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A prisão era um vasto quadrilátero rodeado de um muro de quatro metros, iluminado durante a noite. Tinha 9 pavilhões, uma enfermaria, um pequeno pavilhão administrativo e já na fase final do regime uma igreja. Também o refeitório foi apenas construído em 1973. Nesse ano estava ainda em construção um pavilhão destinado exclusivamente às investigações da polícia política. Segundo a circular n.º 19 da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, de 9 de maio de 1973, os nove pavilhões de Machava eram «construções baixas, compridas e isoladas umas das outras por pátios de terra solta».

Em 1964, foi criada nesta prisão a Secção Prisional da PIDE que seria dirigida pelo inspetor Manuel do Santos Correia. Esta secção, destinada a presos políticos, era separada da secção dos presos comuns por um muro alto.

Em 1968, Machava comportava 2000 presos, mas chegou a encarcerar 4000 indivíduos, entre guerrilheiros, simpatizantes dos movimentos independentistas, intelectuais, padres católicos e protestantes, brancos e negros. Era a prisão de destino dos moçambicanos considerados mais perigosos.

Nesta prisão, uma cela para um prisioneiro chegava a alojar 12 pessoas. As salas comuns, com cerca de 30 m2, chegavam a albergar 60 prisioneiros. Estes dormiam em esteiras com os pés encostados à cabeça dos companheiros. Era na cela que passavam 23 horas por dia e comiam refeições extremamente pobres.

Durante a hora de recreio, era proibida a convivência com os detidos dos outros pavilhões. Os prisioneiros políticos estavam impedidos de fazer exercícios físicos, ler, participar em atos religiosos e até de cantar. As visitas eram autorizadas dois a três meses após a detenção, mas eram difíceis de conseguir e ocorriam só uma vez por semana, durante 15 minutos, num parlatório com péssimas condições acústicas e diante dois guardas da PIDE-DGS. A conversa tinha de ser gritada através de uma barreira de arame, e teria de decorrer, obrigatoriamente, em português.

O mais temido dos pavilhões era o n.º 5, onde estavam os presos destinados às sevícias. Mas em 1973 o pavilhão 5 já não tinha prisioneiros, servindo as celas como gabinetes para interrogatórios da PIDE.

Os presos queixavam-se da sobrelotação, da existência de dez sanitas para cada duzentos presos e das torturas durante os interrogatórios. Para além das torturas do sono e da estátua, do espancamento e da cela disciplinar, as sevícias incluíam a aplicação do “feijão macaco” – um pó que provocava uma forma extrema de urticária.

Em maio e junho 1972 a PIDE prendeu centenas de membros das igrejas protestantes do sul de Moçambique, acusados de apoiarem a FRELIMO. Interrogados primeiro na Vila Algarve (sede da PIDE-DGS), os prisioneiros seriam enviados para Machava. Dois deles morreram durante a tortura: o pastor Zedequias Manganhela, Presidente do Conselho Sinodal, e José Sidumo, da Igreja Presbiteriana, mortos a 10 e a 19 de dezembro de 1972, às mãos do inspetor da PIDE Francisco Lontrão.

A violência extrema infligida aos prisioneiros faz com que esta seja considerada a pior de todas as prisões políticas das colónias portuguesas.

Malangatana Ngwenya esteve preso na cadeia de Machava e deixou vários desenhos de testemunho da realidade vivida e sentida pelos prisioneiros, incluindo as condições miseráveis em que se encontravam encarcerados.

Segundo dados da Cruz Vermelha, morreram na Machava 260 presos políticos, fosse em resultado de tortura, fosse por doença ou fome.

Malangatana Ngwenya (1965), Malangatana Ngwenya (1965), "Pavilhão 9 da Cadeia da Machava da Pide".  Fonte: FMSMB, Documentos Malangatana 
Malangatana Ngwenya (1967), Malangatana Ngwenya (1967), "Pavilhão da Cadeia da Machava".  Fonte: FMSMB, Documentos Malangatana

 

Entre 1968 e 1974, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) fez inspeções regulares às prisões coloniais portuguesas.

A última visita dos delegados do Comité Internacional da Cruz Vermelha decorreu em duas fases: 29 e 30 de outubro de 1973 e 22, 23 e 26 de janeiro de 1974. Teve por objetivo a observação das condições dispensadas aos presos políticos.

Fonte: Rapport concernant la visite aux detenus politiques de la DGS a Machava, Lourenço Marques. Arquivo do Comité Internacional da Cuz Vermelha  Fonte: Rapport concernant la visite aux detenus politiques de la DGS a Machava, Lourenço Marques. Arquivo do Comité Internacional da Cuz Vermelha 

Segundo o relatório, que refere uma capacidade global da Cadeia da Machava de 1300 detidos, após uma amnistia declarada em dezembro de 1973, o número de presos terá baixado para 765.

Os delegados da Cruz Vermelha encontraram em Machava três categorias de prisioneiros políticos: os prisioneiros em processo de interrogatório; os prisioneiros que já tinham terminado o interrogatório; e prisioneiros administrativos. Na generalidade, eram negros de Moçambique, mas também havia brancos da metrópole e da Ilha da Madeira.

Neste ano de 1974, dos oito pavilhões que alojavam detidos, o pavilhão 4 era inteiramente reservado aos detidos em fase de interrogatório. Os pavilhões 1, 2 e 6 estavam destinados aos detidos administrativos. Já nos pavilhões 3, 7, 8 e 9 encontravam-se todo o tipo de prisioneiros.

Os interrogatórios não deviam exceder os seis meses, o que na generalidade, segundo os delegados, era cumprido.

Segundo uma lei de 1972, as prisões administrativas eram fixadas num máximo de três anos renováveis por igual período. Contudo os delegados identificaram um preso administrativo que se encontrava em Machava desde 1964. A PIDE terá justificado a situação com o argumento de que a referida lei não tinha efeitos retroativos.

A sobrelotação das celas foi bem vincada pelos delegados. À data da sua visita, as células individuais, que mediam 7,5 m2, chegavam a albergar seis detidos. Embora tivessem duas janelas, no caso do pavilhão 4, essas encontravam-se sempre fechadas. Se umas tinham camas, noutras os prisioneiros tinham de dormir no chão, sendo que poucos possuíam esteiras. Não havia qualquer mobiliário. Cada preso tinha apenas um prato, um copo e uma colher de alumínio que podia guardar.

Havia dois tipos de pavilhões. O pavilhão 4, por exemplo, possuía 39 células, e apenas três delas tinham um vaso sanitário vertical e uma torneira. Os restantes prisioneiros tinham um penico de plástico na cela e podiam utilizar uma zona sanitária comum, com 4 vasos sanitários verticais, 4 torneiras e lavatórios e 4 chuveiros. Outros pavilhões, como o 2, tinham células individuais e três células comuns.
Estas, com 36 a 39 m2 podiam conter até 50 detidos.

Até à inauguração da cozinha e do refeitório em dezembro de 1972, não existiam nem cozinha nem refeitório. As refeições eram feitas ao ar livre, num abrigo, que não oferecia proteção contra o sol, a chuva e as poeiras trazidas pelo vento. A comida era pobre, estando ausente a fruta e os legumes. Os prisioneiros comiam no chão, fora ou dentro das suas celas. Os europeus ou ditos “civilizados” recebiam a comida de fora, mas como não havia frigorífico, pelo que a fruta e a carne tinham de ser ingeridas rapidamente. Mesmo após a inauguração do refeitório, este não era utilizado senão quando das visitas do CICV.

As consultas médicas tinham lugar duas a três vezes por semana. O problema, segundo o testemunho do médico, era que por vezes os guardas não permitiam que os presos se deslocassem à enfermaria e, pior, o enfermeiro chefe não participava ao médico senão as situações que, segundo o seu arbítrio, desejava mostrar. Os delegados tiveram oportunidade de testemunhar várias situações que denunciavam a ineficiente assistência médica: o caso de um prisioneiro com um edema e um joelho deformado, que teve de esperar 13 meses para ser visto pelo médico; um grupo de prisioneiros com febre há cinco dias que não receberam qualquer cuidado; e um indivíduo com diarreia também há cinco dias, a quem não terá sido administrada medicação.

Os delegados dão também conta que, depois de uma visita anterior, que decorrera em 28 e 29 de novembro de 1972, se tinham suicidado, alegadamente, o pastor Zedequias Manganhela (dezembro de 1972), Carlos Banze (maio de 1973);  Mambassi Catupa (outubro de 1973); e um outro prisioneiro, não identificado, que terá morrido depois da visita do CICV de fins de uutubro de 1973. Os delegados não deixaram de demonstrar estranheza pelos quatro suicídios num período de 13 meses.

O relatório sublinha que durante o período de interrogatório os prisioneiros não podiam corresponder-se com ninguém nem receber visitas. Muitas vezes em células sobrelotadas, estes eram privados dos passeios, dependendo da boa vontade do guarda do pavilhão. E mesmo quando assim não era, a inexistência de sombras em Machava tornava penoso qualquer passeio ou mesmo a simples permanência no exterior.

Na primeira fase desta visita da Cruz Vermelha, foram observados numerosos detidos que apresentavam cicatrizes ou feridas, por vezes ensanguentadas. Estes ter-lhes-ão dito que eram o resultado de sevícias às mãos dos que os interrogavam no Pavilhão 5. Tais alegações foram transmitidas pela Cruz Vermelha ao Presidente do Conselho, que terá ordenado um inquérito. Quando os delegados regressaram a 22 e 23 de janeiro de 1974, só reencontraram 20 dos 45 queixosos. Alguns detidos ter-lhes-ão dito que após a visita anterior os maus-tratos não pararam, apenas se modificaram os métodos de modo a não deixarem vestígios. Só após a visita de um inspetor vindo de Lisboa, as sevícias cessaram definitivamente.

No fim da sua visita, os delegados solicitaram a libertação de presos por razões humanitárias. A sua enumeração revela bem o que foram as prisões portuguesas nas ex-colónias:

1. Nambomu Mcoro (ou Mcoio), com cerca de 65 anos, doente das pernas, está surdo.
2. Mbuesso Mpuiga, muito velho, conheceu os alemães em Tanganica antes de 1914.
3. Tambala Maomgala, entrou no exército em 1914.
4. Biehe Gomia, idoso, diabético, catarata no olho.
5. Dina Jawawa Namundi, idoso, elefantíase dos testículos, mal pode andar.

Os delegados terminam o seu relatório constatando uma melhoria entre outubro de 1973 e janeiro de 1974. Parecem atribuí-la a existência de uma nova direção. Estávamos a três meses do 25 de Abril.

“Machava, a pior prisão do Estado Novo», de José Pedro Castanheira”

Expresso, 18 de abril de 2013

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