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Filhas de Abril – Talvez não saibas

Nascida em 1946, natural de Boliqueime, Algarve, Portugal.

Viveu anos decisivos em Angola e Moçambique durante os últimos anos da Guerra Colonial. Dessa experiência resultou o seu livro “A Costa dos Murmúrios”, adaptado ao Cinema por Margarida Cardoso. Sobre a Revolução de Abril, Lídia Jorge escreveu dois romances, “O Dia dos Prodígios”, seu livro de estreia, publicado em 1980, e “Os Memoráveis” publicado em 2014.

Muitos dos seus livros têm sido traduzidos e publicados no estrangeiro. Tem recebido vários prémios nacionais e internacionais. “Misericórdia”, de 2022, é o seu livro mais recente.


25 de ABRIL

FILHAS DE ABRIL

TALVEZ NÃO SAIBAS

Os dias são longos, mas a vida é breve e a memória curta. Quando me lembro dos tempos do Estado Novo, recordo o sol que não era menos brilhante do que hoje em dia, as árvores mais frondosas, o clima mais ameno, e sou tentada a imaginar crianças e jovens passeando em grupo aos domingos por estradas ainda não asfaltadas.

Não posso dizer que a vida não era bela porque quando se é jovem o futuro surge como uma caixa por abrir e dentro dela existe sempre um filme maravilhoso. Era o futuro da minha geração. Sou franca, para me lembrar da tragédia que os portugueses viviam, tenho de recuar devagarinho ao passado, mergulhar no tempo social, lembrar como vivíamos à mercê da Divina Providência e ausentes da Liberdade. Talvez por isso mantenha sobre uma mesinha de vidro um livro do fotógrafo Luiz Carvalho com o título tão lacónico quanto incisivo de Portugueses.

Mantenho-o ali à vista porque ele ajuda a regressar aos anos de transição da vivência do Estado Novo para os anos da Democracia, abarca imagens do mundo português entre 1972 e 1984, e folheando essas páginas, esse tempo místico, heroico, miserável e inocente, surge inteiro diante dos olhos como se ressuscitasse. Que nunca ressuscite. Nessas fotografias estão estampados os rostos de um tempo em que ainda em muitos locais do país se trabalhava de sol a sol, apesar da lei das oito horas ter sido instituída no início dos anos sessenta. O trabalho infantil era comum, os pais ainda retiravam os filhos da escola para irem pastorear o gado, e ninguém impedia. As mulheres ganhavam necessariamente pouco mais de metade dos homens e essa era uma regra nacional. As crianças nasciam em casa sem qualquer assistência médica e era natural que morressem. Nesses dias, a escola fechava-se para os alunos irem acompanhar os anjinhos mortos até à pequenina sepultura. Íamos de bata branca, segurando nas asas do caixão até o empurrarmos para a terra. De noite não dormíamos, sabíamos demasiado cedo que a vida humana não era nada.

Aliás, quem tivesse uma casa, um terreno, um negócio, não queria entrar no hospital porque o Estado comia os haveres, só tratava de graça quem não tivesse nada desta vida. Isto é, as pessoas nasciam e morriam em casa, necessariamente. E a velhice anunciava-se como um espectro de contornos muito diferentes de hoje. Quando um homem ou uma mulher viviam do seu trabalho, deixando de poder prestar serviço, se acaso os filhos não podiam sustentar o idoso, ele tinha de ir mendigar. Na contracapa de Portugueses, a fotografia representa um casal num espaço público encimado por fotografias de dois dignitários, e enquanto a mulher idosa mantém os dedos cruzados, expectante, o marido, encostado a um bordão, estende o chapéu emborcado, onde esconde o rosto baixo, pedindo esmola. A imagem perfeita da submissão. Não admira que, ao longo dos anos cinquenta e sessenta, quase metade da população portuguesa tivesse emigrado, a salto, para a Europa, ou com carta de chamada se era para o continente americano. Fizeram bem, ficaram por lá, a essa dispersão se chama hoje diáspora.

O que mais posso dizer? Que no meio desse mundo para onde recuo devagarinho, com a sensação de que regresso a um pesadelo que uma vez contado em voz alta até eu mesma custo a acreditar nas minhas próprias palavras, lembro o medo de viver e de pensar. A palavra vermelho tinha então uma conotação sombria e alimentava a calúnia. Aos dezasseis anos, não sei como, emprestaram-me um livrinho com o título O que é o Comunismo? Não me lembro do conteúdo, mas por certo que seria de arrasar. A verdade é que o abri na automotora que ligava Faro a Boliqueime e foi um escândalo porque alguém na carruagem deu pelo livro que eu tinha entre mãos e veio na minha direcção com os punhos cerrados. Qualquer reunião era suspeita, a cada esquina havia um informador, pessoas eram presas de noite e a vizinhança amaldiçoava o vizinho suspeito quando regressava a casa, se regressava. Às vezes não regressava, emigrava para países desconhecidos, e os pais do prisioneiro, quando passavam na rua eram tratados como os pais do evadido. Por vezes o tendeiro não lhes queria vender cebolas. O totalitarismo era isso, não vinha apenas de cima, partia de baixo porque a estrutura social estava minada, e no meio dessa lama, pairava como matriz sociológica patriarcal o estatuto mórbido das mulheres.

Jovens raparigas, que hoje veem à distância do écran as mulheres de burca no Afeganistão, e pensam que aquele estado de coisas não se passa no planeta Terra, à mesma hora, como ocidentais modernas que são, sentam-se nas esplanadas quase nuas, de cabelos soltos, brincando naturalmente entre si. Riem, falam alto, mostram o corpo, seduzem, escolhem os seus parceiros. Elas devem saber que há escasso meio século em Portugal ninguém andava de burca mas havia resquícios medievais entre nós. Hélène de Beauvoir, irmã de Simone de Beauvoir, tendo vivido entre nós nos anos cinquenta, escreveria – “Portugal, ah! Ce beau pays médieval”. E os Mandarins de Simone, com esse mesmo título em francês, não são nem mais nem menos do que os homens portugueses de então.

Por isso as mulheres portuguesas demoraram a assumir as suas vidas como pessoas autónomas e independentes. Durante o Estado Novo, o seu destino confundia-se com o casamento, a sua sorte dependia do temperamento e cultura do marido, e não tendo ordenado próprio eram donas-de-casa, isto é, geriam a cozinha e o quarto conforme o dinheiro que o homem disponibilizava e o seu bom ou mau humor o permitia. Se disser que vi mulheres chorarem para que os maridos dessem mais três escudos para irem à praça comprar as couves, não invento, reproduzo. Os homens podiam bater à vontade nas mulheres porque entre eles ninguém deveria meter a colher. Lembro-me de ao acordar ouvir os gritos de uma mulher que dia sim, dia não, era sovada pelo marido, e ela dizia que não sabia porquê. Cumpria-se o provérbio árabe, Quando chegares a casa bate na tua mulher, se tu não souberes porquê ela sabe. Era assim. As mulheres não podiam viajar sem autorização do marido, e a legislação permitia mesmo, em certos casos, que o homem assassinasse a sua mulher.

As mulheres criavam os filhos mas quem mandava nelas e neles eram os homens. A Igreja Católica protegia esse estado de coisas, aconselhando penitência e submissão. Os padres diziam que cada mulher deveria florir lá onde Deus a tinha plantado. O que ela deveria fazer era proceder ao exame de consciência e procurar saber onde tinha falhado para merecer ter um marido áspero quando não carniceiro. Alguma razão ele deveria ter para tratar mal a sua mulher. Do mesmo modo, a concepção era fruto do acaso e da vontade de Deus. Havia orações para não conceber. Neste ambiente agressivo, o mundo erótico da mulher era omisso. Em 1974, em vésperas da Revolução, o livro das três Marias, As Novas Cartas Portuguesas, uma série de textos cruzados, escritos a seis mãos em 1971, em que a linguagem da sensualidade feminina surge naturalizada, acabaria por levar as autoras a julgamento por atentado contra o Estado e aos bons costumes, com estatuto de criminosas banais. O resto anda escrito e tem sido filmado, e bem, mas por certo que parece mentira até a quem viveu pessoalmente esse tempo cor de cinza.

Depois veio a Revolução a 25 de Abril de 1974. Quem viveu essas horas mágicas em que a Liberdade chegou finalmente, não pode deixar de saudar esse dia e os seus intérpretes, e revivê-los com uma emoção que não passa. Por isso, dificilmente se perdoa a quem diz que em Portugal não houve Revolução mas apenas Evolução. Que desfeita é feita aos militares que ousaram mudar o regime, soltar-nos para a vida digna. Que desfeita é feita aos constituintes, aos políticos que criaram a Assistência Social, criaram o Serviço Nacional de Saúde, desamarraram o divórcio da Concordata com a Santa Sé, criaram o Novo Código Civil, assinaram a integração de Portugal na Europa Comunitária. Eu sei que tudo fica enterrado nos escombros da História, que os jovens, filhos do progresso escolar e académico, filhos da Liberdade, da nova Escola e da nova Universidade, dos novos institutos de investigação, e da mobilidade sem limites à volta da Terra, não podem ter vocabulário para agradecer o que foi feito. Aliás, não precisam de agradecer, não têm de quê. Apenas, de vez em quando, seria bom terem a consciência de que as conquistas não são eternas. Conhecer o passado que houve será uma forma de evitar que o futuro recue ou se lhe assemelhe, sequer. E, de vez em quando, talvez uma vez por ano, seria justo lembrarem, com um ramo de flores, que houve quem sonhasse as suas vidas livres como hoje são.

Lisboa, 14. Maio. 2023.

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