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Ditadura nunca mais!

Maria Dulce de Sousa Manuel

Nascida em 1954, natural de Grândola, Portugal.

Solicitadora.


Ditadura nunca mais!

Café Pintassilgo

Quando eu nasci, em Grândola havia um café, o café Pintassilgo, onde só entravam os “lavradores”, os ricos da terra. A entrada estava vedada aos pobres e até aos remediados. Direito de admissão peculiar…

 

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S.M.F.O.G.

Mas também havia a Música Velha (Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense) onde, anos antes, jovens “amigos da cultura” tinham fundado uma biblioteca, onde se juntavam para ler, discutir, aprender a tocar música e todo um conjunto de atividades que foram alargando às outras colectividades da terra e que contribuíram para criar uma forte oposição ao regime ditatorial e cimentar uma enorme coragem para de todas as formas que podiam lutar pela LIBERDADE e resistir à repressão. Cresci numa família desses resistentes, de lutadores antifascistas que cedo me ensinaram a perceber a realidade da vida em Ditadura: a ver a pobreza, a dureza do trabalho nos campos e fábricas pago miseravelmente , a humilhação , o analfabetismo, , o não poder dizer o que se pensava, não poder ler o que se queria. Os meus pais, Maria de Lourdes e António Manuel, foram ambos presos em 1952 e cumpriram ambos 6 meses de prisão em Caxias, acusados de terem distribuído panfletos e recolhido assinaturas a apelar à Paz ( na sequência do Apelo de Estocolmo, pela proibição das armas atómicas) e participado numa manifestação junto ao quartel da guarda nacional republicana em Grândola a exigir a libertação dos que haviam sido presos antes deles. Nessa altura foram presos 22 jovens em Grândola. Na prisão de Caxias, além do encarceramento em condições e alimentação miseráveis, (chegaram a comer favas durante 60 dias !) sofreram espancamentos e isolamento.

Fotografia da prisão recolhida no processo consultada na Torre do Tombo – a minha mãe

 

Mas a prisão e os maus tratos nunca os afastaram da Resistência antifascista e da Luta. E esta consistia por vezes em coisas que hoje nos parecem tão simples como propagandear as suas ideias através da organização de eventos culturais e subversivos: organizar um concerto do maestro Fernando Lopes Graça e o seu coro, organizar conferências com os escritores antifascistas como Antunes da Silva e Romeu Correia, criar um grupo de teatro (com a participação desde a primeira hora do meu tio Zé da Conceição e o apoio do encenador Helder Costa, que aí se iniciou na encenação) que levaram à cena peças de teatro sempre de cariz revolucionário, organizar a sessão musical com o Zeca Afonso e Carlos Paredes e Fernando Alvim (a recepção do auditório às suas canções levaria o Zeca a escrever o Grândola). O meu pai foi Presidente da Direção da Música Velha entre 1960 e Dezembro de 1963, altura em que a pide voltaria a tentar prendê-lo. Os meus pais, eram à data militantes do PCP e tinham como tarefa o transporte, no carro da família, de funcionários do partido dentro do país. O último funcionário que tinham transportado tinha sido preso e daí a fuga… o meu pai pensou que tinha havido uma denúncia e que a ser preso nessa altura a pena seria bem mais dura. Não era o caso- tratou-se de mais uma “prevenção” da polícia política. Américo Tomás iria deslocar-se ao distrito de Beja, incluindo Grândola em Abril, “à cautela” a pide prendeu previamente e sem qualquer motivo mais 29 pessoas nessa madrugada de 4 de Dezembro de 1963.

Uma fuga…

Na madrugada do dia 4 de Dezembro de 1963 um agente da PIDE, acompanhado pela GNR bateu à porta de nossa casa para prender o meu pai . A minha mãe veio à janela e gritou “acudam, tenho ladrões à porta”. Acorreu um vizinho com um machado na mão mas foi travado pelo GNR que estava à porta.

A partir daí, e já com a vizinhança alertada, a polícia começou aos murros à porta do primeiro andar esquerdo “ Abram em nome da lei”. Mas a porta era forte e os moradores corajosos, a minha mãe respondia:” Só abro depois do nascer do sol. O domicílio é inviolável entre o por e o nascer do sol”. Preparou-se a fuga.

Eu, na altura com 9 anos, fui passada por uma escada de comunicação na traseira da casa, para o r/c onde ,com a família que aí vivia, assisti à passagem do meu pai ( que vestiu um sobretudo por cima do pijama) para o quintal da casa do lado. A dona da casa tinha subido para uma mesa para poder ajudar o meu pai a descer do muro. O meu pai ainda passou outro muro para se esconder em casa do Solicitador da Vila, que algum tempo antes em conversa informal com o meu pai tinha dito : “O amigo não tem problema, se a polícia o quiser prender, é só pular dois quintais”. Foi isso que o meu pai fez…

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Rua Anchieta, n.º 1, 1º Esq. – a nossa casa

Nessa altura e de comum acordo os meus pais não quiseram tornar-se funcionários clandestinos do PCP. E assim tiveram que, pelos seus próprios meios encontrar forma de escapar à prisão. Tivemos que mudar a família, na qual se integrava o meu tio, José da Conceição, para Viana do Castelo, com o apoio de um republicano convicto, o comerciante Eugénio Pinheiro, que deu emprego ao meu pai e ao meu tio. E recomeçar tudo de novo. Estivemos em Viana do Castelo entre 1964 e 1969. Aí, nessa altura, o meu tio, voltou a organizar um grupo de teatro no Clube Fluvial Vianense e a convidar o Zeca Afonso para uma actuação em 1968, onde cantou também o Manuel Freire. De volta a Lisboa em ano de eleições , lá nos integramos todos, nas estruturas culturais e de combate que conseguíamos, no MDP-CDE, na cooperativa cultural PROELIUM ( que a Pide havia de encerrar) na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, eu nas organizações estudantis, distribuindo panfletos contra a guerra colonial, colando cartazes, fugindo à polícia no funeral do estudante Ribeiro dos Santos e nas poucas manifestações que se conseguiam organizar e que duravam pouco tempo antes de ser desativadas à tareia da polícia a maior parte das vezes sob o comando do capitão Maltez. Retomou-se o contacto com a S.M.F.O.G. foi formada uma comissão cultural, da qual faziam parte alguns jovens ( o Zé Horta , o Rocha…), o meu tio Zé da Conceição, a Irene Pimentel e outros que volta a realizar várias iniciativas, como nova sessão de canções do Zeca Afonso, outras com o Samuel, o Rui Mingas, Adriano Correia de Oliveira, o Teatro de Campolide, sessões de cinema comentadas pelo jornalista José Salvador e Joaquim Leal, José Saramago, Armando Caldas . Organizou-se em 1972 uma Feira do Livro com muita frequência, muita ousadia (no dia da inauguração o Livro do Dia era “ O trabalho Político de Massas” de Lenine) e muita vontade de fazer. Viver nesta época era sufocante. As conversas tinham que ser sussurradas. Olhava-se para os desconhecidos com desconfiança. Os rapazes e as famílias dos rapazes, começavam logo aos 14 ou 15 anos a preparar-se para sair do país ou ir para a guerra. Os que obtinham adiamento da tropa para estudar tinham que andar na “linha” ou eram logo incorporados na tropa por castigo. Nos Liceus havia “contínuos” que eram informadores da PIDE. Na Faculdade “Gorilas” que separavam os grupos e intervinham para impedir até o convívio. Os livros, os filmes e as peças de teatro eram censurados e proibidos. Era preciso lutar…

Até à noite em que o meu pai me acordou de madrugada: Dulce, houve um golpe de estado! Será que é desta?

E foi

… “E LIVRES HABITAMOS A SUBSTÂNCIA DO TEMPO “

Manifestação em Grândola no dia 27 de Abril de 1974 – foto cedida por José Horta

E ainda a medo:

Primeiro pensámos nos presos políticos e corremos para lá até à sua libertação. E participámos na primeira manifestação de rua sem que viessem prender-nos exigindo o fim imediato da Guerra colonial e a libertação das Colónias.

E participámos na caça aos Pides.

E manifestámo-nos por outras causas.

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Fomos ouvir o Saldanha Sanches na Praça do Rossio, esperar o Álvaro Cunhal, o Mário Soares e o José Mário Branco e todos os que vinham do exílio… E fomos às manifestações e aos comícios. Militávamos, o meu tio e eu na O.C.M.L P desde a sua formação. Estive na fundação da UMAR e o PCPR. Fomos candidatos nas eleições livres , toda a família, por diversas vezes primeiro pela FEC- ML e depois pela UDP. Vivi 20 anos em ditadura e vivo há 49 em democracia. Festejo todos os anos da minha vida a data da Libertação. Não esqueço o que foram os anos da Ditadura, não esqueço o que tanto se lutou pela Liberdade. E acredito que os testemunhos são importantes para que as pessoas não esperem que os outros pensem e decidam por elas.

Maio de 2023

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Da consulta do meu pai ao processo PIDE/DGS em arquivo na Torre do Tombo, das 477 folhas que o constituem, escolhi esta com um apontamento manuscrito pelo meu pai.

#50anos25abril