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O tempo do antes, o tempo do depois

Nascido em 1948, natural de Bragança, Portugal.

Licenciado em Direito, ingressou na PJ como quadro superior, tendo permanecido nessa Instituição até à sua aposentação.

Ao longo da sua carreira na PJ ficou lembrado como responsável de vários casos célebres de investigação, com destaque para o chamado Caso FLA (Frente de Libertação dos Açores) Caso Camarate e Caso FPs 25 (Forças Populares 25 de Abril), entre outros.

Após uma passagem de cerca de seis anos por Macau, onde dirigiu o serviço de informações daquele Território, regressou à sua Casa (a PJ) ocupando o lugar de Diretor do Gabinete Nacional da Interpol para o qual havia sido nomeado em meados da década de oitenta.

Nessa qualidade cumpriu ao longo de três anos uma Comissão de Serviço no Secretariado Geral da Interpol, em Lyon, França, onde teve a oportunidade de dinamizar contactos entre aquela Organização Internacional e os países de língua portuguesa.

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O tempo do antes

Nasci nos finais dos anos quarenta em Angueira, uma aldeia raiana e remota de Trás-os-Montes, onde, no imaginário coletivo, ainda persistiam muitas estórias e lendas da guerra civil espanhola, abundando testemunhos vivos daquele conflito que dilacerou o povo nosso vizinho e irmão, do outro lado da raia.

Nesse tempo o termo guerra era recorrente.

Não bastavam as narrativas das atrocidades do conflito mundial que terminava, os refugiados que chegavam, sobretudo crianças que eram acolhidas por famílias de Bragança, as revistas de propaganda dos aliados e dos nazis que andavam e ainda andam lá por casa, o som das sirenes que se ouviam nos frequentes exercícios da Proteção Civil, como ainda havia os relatos dos combatentes da Primeira Guerra Mundial com os quais tive o privilégio de privar e aprender.

Vivendo-se em paz, havia como que uma estampa a sépia descolorida da palavra guerra, ténue e difusa, longínqua e semiescondida, mas sempre presente, lá atrás, em tela de fundo.

Mais tarde, ao participar na guerra do ultramar, ou guerra colonial (escolha o leitor a expressão que mais lhe agrade embora me atreva a sugerir a mais pacifica designação “guerra de África”), haveria de aprender e testemunhar o acerto do provérbio que refere que “a paz não é outra coisa senão o intervalo entre guerras.”

A cidade de Bragança foi o berço da minha infância com deslocações frequentes à aldeia, a uma distância de escassos quilómetros. Da vida citadina não há muito a dizer. Bragança era, e em certa medida continua a ser, uma cidade tranquila de ritmo lento e repetido como a maioria das cidades do interior.

Já o mesmo não posso dizer do ambiente rural que me fascinava, quer pela sua novidade, quer pela genuinidade e certeira sabedoria das suas gentes com cujas manhas ancestrais pude aprender alguma coisa. Hoje continua a atrair-me mas de modo diferente. Já não é o romantismo bucólico, mas o entendimento profundo da minha pertença ali, como que em obediência a um chamamento, findo que foi o tempo das ilusões.

Nesse tempo, sem eletricidade, nem casa de banho, nem água corrente, nem sistema de aquecimento, porque a lareira da cozinha bastava, gozava de uma sensação de liberdade plena, a que acrescia um doce aconchego da acrisolada ternura que recebia dos que me rodeavam, já o mesmo não podendo dizer de outros miúdos da minha idade, menos afortunados, e para os quais as manifestações de afectos eram menos evidentes.

No início da adolescência, recordo com delirante perplexidade um incidente que haveria de me pôr a pensar ( e muito!). Ao acompanhar um conterrâneo para regar um batatal junto à ribeira, o motor da rega recusava-se a funcionar e após várias tentativas frustradas o homem sai-se com resignado desabafo: “Não faz mal, Salazar lá está”. E lá regressou serenamente a casa, amparado por aquela fé altamente tutelada, ao som do “doce toque das trindades”.

A adolescência foi repartida por várias localidades consoante as colocações do meu pai na sua condição de militar.

Recordo um dia de Fevereiro de 1961, tinha então onze anos, quando o meu pai me chamou à parte para me confidenciar que tinha sido mobilizado para Angola, onde a guerra tinha acabado de eclodir, e que no dia seguinte teria que dar a noticia à minha mãe.

E deu, ficando-me para sempre na memória o infinito silêncio que se seguiu àquele anúncio, que não obteve nenhum comentário, naquela tarde chuvosa de Inverno, na casa da aldeia.

Anos mais tarde cumpriria uma segunda comissão militar em Timor.

A estratégia da Defesa Nacional de então, sendo autónoma, apresentava-se simples e clara: defender os territórios ultramarinos da agressão de que eram alvo.

Foi neste contexto que, interrompendo o meu curso de direito na Universidade de Coimbra, também eu fui mobilizado para a Guiné quando a guerra estava ao rubro naquele território.

A mera hipótese, só de pensar, em ir para outro país com o estatuto de refugiado político, ou outro, era inimaginável tanto para mim próprio como para toda a família. A desonra de se ser desertor, ainda para mais sendo filho de um oficial das Forças Armadas, era simples e totalmente inaceitável e sobrepunha-se a quaisquer considerações ou receios.

O regresso da guerra, não tendo constituído drama inultrapassável, também não foi caminho florido. A readaptação a um modo de viver dito normal, constituiu um percurso de altos e baixos, que só foi possível medir em retrospetiva, e em profundidade, passados anos. Como, na altura, costumava dizer um camarada que também havia chafurdado nas bolanhas da Guiné, “esta paz é-me insuportável!” E, fiel ao seu sentir, lá andava ele de embaixada em embaixada, ou em sítios esconsos, a discutir os convites que na nossa condição de ex-oficiais com a especialidade de operações especiais, recebíamos de alguns países que nos aliciavam com chorudas propostas para treinar combatentes em África. Confesso que também eu tive as minhas dúvidas e alguns momentos de hesitação, mais atraído pelo sonho da aventura do que pelas compensações pecuniárias prometidas.

Mas os deuses quiseram estar comigo! Tive sorte, muita sorte, pois só não me tornei mercenário porque simplesmente não calhou! Por essa altura, consegui um emprego noturno no jornal O SÉCULO como revisor dos textos antes da sua publicação. Isso permitiu-me privar com jornalistas de elevado gabarito intelectual e altamente politizados que me abriram os horizontes a um mundo que eu desconhecia. Fascinante, por certo, mas que eu acolhi num registo muito mais romântico que doutrinário. Aprendi também algumas manhas na arte de driblar a censura.

No entanto, ainda estava longe de uma verdadeira consciência política e, desde muito cedo, havia sido insistente e paternalmente advertido que a política costumava dar mau resultado.

Não tinha mundo. A única viajem tinha sido a terras da Guiné. Mais concretamente à sua savana, em completo isolamento, sem outros contactos que não fossem os nativos e os meus camaradas que encaixavam a mesma mundividência com as mesmas limitações.

O tempo do depois

Seria por certo redundante pronunciar-me sobre as inegáveis vantagens que o 25 de Abril trouxe ao Povo de Portugal e, desejavelmente, às suas ex-colónias africanas.

Adivinhando o alto gabarito intelectual de alguns convidados a participar nesta iniciativa, só iria, de modo atamancado, bater nas mesmas teclas mas com menor musicalidade e precisão, ficando assim diminuído o brilho do justo aplauso devido ao 25 de Abril. A este propósito, ocorre-me sugerir a leitura de “Portugal a Flor e a Foice”, obra da autoria de Rentes de Carvalho, editada pela Quetzal.

Prossigo, pois, com a narrativa pessoal.

Decorridos cerca de dois anos após o regresso da Guiné, e já no final do curso de direito na Universidade de Lisboa, eclode o 25 de Abril. Não constituiu uma verdadeira surpresa. Havia abundantes sinais e rumores de que algo do género estaria para acontecer.

O que constituiu verdadeira estupefacção foi o intenso frenesi que, de um dia para o outro, se apoderou do país inteiro de norte a sul. Era a revolução com todas as suas virtudes e também desmandos!

Tinha vinte e cinco anos e havia regressado de uma guerra ainda com resquícios do cacimbo africano. Vivi a festa tão colorida e intensamente como pude, mas, há que confessá-lo, com total inconsciência, superficialidade e leveza. Interessava-me muito mais o folclore e a agitação do momento que as próprias causas, em si mesmas. E, neste clima de arrebatamento, sucediam-se os múltiplos namoricos, agora subitamente descomplicados, livres e descomprometidos.

Muito embora o ambiente dito progressista da redação de O Século e as aquisições semiclandestinas na Livraria Barata, na avenida de Roma, de livros de cariz revolucionário, interditos pelo regime, efemeramente me tenham seduzido, estava longe de me sentir à vontade com a boina à Che Guevara, muito na moda nesse tempo. Passou-me assim pela vista abundante literatura de ideologia revolucionaria, desde o Lenine, a Mao, a Rosa Luxemburgo, passando por Bakunin, Kropotkin e Errico Malatesta. Porém, após algum deslumbramento inicial, nada daquilo me fez luz e fiquei muito mais confundido que esclarecido. Ainda recordo a seca do “O Capital”, onde nunca consegui ultrapassar as primeiras páginas. Porém, todas essas leituras algum efeito deveriam ter tido, porque recordo a torrencial e inflamada verborreia com que, em certa ocasião, resolvi brindar o meu pai a propósito da importância do papel de Trotsky na Revolução Russa!!! Ele escutou-me atenta, silenciosa e pacientemente. No final do meu exaltado monólogo, ( porque ele não abriu a boca), dedicou-me um sorriso tão candidamente terno e amorosamente complacente que teve em mim o efeito da pior das humilhações alguma vez sentida.

Para se ter uma ideia do fervor revolucionário e radical dos primeiros tempos da Revolução de Abril e dos meios que então frequentava, recordo o episódio de um colega meu que, metendo os pés pelas mãos, ousou timidamente referir, durante uma reunião de uma residência universitária, que nutria alguma simpatia pelo Partido Socialista, então acabado de ser legalizado.

O que foste dizer! Imediatamente epitetado de reacionário a fascista, e não sei que mais “caiu-lhe em cima o Carmo e a Trindade” e, volvido algum tempo, creio que teve mesmo de abandonar aquela residência.

Durante esse período, nas universidades, e não só, éramos muitas vezes olhados de soslaio por termos combatido em África. O epiteto de colonialista era por vezes inconscientemente lançado, esquecendo-se aqueles simpáticos “delatores” que a quase totalidade dos oficiais das Forças Armadas que corajosamente fizeram o 25 de Abril, combateram também corajosamente em terras africanas.

Hoje, porém, temos direito ao porte do Cartão do Antigo Combatente onde está escarrapachado: “ titular do reconhecimento da nação”!

A paradoxal complexidade desta geração parece assentar nisto: Literalmente da noite para o dia passou de um regime ditatorial, fortemente autoritário, para os excessos de uma revolução altamente permissiva. Foi habituada desde muito cedo a obedecer cegamente e, logo a seguir, foi incentivada a desobedecer, também cegamente. Foi enviada para uma guerra (para onde não pediu para ir), a toque de fanfarra, e regressou, discretamente, enaltecida por uns e censurada por outros.

Talvez tenham sido demasiados chips para um espaço temporal relativamente curto.

A verdade, porém, é que, com tudo isto, sinto-me afortunado e grato por todas as experiências vividas. E, embora não sabendo a quem agradecer, não hesito em abrir uma exceção para aqueles que tornaram possível a DEMOCRACIA da qual tenho a esperança da continuação da sua consolidação num mundo, tantas vezes, perturbado.

Junho de 2023

#50anos25abril