Nas Torres da Memória
Dulce Loureiro
Dulce Maria Raposo Pais Gonçalves Loureiro, nascida em 29/01/60, filha de Augusto Pinheiro Pais e de Maria Lídia Abreu Raposo Pais, natural da Covilhã, distrito de Castelo Branco. Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1983); Mestrado em História Contemporânea na mesma instituição (2015). Professora do 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico.
Nas Torres da Memória
Duas torres, interligadas e separadas. Interligadas pelas minhas emoções, dores, mas também ingenuidade, expectativa, esperança, alegria e liberdade. Separadas pelo tempo e no tempo, com acessos labirínticos, escadas íngremes, poeirentas, odor a bafio… como acontece quando nos propomos viajar por dentro da nossa própria história. Viajar, não para descobrir ou contemplar novas paragens, mas sim para revisitar um passado tecido de rostos, luzes e sombras, mas sem mapas, sem GPS e, em muitas ocasiões, sem companhia, porque alguns protagonistas fazem agora parte de outro tempo.
Mas para quê e porquê esta aventura que se transformou num desafio estimulante? Eis a resposta que é conclusiva por si:
“Mãe, acho que podias participar nesta iniciativa – Memória Presente – testemunhos de quem viveu antes, durante e depois de Abril – ADDA50 – basta passares para o papel as histórias que tantas vezes já nos contaste.”
Interiorizando o repto, mesmo sendo noite e dissipando medos, com o coração a bater descompassado, iniciei a subida da primeira torre procurando derrubar todas as minhas defesas interiores nesse passado estático e imutável a que agora me proponho dar vida. Subi um a um os primeiros 14 degraus. Com as chaves da memória abri uma porta que me introduziu numa sala algo escurecida. Acendi a lanterna do telemóvel e vi-me no dia 29 de janeiro de 1960, na cidade da Covilhã. Acabava de vir ao mundo a primeira filha de um jovem casal nascido e crescido no Estado Novo. Após o seu casamento e até dezembro de 1959, ambos haviam trabalhado e residido em Lisboa na Rua Correia Teles n.º 89. O meu pai trabalhava no Diário Popular, na rua Luz Soriano, n.º 67. Aí era contínuo ou cobrador conforme a necessidade do serviço. Como contínuo, tinha a tarefa de levar as provas dos artigos do jornal à censura, instalada na Calçada da Glória. Após a leitura dos artigos pelos censores, as provas eram devolvidas para serem entregues na redação do jornal, onde seriam introduzidas as emendas do Senhor Lápis Azul ou, simplesmente, cancelados os artigos inglórios. O meu pai dizia-me que muitas destas tarefas eram feitas mecanicamente e até de forma natural, grande parte das pessoas não questionava, obedecia; não pensava, trabalhava e estava mais preocupada com o facto de ter ou não ter salário para pagar as contas do que com a falta de liberdade.
A minha mãe era modista e trabalhava para senhoras ricas de Lisboa, como sempre ouvi dizer. No entanto, os rendimentos eram escassos e a dificuldade para pagar a renda da casa era uma constante. Foi então que decidiram regressar à terra natal e começar uma nova vida num Estado com ideias velhas. Assim passei eu a primeira parte da minha infância neste país de brandos costumes, sem grandes sobressaltos, até que a Guerra Colonial se agravou em Angola, Moçambique e na Guiné. A partir de meados da década de 1960, os meus olhos de menina passaram a ser monocromáticos. O meu mundo deixara de ser colorido e o mundo do outro tinha quase sempre o filtro das lágrimas. Muitas mães, avós, irmãs, noivas vestiam agora a única cor que o coração deixava: o preto. O preto lutuoso ficou sempre gravado no meu ser como símbolo de grande sofrimento; por isso, durante décadas, foi cor que eu nunca vesti e acabei por a fechar nesta mesma torre, qual Bela Adormecida impedida de viver.
Estávamos numa época em que não havia telemóveis, os telefones eram raros e caríssimos e as cartas do Ultramar demoravam a chegar. A televisão em Portugal tinha pouco mais de uma década, mas, apesar dos poucos recursos, lembro-me de que, entre o Natal e o fim de ano, a RTP percorria as nossas colónias filmando os soldados, que, em fila contínua, passavam pelas câmaras e pelo microfone e diziam: “Feliz Natal para toda a minha família e amigos e próspero Ano Novo”. Centenas e centenas de soldados repetiam sempre a mesma frase como se fossem as únicas palavras que o dicionário lhes permitia utilizar. Na metrópole, as famílias ficavam aliviadas por os terem visto. Mas, no dia a seguir, poderiam ser surpreendidas por um aerograma, protegido num envelope retangular com listinhas às cores, mas vestido de negro por dentro, já que dava conta de soldados mortos, feridos, desaparecidos ou amputados na sequência do rebentamento de uma mina.
A intensificação dos conflitos era proporcional ao descontentamento das pessoas. A guerra, de início compreendida por uma parte significativa da população, tornava-se um calcanhar de Aquiles para Salazar, tal como o seria posteriormente para Marcelo Caetano. O regime atingia agora já não apenas os intelectuais, pela falta de liberdade, mas os filhos do povo a quem parecia querer tirar a vida. Assim, assisti, entre 1965 e 1974, a uma debandada da nossa juventude. Recordo-me de que vivia num prédio em que o meu padrinho era taxista. Todas as semanas fazia viagens a França e à Alemanha, deixando aí pais de família e muitos jovens que partiam e outros que desertavam. Perguntavam PORQUÊ? PARA QUÊ? As respostas dadas não os preenchiam de sentido e, embrulhados em silêncio, eles e quem os passava, arriscavam a vida para ter mais vida, numa Europa transformada num gigantesco estaleiro após a devastação da II Guerra Mundial. Mesmo longe da pátria, até aqui tão amada, sempre era preferível construir que destruir.
Em abril de 1969, os meus pais deram-me a grande notícia, para mim há tanto tempo esperada: a minha mãe estava grávida! Gritei de alegria, mas logo o medo a sufocou. E se viesse a nascer um rapaz? Iria perdê-lo nessa maldita guerra que roubava os irmãos! Não tinha qualquer dúvida! Só havia uma forma de dissipar a angústia: era rezar e pedir muito a Deus que fosse uma menina. Assim, desde aquele dia, como os meses de gestação são 9 e não havia ecografias para apressar a curiosidade, rezava 9 pai-nossos, 9 ave-marias e 9 glórias! No dia 30 de janeiro de 1970 ganhei uma irmã para a vida!!
Os nossos pais continuaram a trabalhar bastante e eu cresci um bocadinho mais depressa, pois tinha a responsabilidade de tomar conta da menina, quando regressava da escola. Naquele ano era a segunda vez que estava a fazer a 4.ª classe, não porque não estivesse preparada para continuar os estudos no final do ano letivo transato, mas porque o Estado não me havia permitido a aprovação. Tinha entrado com 5 anos para a escola e cheguei ao final da 4.ª classe com 9 anos. Só fazia 10 em janeiro. A minha professora, a Senhora D. Encarnação, diligentemente, escreveu para o Ministério da Educação, afirmando que, apesar de não completar os 10 anos até 31 de dezembro, tal como a lei estipulava, eu estava preparada para ingressar no primeiro ano do ciclo. Mas a resposta foi negativa e todos tivemos de aceitar pacificamente a decisão, apesar dos contratempos que se adivinhavam. Esta minha professora dava aulas às quatro classes em simultâneo, numa sala da sua própria casa. Em 1969, porém, após o término do ano escolar, resolveu deixar de trabalhar. Fui obrigada a mudar de escola e de professora. Lembro-me de que, um dia, eu e outro colega fomos chamados ao quadro que tinha pendurado um mapa das nossas províncias ultramarinas. Tínhamos de localizar as estações de caminho de ferro de Angola. A professora ouviu as nossas respostas. No final, sem qualquer explicação, pediu-me a mão direita e deu-me 12 reguadas. Naquele tempo, a escola não era fácil, as professoras eram muito competentes, mas exigentes e rigorosas. O modelo de escola preconizado pelo Estado Novo pode resumir-se numa frase que não é minha, mas do meu pai, referindo-se à sua própria instrução primária: “As professoras não nos batiam por nos portarmos mal, nós portávamo-nos bem, batiam-nos porque não éramos inteligentes.”
Em 1973 tinha eu 13 anos, frequentava o 3.º ano do liceu, agora o 7.º ano, quando a minha colega de carteira desapareceu. Era a Alice, uma menina loira, muito branquinha e tímida. Quando começou a faltar, pensávamos que estava doente. Os dias foram passando e ela não voltava. Preocupados, perguntámos à nossa diretora de turma o que é que se passava. Foi então que nos explicou que a Alice tinha ido para a Bulgária. Ficámos espantados e incrédulos! Para a Bulgária?? Se fosse para a França, Inglaterra, Alemanha, Suíça, nós teríamos compreendido, mas a Bulgária?? A que propósito?? Lembro-me de que nem sabíamos onde ficava esse país no mapa. Só um ano depois pudemos perceber todo o mistério… a Alice, de quem nunca mais ouvi falar, tinha partido para a Bulgária, porque o pai era comunista e estava a ser perseguido pela PIDE.
Nesta torre de memória que intitulo ANTES de ABRIL, de 1960 a 1974, encontro ainda mais um baú que não resisto a remexer. Já falei da nossa jovem RTP. Havia dois programas imperdíveis na minha casa: a Conversa em Família com o Presidente do Conselho de Ministros, o Professor Marcelo Caetano, e a noite de teatro às quartas-feiras. As Conversas em Família funcionavam como um parlamento popular, mas apenas unilateral. O Chefe do Governo com palavras simples prestava contas ao país. Ele era simultaneamente o ator e o comentador. A sua seriedade fazia acreditar aos mais ingénuos, aqueles que não faziam perguntas, que tudo o que se passava não poderia ser de outra forma, continuando assim a sonhar com uma Primavera que não chegou a rebentar.
Quanto aos teatros, estes faziam parte do programa obrigatório. Ainda hoje me pergunto como era possível estar uma noite inteira a ver uma peça com três atos a decorrer quase sempre num cenário austero, uma sala com uma mesa e cadeiras, poucos atores, a maioria homens, sem coreografias, sem música, sem agitação. Como é diferente nos nossos dias! Hoje, estes teatros levariam uma estação televisiva à falência, marcados como estamos pela velocidade, pela rotatividade, pela novidade, pela oscilação de vozes, sons e cores. Naquela época, o que prendia era a mensagem, a narrativa, o enredo, o drama e depois a conclusão a extrair sem linhas cinzentas, sem “ses” e com definições claras de bem e de mal, de verdade e de mentira que forjavam o nosso caráter. A este propósito, os nossos livros de escola primária apontavam para o mesmo objetivo. Na verdade, ainda hoje sei de cor as lições morais, às vezes traduzidas em provérbios, que os textos de Português nos transmitiam cumprindo assim algumas máximas do Estado Novo: o sentido do dever, o trabalho, a obediência e o respeito.
Bem, agora que esta torre de memória já perdeu todas as defesas vou deixá-la aberta e parto para a segunda, mais iluminada embora com uma intensidade intermitente. Esta guarda
“O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo” (Sophia)
Levantei-me, como sempre, às sete e um quarto. Na altura, vivíamos a 8 km da Covilhã, na vila do Teixoso. Às 8h entrei no carro com o meu pai, que me levaria ao liceu. Como habitualmente, ele ligou o rádio, mas a Emissora Nacional não transmitiu o noticiário. Mudou para a Rádio Renascença e depois para o Rádio Clube Português, nada! Todas as emissoras estavam a passar músicas esquisitas que nós nunca tínhamos ouvido e cujas letras nem conseguíamos acompanhar. Sei hoje que eram as Baladas de Intervenção ou Canções de Intervenção até àquele dia proibidas por transmitirem de forma escondida o desencanto do povo português. Mas eu e o meu pai olhávamos um para o outro sem que pudéssemos perceber o que se passava.
Quando cheguei ao liceu foi-nos dito que não tínhamos aulas, pois tinha havido um golpe de Estado! – Um golpe de Estado? Mas o que é isso? – perguntávamos uns aos outros. E logo uma colega se apressou a mandar-nos calar.
– Calem-se! Pode estar aí a PIDE escondida.
De novo, um eco de incredulidade em uníssono:
– A PIDE? – Mas o que é a PIDE?
Não obtivemos resposta. Pouco depois veio o diretor da escola dizer que podíamos ir para casa. Cada vez mais confusos e perplexos, procurávamos no pequeno ecrã televisivo alguma explicação. Via-se em Lisboa muita gente na rua, muitos soldados e slogans para mim indecifráveis: “Morte ao fascismo!”. Não sabia o que aquilo era. Tantas palavras que pareciam ter saído da prisão, que eu não descodificava, mas que me faziam antever que algo de muito importante, surpreendente, novo, mas também assustador, estava a acontecer. Sim, tive medo, tivemos medo quando vimos o Presidente do Conselho numa chaimite a caminho do aeroporto rompendo por meio de uma multidão que não continha a euforia nem a raiva, qual dique que rebenta por excesso de água e que ninguém já consegue segurar. O mesmo não aconteceu com o Presidente da República, o Almirante Américo Tomás. Como este não tinha um papel ativo na governação e era conhecido de forma depreciativa como “Corta-fitas”, foi mais aceitável a sua saída do país. Só na madrugada do dia 26 de abril, outra madrugada, o MFA, pela boca do General António de Spínola, explicou ao país o que se estava a passar. Falava-se de DEMOCRACIA, DESCOLONIZAÇÃO. Já não consegui ouvir a terceira palavra que parecia também começar por um D. Para mim, esta era a revolução das palavras soltas como balões que se lançam num dia de vento e não sabemos onde vão parar. Nos dias que se seguiram embriagávamo-nos de informação, a tal ponto que deixou de haver horas obrigatórias de ir para a cama. Queríamos, precisávamos de aprender, descobrir o que se passava. Desconhecíamos que transformar um ser apolítico num cidadão levava o seu tempo. Como se pudéssemos engolir sem mastigar, ser doutor sem estudar ou adulto sem crescer.
Entretanto, as aulas recomeçaram. Quando voltei, não reconheci a minha escola. A Revolução dos Cravos só tinha dois dias, mas as mudanças eram já visíveis. Deixara de haver pátio para rapazes e pátio para raparigas, agora os intervalos eram mistos. A bata azul com lacinho azul às bolinhas brancas para as meninas também desaparecera. E já se podia entrar nas casas de banho. Antes de Abril era o único local onde se podia fumar e, por isso, estavam sempre cheias de fumo. Agora já não era proibido, havia liberdade para fumar onde se quisesse. Também nas salas de aula, muitos já não se levantavam quando o professor entrava, porque, diziam:
“Agora somos todos iguais”. As palavras liberdade e igualdade eu conhecia-as bem, mas naquela hora o seu sentido semântico alargava-se para contextos até aí a elas interditos.
Começámos a conhecer os contornos do rosto da ditadura e a sua mão de ferro sempre escondida e abafada ainda nessa semana, no dia 28 de abril, com a chegada de Mário Soares à estação de Santa Apolónia, após o seu exílio em França, e no dia 30, com a chegada de Álvaro Cunhal ao aeroporto da Portela, regressado do seu exílio na União Soviética. A cobertura televisiva era absolutamente emocionante e fazia-nos admirar estas personalidades fortes que se digladiaram ao longo de décadas com vigor nos argumentos e até humor. Ficou para sempre aquele frente a frente de 6 de novembro de 1975 em que Álvaro Cunhal desmentia consecutivamente as acusações de Mário Soares com um “Olhe que não, olhe que não!”
No dia 1.º de Maio, Dia do Trabalhador, deu-se a primeira grande manifestação! Nunca na nossa vida tínhamos visto tanta gente junta e muito menos para se manifestar pelo que quer que fosse. Recordo desse dia uma frase da minha mãe quando seguíamos a manifestação pela TV: “Se o teu avô fosse vivo, estaria ali! Hoje seria um grande dia para ele!”
Nos meus 14 anos, a pouco e pouco, começava a descobrir a trama, as tramas de que se tecia uma ditadura, palavra de que, na altura, só guardara as últimas quatro letras.
O ano que decorreu de abril de 74 a abril de 75 foi um desvendar e desvelar contínuo de notícias, acontecimentos, discursos, factos, quase um reaprender a andar, a pensar, articular, encadear, argumentar, estudar. Foi o ano do aparecimento de imensos partidos políticos cada um com as suas cores e símbolos. Encaixar uns na esquerda, outros na direita ou no centro, perceber mais estas palavras, o seu significante e significado foi o desafio lançado a todos os portugueses. Mas claro, com especial insistência aos cidadãos maiores de 18 anos que iriam votar pela primeira vez no aniversário da Revolução. Seriam as primeiras eleições totalmente livres não só pelo elevado número de forças políticas que a elas concorriam, mas também porque muitos homens e mulheres poderiam votar pela primeira vez nas suas vidas, mesmo os que não soubessem ler nem escrever. Foi o caso das minhas avós que, após uma formação política compactada, acabaram por eleger o partido em que iriam votar. Mas, como eram analfabetas, tiveram de educar a visão para decorar o símbolo do partido e não se enganarem a colocar a cruz no boletim de voto. Desde o início, os partidos mais populares eram o da foice e do martelo, o do punho, o das setas para cima e das setas para o meio. Nesta escola metafórica se passaram os dias até ao Dia, também ele único, inteiro e memorável: 25 de Abril de 1975! A minha alma guardou a fotografia! Às 7h30, a fila das pessoas para votar ultrapassava já o pátio da escola primária do Teixoso. E foi assim o dia todo, não só pelo elevado número de pessoas que queriam experimentar, provar, vestir a LIBERDADE, mas também porque alguém tinha feito nascer o boato de que se as pessoas mais velhas não votassem ficariam sem a reforma. A maioria não acreditou, mas, mesmo assim, valia mais prevenir do que remediar e, por isso, nunca na história da nossa democracia houve eleições tão participadas como aquelas. Pairava no ar uma alegria e esperança a que eu não estava habituada.
Também aqui, grande parte da população viajava
“Por mares nunca de antes navegados,
Passaram(ndo) [ainda] além da Taprobana”…(Camões)
do medo, da ignorância, da falta de liberdade e igualdade nos vários níveis da vida social e política. Em 1976, estava eu no 5.º ano do liceu, atual 9.º ano, quando a minha turma começou a receber colegas africanas vindas de Angola que viviam com as suas famílias no antigo sanatório da Covilhã (com o nome Abrigo dos Hermínios). Eram os retornados. Outra palavra que a Revolução dera à luz. Entretanto, eu habituara-me a descascar os vocábulos para mais facilmente encontrar o seu significado. Mas às vezes ficava baralhada. Retornar é voltar para o sítio onde estávamos, mas aquele edifício que tinha sido sanatório não estava ocupado por portugueses da metrópole, mas sim por portugueses das províncias ultramarinas que agora fugiam da guerra e do medo antes da independência daqueles territórios. Eram muitas as famílias que ali se encontravam e que viviam sem condições. Assim se mantiveram vários anos, umas terão partido para os seus novos países, outras terão ficado e sido integradas na sociedade portuguesa, como todos os portugueses aqui nascidos e que haviam retornado. Hoje, esta palavra, devido ao terceiro D, que posteriormente consegui apanhar e compreender – DESENVOLVIMENTO –, apenas ilustra nos manuais uma situação histórica completamente ultrapassada e isolada. Não confundindo, como é óbvio, com a deslocação maciça de pessoas, nos nossos dias, devido a perseguições políticas, religiosas ou problemas económicos.
Este ano letivo foi também marcado por algumas passagens administrativas devido à falta de professores e à confusão instalada. Programas, manuais e exames eram postos em causa. Recordo-me de ter visto uma pauta de Filosofia em que todos os alunos obtiveram 20 valores como nota final.
No que correspondia ao atual ensino secundário, surgiu a disciplina Introdução à Política que eu frequentei. A formação política dos cidadãos estava na ordem do dia. A democracia tinha nascido, mas era ainda um bebé e como acontece com os pais e as mães quando nasce o primeiro filho, também o povo português teve de aprender a ser democrata. E tal como nunca deixaremos de aprender a ser pais e mães, também nunca deixaremos de ser aprendizes da democracia. Mesmo quando ela já tem 50 anos!
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