por podermos falar de tudo, sem medo, por podermos questionar os chefes que nos oprimiam, os professores que nos desdenhavam, toda a autoridade que considerávamos ilegítima, não sabíamos muito bem para onde caminhávamos, o que deveríamos fazer a seguir. Não estando enquadrada por nenhum partido ou movimento, situando-me na área da esquerda – mas não do partido comunista – ia ouvindo os amigos, participando nas discussões, fazendo perguntas, procurando uma orientação.

No meu local de trabalho – a escola de enfermagem – a direcção foi substituída por uma comissão de gestão, representativa de docentes, alunos e pessoal, eleita por todos. Democracia mais directa era difícil. Houve plenários longos e tempestuosos onde as diferentes tendências políticas se digladiavam com uma agressividade nunca antes vista. Não havia lugar para os moderados, para o meio termo, para os compromissos. Tínhamos estado demasiado tempo sujeitos à mediania do respeitinho. E o PREC seguiu o seu curso, agitado, turbulento, com a reforma agrária , as ocupações, as nacionalizações e os saneamentos. As palavras fascismo e fascista banalizaram-se e havia muita gente a invocar o nome da Democracia em vão.

Votei pela primeira vez em Abril de 1975, para a Assembleia Constituinte. Uma alegria, a crença de que a partir dali tudo seria melhor para todos, que acabariam a pobreza e as desigualdades, que haveria finalmente “paz, pão, habitação, saúde e educação “ para todos. Havia filas intermináveis diante das mesas de voto e um ambiente geral de festa, ninguém se queixava da espera. Mas o Verão desse ano será “quente”, violento e perigoso. No ano seguinte, candidatei-me ao concurso nacional de professores, embora ainda não tivesse terminado o curso, e fui colocada em Almada. Gostava muito de dar aulas, sempre gostei e, naquela altura, o ambiente na escola era estimulante, havia muitos professores jovens cheios de ideias (ainda que sem experiência e com pouco saber, como eu), toda a gente queria participar em tudo e o conceito dominante era: as decisões, seja em que domínio for, devem ser tomadas por todos, colegialmente. Lembro-me de um conselho disciplinar destinado a apreciar o comportamento de um aluno e a aplicar-lhe um castigo. Foram os colegas que, considerando a gravidade dos actos, propuseram e votaram uma pena de 4 dias de suspensão. Mas é claro que nem sempre corria bem.

Desde 1976 até ao ano em que me aposentei sempre fui professora, mesmo quando desempenhei outras funções. Porquê? Porque é a minha matriz, porque, para mim, a mais importante das conquistas de Abril foi a liberdade e, no desempenho da profissão de professor podemos, livremente (ninguém me convence do contrário!), conduzir os jovens pelos caminhos do respeito pelo outro e pela liberdade do outro enquanto eles lêem, pensam, aprendem e crescem.

Nos anos 80 e 90 dei aulas na Europa e em África, no ensino secundário, no superior e na formação de professores e aprendi tanto… Fiquei a saber que, embora houvesse cada vez mais filhos de emigrantes a estudar na Universidade, eram raríssimos os que optavam pelas ciências, preferindo as línguas, e que , mesmo com a nacionalidade francesa, pesava sobre eles o estigma de não serem franceses de cepa (de souche). Verifiquei que embora a descolonização não tivesse transformado S. Tomé e Príncipe num país desenvolvido, todas as meninas e meninos iam à escola (muitas vezes descalços, mas iam) e aprendiam, com uma sede de saber que surpreendia. Incomodada e furiosa vi, em Moçambique, o comportamento racista de muitos portugueses e constatei como é difícil esquecer que se foi colonizador ou colonizado.

Hoje, quase 50 anos após a revolução que nos trouxe a liberdade, a paz e o pão constato que o mundo parece caminhar aos tropeções rumo a um horizonte obscurecido pela ganância de uns, pelos preconceitos de outros, pela falta de humanidade e de cultura de muitos. Preocupa-me o futuro dos meus filhos e da minha neta, claro que preocupa. Considero, porém, que enquanto formos capazes de pensar pelas nossas cabeças, enquanto mantivermos o espírito aberto e crítico, sem deixar que nos manipulem; enquanto formos solidários, interessados e intervenientes seremos capazes de preservar e defender a nossa liberdade e a nossa democracia.

Maio de 2023

#50anos25abril