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Censura sobre o livro teve “um impacto gigante” em Portugal

Álvaro Seiça, comissário da exposição que está patente na Biblioteca Nacional, realça importância de preservar a memória.

A censura teve “um impacto gigante, incomensurável” sobre a produção literária, cultural e intelectual em Portugal, constata Álvaro Seiça, um dos comissários da exposição “Obras proibidas e censuradas no Estado Novo”, patente na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa.

Na exposição – comissariada também por Manuela Rêgo e Luís Sá –, o público tem acesso, pela primeira vez, aos originais que foram alvo da censura durante a ditadura.

São “livros marcados, exemplares únicos, que nunca ninguém viu em conjunto”, destaca o investigador, recordando que muitas dessas “obras proibidas” só viriam a ser republicadas, reimpressas, reeditadas e traduzidas muito mais tarde em Portugal, provocando um “atraso cultural em relação à circulação de ideias”.

Apesar de, durante o Estado Novo, não haver censura prévia aos livros (ao contrário dos jornais, por exemplo), os mandados de busca às livrarias eram frequentes e a apreensão sistemática. De 1934 a 1974, a censura oficial produz mais de dez mil relatórios de leitura a livros de autores portugueses, lusófonos e estrangeiros, em edição original ou tradução, que entravam e circulavam em território nacional.

Para além dos exemplares originais censurados pelos Serviços de Censura, a Biblioteca Nacional mostra também alguns dos livros que classificou interna e secretamente com a cota O.P. (“Obra Proibida”), que não seriam permitidos ir à Sala de Leitura, escritos por Aquilino Ribeiro, José Cardoso Pires, José Vilhena, Natália Correia, John Reed ou Tomás da Fonseca.

Rasurados, carimbados e anotados, esses livros – expostos em vitrines – são acompanhados pelos relatórios de leitura escritos pelos próprios censores, com apreciações “muitas vezes rápidas e deformadas”, outras vezes “mais bem informadas”, distingue Álvaro Seiça.

De Esteiros (de Soeiro Pereira Gomes), escreve-se que “especula” sobre as miseráveis condições de vida da população portuguesa.

De Sete odes do canto comum (de Orlando da Costa) – que não chega a sair da tipografia, sendo reeditado apenas em 1979 –, diz-se que é “pacifista e comunista”.

 “O Estado Novo também teve toda uma campanha de silenciamento do trabalho das mulheres”, assinala o comissário. Várias autoras portuguesas e estrangeiras foram proibidas. Comunicação (de Natália Correia, uma das autoras mais perseguidas pela ditadura) é acusado de “libertinagem” e Vinte anos de manicómio (de Carmen de Figueiredo) de conter trechos de “lubricidade”, que “custa a crer terem sido escritos por uma mulher”.

A exposição “Obras proibidas e censuradas no Estado Novo”, de entrada livre, mostra sobretudo obras que foram proibidas, mas também alguns “casos curiosos”, de livros que primeiro foram interditados e depois autorizados. É esse o caso, por exemplo, de São Jorge dos Ilhéus, de Jorge Amado, em que os censores emendaram a mão e levantaram a interdição inicial.

A seleção exposta inclui também edições estrangeiras, sobre a luta de classes, os sindicatos e os trabalhadores, a Espanha franquista, a União Soviética (muitas, dada a “sovietofobia” do regime), religião e Igreja, Maçonaria, sexualidade.

Entre os livros de autores estrangeiros proibidos está 10 dias que abalaram o mundo, de John Reed, escolhido para primeiro número da coleção Biblioteca da Censura.

Os livros expostos na Biblioteca Nacional – até 3 de setembro – estão entre os cerca de mil salvos da destruição logo a seguir ao 25 de Abril de 1974.

Este “património cultural muito importante” está preservado graças ao historiador Oliveira Marques, que mais tarde viria a ser diretor da Biblioteca Nacional de Portugal. “Nas primeiras horas a seguir à revolução do 25 de Abril, a população invade a última sede dos Serviços de Censura, na Rua da Misericórdia, em Lisboa. Eufórica, atira o arquivo, a papelada, as provas de jornais, os próprios livros pelas janelas do edifício”, recorda Álvaro Seiça. Quando o historiador Oliveira Marques toma conhecimento da situação, “pede a um colaborador para ir resgatar o maior número possível de livros” dessa “biblioteca secreta” dos Serviços da Censura.

O milhar de exemplares salvos do furto e da destruição dá entrada, em 1975, na Biblioteca Nacional, que, em 1980, ainda tinha, no depósito da Divisão de Reservados, a secção “Obras Proibidas”. No entanto, os livros resgatados da sede da Censura só em 2009 seriam catalogados.

No que respeita à literatura, o “impacto tenebroso” da censura – que afeta não só a vida dos autores e de todos os profissionais do livro, mas também das suas famílias e de toda a sociedade – é, ainda hoje, “difícil de medir”, diz Álvaro Seiça, doutorado em cultura digital.

O medo censório e repressivo leva os próprios autores e editores a praticarem também a autocensura, porque o impacto na produção intelectual não é só visível nas obras, mas também em situações concretas do quotidiano. Muitos são perseguidos, torturados, sujeitos ao degredo (caso do angolano Luandino Vieira) ou mesmo assassinados (caso do escultor José Dias Coelho).

A exposição “Obras proibidas e censuradas no Estado Novo” resulta do “encontro feliz” entre um projeto de investigação e o trabalho que a Biblioteca Nacional está a desenvolver desde 2017.

A seleção das obras para a mostra “não foi nada fácil”, baseando-se em “três vetores que perpassam no discurso censório, quase como obsessões, que são a imoralidade, por um lado, a pornografia, por outro, e o comunismo”, refere Álvaro Seiça.

Apesar de estarem expostos apenas dez por cento dos livros resgatados, o catálogo (que está no prelo) fará “o levantamento completo de todos os livros, com textos introdutórios”.

A exposição assume uma abordagem pedagógica, de “dar a conhecer estes livros a públicos mais jovens”, mas, sublinha o comissário, mesmo quem viveu durante a ditadura muitas vezes “não tem real noção da dimensão” da censura.

“Um dos objetivos da exposição é dar a conhecer estes livros, que são um testemunho vivo do trabalho dos censores e desse impacto real que tiveram na produção literária, cultural e intelectual no século XX português. Estamos aqui a falar de 40 anos de censura ao livro, oficial, mas, com a ditadura militar, é quase meio século de produção intelectual em Portugal garroteada, amordaçada”, assinala.

Notando que a censura ao livro tem sido “pouco tratada”, Álvaro Seiça lança um apelo geral à população: que quem tenha, ou conheça quem tenha, livros com “um selo na parte superior da lombada, geralmente com um número de registo, que os próprios censores atribuíam, e um carimbo dizendo ‘autorizado’, ou ‘proibido’, ou ‘visado pela censura’”, os faça chegar à Biblioteca Nacional, para se documentar em base de dados o paradeiro desses exemplares. “Só assim poderemos estudar e dar a conhecer em detalhe a dimensão total daquilo que foi a censura ao livro em Portugal, no século XX”, justifica.

“Há aqui um trabalho de memória que é preciso ser feito, de evocar realmente o que se passou, hoje mais do que nunca, em que os movimentos populistas tentam neutralizar esta História, muitas das vezes até com aproximações saudosistas ao que foi o salazarismo. É muito importante dar a conhecer o que realmente se passou durante a ditadura em Portugal no século XX, que impacto é que teve, na vida das pessoas, na sociedade em geral, mas também nas mentalidades”, defende.

Simultaneamente, é preciso fazer “todo um trabalho de investigação” para apurar se existem “versões censuradas” ainda em circulação, por meio de reedições que tenham mantido “o expurgo dos censores”, sem a consciência de autores, editores e público, como acontece em Espanha e na América Latina, por exemplo – o que “é muito grave”, realça.

Fotografia: Biblioteca-Arquivo da Direcção dos Serviços de Censura | Fotografia: Álvaro Seiça

#50anos25abril