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Oitenta mulheres às portas de abril

Nascida em 1958, natural de Peniche, Portugal.

Operária.


Oitenta mulheres às portas de abril: Relato de Catarina Guerra, operária numa fábrica de congelamento de peixe

Nasci em 1958, em Peniche. Ao todo, somos seis irmãos, quatro raparigas e dois rapazes. O meu pai trabalhava na ribeira a carregar e descarregar cestos de peixe porque antigamente levavam-se os cestos às costas, com uma vara. A minha mãe nunca trabalhou porque tinha de ir ajudar o meu pai levando a cestinha de verga para dar o almoço ao meu pai, além de tomar conta dos filhos, e da casa. A minha casa era pequenina e o chão era de areia. Fomos muito felizes. Só a minha irmã mais velha foi criada por uma tia porque a minha mãe não tinha condições para nos criar a todos. Em pequena fui à escola e adorava a professora. Quando a minha mãe não tinha comer, que era a maior parte das vezes, ela ia pedir às freiras e bebíamos o leitinho em pó e aquelas latas de queijo que as freiras davam à minha mãe. Aquilo era muito bom. E tínhamos de comer o óleo de fígado de bacalhau, que era horrível. Quando não tomávamos a colherinha do óleo de fígado de bacalhau, as freiras não nos davam nada e a minha mãe ralhava muito connosco porque assim não nos davam a comida.

Comecei a trabalhar muito cedo. Na altura, os pais não tinham minimamente a possibilidade de dar uma refeição e o que se usava era porem-nos a servir. Tinha 10 anos. Fui servir para ter comida. Nada mais. Depois, como não me davam dinheiro, só comida, soube que começaram a pôr pessoal na antiga fábrica, a Marquimar , e comecei a trabalhar já em cima dos meus 14 anos. O meu primeiro ordenado foram 7,50 escudos. Aquilo era um grande dinheiro para a minha mãe pagar as coisinhas. Então, ela disse: “Vai, filha.” Na altura, tínhamos de nos sentar à espera que o peixe viesse. Ficávamos sentadas à porta da fábrica. Entrávamos às oito. Quando chegavam os carros carregados de peixe, nas caixas de madeira, o chefe chamava as mulheres que ficavam à porta. Umas quantas entravam, e as outras ficavam à porta à espera de terem trabalho para poderem ganhar alguma coisa. Era o pessoal mais jovem que descarregava os camiões. Eu as raparigas descarregávamos 4 camiões de peixe por dia. Íamos tirar o peixe da moura com um avental de oleado. Aquela era a maior fábrica conserveira que andava aí, tudo para exportação.

Na fábrica só trabalhavam mulheres. Quando comecei a trabalhar, éramos cerca de oitenta mulheres. A partir do 25 de abril começámos a ter melhores ordenados e a haver mais respeito pelas mulheres. Até aí, eu era uma escrava. Era uma jovem muito ativa mas, no princípio, tinha muito medo de não conseguir segurar as pilhas de lata… O primeiro ordenado que ganhei foi para comprar uns tamancos… adorava o som dos tamancos! Tchac,tchac,thac, tchac, e a mestra chamava-me sempre. Não havia maneira de poder ficar um minuto descansada. A lata era apontada de hora a hora: tudo quanto fosse de 20 para cima já éramos umas grandes mulheres. Eram pilhas sem nunca parar. Apontavam o nome de cada um e, se eu fizesse, 50, na outra hora a mestra dizia que queria mais duas ou três, e tínhamos de levantar a produção, sempre assim! No meio, ainda me mandava para a máquina das grelhas, apesar do cansaço. Foi sempre trabalho de peso, de carrego. As grelhas tinham de ser lavadas antes de voltarem a ter peixe para pôr nas latas. Eu era pequenina de tamanho e tinha de fazer uma pilha de grelhas aí com 20, para poupar viagens e espaço.

Fazíamos oito horas por dia, obrigatoriamente. Nem mais, nem menos. Um dia, atrasei-me um minuto, e descontaram-me meia-hora naquele dia. Era assim o castigo. O ambiente entre nós era muito bom. Brincávamos muito, na altura do Carnaval. Até me puseram, por brincadeira, um rato no bolso da bata, porque sabiam que eu tinha pavor!! Aquilo era uma união, éramos uma família, todas amigas! Não havia discussões, nada. A mestra dizia sempre que quem se portasse mal, ou não ajudasse as colegas, ia para a rua! E iam: era o castigo que ela dava se houvesse algum mau trato, das mais velhas para as mais novas, mesmo verbalmente! Ela punia com meia-hora de castigo.

Quando se deu o 25 de abril, estávamos presas dentro da fábrica, em Peniche, e o supervisor disse assim: “Ai, filhas!! Aiiii!! Escondam-se que está aí a guerra!!” E nós: “Mas nós não podemos ter aqui a guerra que a gente não fez mal a ninguém!…” Eram umas oitenta mulheres. Ele mandou fechar os portões e, como o portão era de zinco, espreitámos pelos buraquinhos…Perguntámos onde é que estava a guerra e ele disse-nos que iam a passar os canhões. Fomos espreitar e vimos os carros blindados a passar na estrada marginal. Aquilo era um pavor! Aquelas metralhadoras! Pensámos que íamos morrer ali todas e escondemo-nos no armazém, nas paletes, até que aquilo passou. O senhor que nos supervisionava ouviu os comunicados pela rádio e então disse: “Pronto, filhas, já podem começar a trabalhar! Vão para os vossos lugares.” Depois, na fortaleza, onde foram tirar os presos todos, onde estava o Álvaro Cunhal, tudo se foi ali juntar. De tarde, o supervisor disse-nos para irmos embora e ficarmos fechadinhas em casa. Ora, o povo, curioso, foi tudo lá para baixo. Foi então quando saíram o Álvaro Cunhal e os outros todos. E gritavam, lembro-me tão bem, “O povo, unido, jamais será vencido!!” Ai, eu adorei!!

Foi daí que eu comecei a pensar: agora temos liberdade! A partir do 25 de abril, para além do ordenado, na fábrica tiveram de manter mais respeito pela classe operária porque, antes do 25 de abril, a classe operária era muito maltratada, inclusive as mulheres. E depois, não tínhamos maneira de nos queixamos a ninguém. A partir daí, foram criados os sindicatos. Dantes não tínhamos feriados, não tínhamos subsídio de alimentação. Após o 25 de abril, deixámos de trabalhar ao sábado obrigatoriamente porque disseram que tínhamos direito ao nosso descanso. Nessa altura, as minhas colegas começaram a desafiar-me: “Oh, Catarina, tu és tão inteligente!… Marca aí uma reunião para sermos sócias do sindicato e defendermos os nossos direitos!” E eu primeiro tive medo de ser despedida, mas depois fui pedir informação à Casa dos Pescadores, que também nos ajudava, e tranquilizaram-me.

Nessa altura, houve uma adesão muito grande. Inscrevemo-nos todas. Por todo o lado. Elas queriam defesa. Queriam ter alguém que dissesse assim: “Eu estou mal, o patrão fez-me isto e eu quero-me queixar e ter a minha razão.” Então quiseram que eu fosse delegada porque defendia as pessoas e era uma amiga. Fui delegada sindical desde o 25 de abril até sair da fábrica. Tinha 46 anos quando saí. E depois fui subindo de posto. Antes do 25 de abril não subi nada. Fizemos muitos serões de seguida a discutir os nossos direitos: subsídio de alimentação e direito a ter uma creche para os nossos filhos, entre outras coisas. Subi de posto até chegar a mestra. Mestra é o topo. Fui mestra das cravadeiras. As máquinas da fábrica também foram sendo modernizadas. Nas fábricas, antes do 25 de abril, nós é que levávamos as batas de casa e as toucas que usávamos eram as fraldas dos filhos, aquelas de pano. Aquilo era um frio tremendo, mas tínhamos as caldeiras e íamos lá por as mãos na água quente quando tocava o frio. Foi aí que eu ganhei frieiras, uma coisa louca. Sofri muito.

Antes do 25 de abril, o convívio era magnífico. Havia amizade às pessoas. Disso tenho saudades. Do resto, não. Se sabíamos que alguém passava fome, juntávamo-nos para lhe dar o pão e a chouriça. Mas havia muito trabalho, muita luta. Depois do 25 de abril, passei a ser delegada delas e tanto as minhas colegas como o meu patrão tinham-me muito respeito. Nessa altura, sabia as leis todas porque ia às reuniões e ia aos congressos. Eu gostava de aprender! E estava sempre a tomar atenção. A primeira reunião a que fui deu-se em Santarém. A sede principal dos trabalhadores era em Santarém. E então não é que fui a uma reunião onde estavam representadas todas as profissões? Fui para uma grande sala representar, sozinha, as conserveiras, onde havia um papel a identificar as profissões, com os lugares próprios. Eu dizia para mim… “Ai, meu deus, não conheço ninguém e estou aqui sozinha…” Toda a gente falou. Toda a gente fez a sua intervenção. Toda a gente falava de grandes profissões e de nós ninguém falava porque era uma profissão desprezada. Então pensei que também eu tinha de falar para defender as minhas colegas. Quando o responsável perguntou se mais alguém queria falar, levantei o dedo e lá fui. Inscrevi o meu nome. Chamaram-me, eu tremia… e o responsável disse: “A senhora fale de sua justiça!” Então, eu falei: “Para toda a gente que me está a ouvir, trabalho numa fábrica de conservas com mais 70 mulheres e nós não temos condições dignas nenhumas. Não temos fardamento, não temos subsídio, não temos nada, se venho para aqui defender as minhas colegas, tenho de dizer aquilo que eu sinto!” Fez-se um intervalo de cerca de meia-hora. No regresso, o responsável do congresso começou a falar e fez uma tal dedicatória às mulheres da conserva que eu fiquei doida de contente! A partir daí, comecei a ganhar poder como representante e toda a gente se quis inscrever no sindicato. Foi uma loucura. Foi assim, uma história bonita.

Abril de 2023

#50anos25abril