Skip to main content

O Estado Português da Índia em 1961 e a Guiné em 1973 e 1974 dois casos exemplares.

Após o termo da II Guerra Mundial as grandes potências coloniais europeias foram obrigadas a reconhecer o direito à independência das suas colónias na Ásia e em África.
Portugal nunca reconheceu o direito à autodeterminação dos territórios coloniais sob sua administração, contrariando o Direito Internacional, nomeadamente a Carta das Nações Unidas.

Perante a evidência do aparecimento de Movimentos de Libertação nas suas colónias, os governos de Salazar e Marcello Caetano não encontraram outra solução senão a via armada.
Quando a situação se agravou, como na Índia em 1961, em que a derrota militar era inevitável, o Governo recorreu à solução mais fácil: culpar os militares pela derrota inevitável, descartando cobardemente a sua responsabilidade e tornando os militares os Bodes Expiatórios da incapacidade política do regime.

Em 1973, quando os sinais de esgotamento das nossas Forças Armadas era já evidente e a situação militar na Guiné se agrava, a solução que Marcello Caetano preconizava e expressou ao general Spínola era “[…] é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra do que por um acordo negociado com terroristas […]”.

O que era uma derrota militar com honra? era uma derrota com sangue?

De novo militares seriam os Bodes Expiatórios do regime.

A União Indiana tornou-se independente da Grã-Bretanha em 1947 e, desde 1950, não escondia a sua pretensão de integrar no seu território as colónias portuguesas de Goa, Damão e Diu.

A União Indiana tentou, desde cedo, encetar uma via de diálogo com Salazar, com o objetivo de viabilizar uma transição pacífica de integração de Goa, Damão e Diu no seu território. O diálogo nunca foi aceite pelo governo de Lisboa, nem o recurso à diplomacia produziu qualquer resultado.

Em 1961, esgotadas as vias de diálogo com Lisboa, a União Indiana opta pela invasão daqueles três pequenos territórios.

Salazar estava convicto de que, na circunstância de uma invasão, teria argumentos para isolar o Governo da União Indiana perante a comunidade internacional, pondo em causa a atitude pacifista do seu primeiro-ministro, Nehru.

Geografia

O Estado Português da Índia era, em 1961, um conjunto de três territórios, Goa, Damão e Diu, de muito reduzidas dimensões, geograficamente separados por consideráveis distâncias.
Era o que restava do antigo Império Português do Oriente

Recenseamento de 1960
População total

GOA
Superficíe > 3 702km2
Capital > Panjim
População > 587 120
Idiomas > Português, concanim e marati

DAMÃO
Superficíe > 72km2
Capital > Damão Grande
População > 22 442
Idiomas > Português, guzerate

DIU
Superficíe > 40km2
Capital > Diu
População > 14 269
Idiomas > Português, guzerate

Nas vésperas da Invasão

O preço que Salazar queria que a União Indiana suportasse em caso de agressão era tanto maior quanto maior fosse o derramamento de sangue dos militares portugueses, tanto maior quanto maior pudesse ser a sua capacidade de vitimização.
 
Salazar deixa isso bem claro na mensagem enviada ao Governador-Geral a 14 de Dezembro de 1961, quatro dias antes da invasão, quando, “recomenda” o “sacrifício total” dos militares portugueses, acrescentando ainda: “[…] Não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode
haver soldados e marinheiros vitoriosos ou
mortos. […] ”

Telegrama-rádio nº 816/A, expedido ao princípio da manhã de 14 de Dezembro de 1961, do palácio de São Bento em Lisboa, por António de Oliveira Salazar, Presidente do Conselho do Governo Português, para o palácio do Hidalcão em Pangim, dirigido ao general Manuel António Vassalo e Silva, comandante-chefe e 150º governador-geral do Estado da Índia Portuguesa.

A Invasão

O Exército Indiano pôs-se em marcha pelas 04:00 de dia 18 de Dezembro de 1961, entrando em território sob administração portuguesa, por Norte, Leste e Sul de Goa, pelas 07h00.

À mesma hora a Força Aérea da União Indiana bombardeia a pista de aviação do aeroporto de Dabolim em Goa, com doze bombardeiros Canberra. Uma segunda vaga de oito Canberras terminou o bombardeamento da pista, que ficou impraticável. Pelas 07h30, seis caças Hunter atacaram a estação rádio naval e a central dos correios, tendo-as destruído, interrompendo assim as comunicações com Lisboa, em simultâneo eram bombardeados pela aviação alvos em Pangim e Mormugão.

Sem encontrar oposição ao avanço dos seus blindados, as tropas portuguesas não tinham armas anticarro, e com o controlo absoluto do espaço aéreo, a Força Indiana avançava decididamente evidenciando cautelas para não provocar muitas baixas às Forças Portuguesas que perante o potencial do invasor iam recuando.

Ao terminar o dia, a coluna Norte tinha atingido a margem direita do Rio Mandovi, em frente de Pangim, cuja ocupação, bem como de todo território de Goa, seria levada a efeito no dia seguinte.

Já na madrugada de dia 19, pelas 06h00 da manhã, o Comandante do agrupamento dá ordem de rendição às suas tropas, que iniciam a destruição do armamento, munições, viaturas e outros equipamentos.

As forças portuguesas haviam sofrido cerca de 30 mortes em combate.

Pelas 12h45 de dia 19 de dezembro o General Comandante-Chefe toma a decisão da rendição, enviando ao Comandante das Forças da União Indiana a seguinte mensagem:

General Vassalo e Silva, após rendição. Revista Paris Match General Vassalo e Silva, após rendição. Revista Paris Match

A Rendição

Em Lisboa, a rápida rendição das forças portuguesas e o número relativamente baixo de mortes em combate, não permitiram que Salazar lançasse interna e externamente uma campanha de vitimização. Era necessário que os portugueses não se apercebessem dos factos tal qual eles ocorreram. A guerra em Angola tinha tido o seu início há menos de um ano e muitos portugueses, apesar da censura, da repressão e da propaganda governamental, poderiam responsabilizar o governo pela forma como a Índia caíra, sendo possível uma quebra de moral na retaguarda e sobretudo no seio das Forças Armadas.

Os órgãos de comunicação, dias após a rendição, foram fazendo eco de um imaginário prolongamento dos combates, utilizando mesmo imagens dramáticas como “o sangue escorre pelas ruas de Diu❞ proferidas aos microfones da Emissora Nacional. Chegou-se ao ponto de anunciar a morte de militares que se encontravam ilesos, levando as famílias ao luto e ao choro.

Em 29 de Dezembro, os jornais davam conta de uma nota do Ministério do Exército em que se anunciava, sujeito a confirmação, que as baixas de militares na Índia teriam atingido o número de 1018, das quais 37 seriam oficiais. Esclarecia ainda a nota que as baixas podiam significar desaparecidos, uma vez que chegavam notícias da existência ainda de pequenos núcleos de combate.

Os Bodes Expiatórios

Cerca de um ano volvido, a 22 de março de 1963, alguns militares tomam conhecimento pela comunicação social de que são punidos pelo seu comportamento durante a invasão. As penas foram a demissão das Forças Armadas, a reforma compulsiva e seis meses de inactividade.

Estas medidas atingem o Governador e Comandante-Chefe, general Vassalo e Silva, o Comandante militar e o Comandante Naval, além de outros oficiais e um sargento.

Não houve qualquer julgamento, pois este iria por a nu as responsabilidades políticas do poder em Lisboa, Se tivessem sido proporcionados meios de defesa aos arguidos, apesar da censura, os órgãos de comunicação social não poderiam deixar de noticiar o que se passava nas audiências, podendo criar alguma agitação no país e em especial no interior das Forças Armadas.

As sanções foram impostas com base em processos de averiguações.

Estava, portanto, completa a manobra de desresponsabilização do poder político e a criação de um bode expiatório: os militares que serviram no então Estado Português da Índia.

Só com o 25 de Abril de 1974 os militares punidos seriam reintegrados e a sua honra e carreira repostas.

Até ao 25 de Abril, os oficiais das Forças Armadas não esqueceriam este atitude cobarde do governo de Salazar.

Os campos de prisioneiros

Após a rendição, os militares portugueses foram aprisionados pelas forças indianas e encaminhados para vários campos de prisioneiros. A vida nos campos de prisioneiros apesar de dura e com privações, decorreu de um modo geral sem que tivessem sido infligidas as normas estabelecidas pela Convenção de Genebra, tendo, inclusivamente, sido distribuídas cópias da Convenção aos militares portugueses. A Cruz Vermelha visitou os campos e apoiou os prisioneiros.

As autoridades de Lisboa não demonstraram qualquer intenção de rapidamente repatriar os militares em cativeiro na Índia, o que provocará uma progressiva deterioração do seu moral, tanto mais que a União Indiana tinha feito saber, logo após a rendição, que os militares portugueses podiam ser de imediato repatriados, colocando apenas como condição que a sua saída do território não fosse efetuada nem por navios, nem por aviões portugueses.

Em Março de 1962, e face à persistência desta situação, as autoridades indianas anunciaram que os militares que quisessem e pudessem suportar as custas das viagens, poderiam de imediato ser libertados e regressar a Portugal.

O Regresso

Em Maio, os militares portugueses são embarcados em aviões franceses fretados por Lisboa, rumo a Carachi, onde três navios portugueses da Marinha Mercante – Vera Cruz, Pátria e Moçambique – aguardavam para os transportar para Lisboa.

A bordo, os militares portugueses são surpreendidos com um clima muito hostil e intimidatório. Em permanência, elementos de uma companhia de Polícia Militar circulavam armados no navio, como se estivessem a guardar prisioneiros e agentes da PIDE não disfarçavam a sua vigilância sobre os militares embarcados.
Em 21 de Maio de 1962, passados cinco meses da invasão, os navios chegam às imediações de Lisboa ao princípio da tarde, tendo fundeado fora da Barra. Só vieram a atracar pelas 02h00 da manhã do dia seguinte, tentando assim que o regresso se processasse dentro da maior discrição. As famílias, no cais, esperaram ansiosas, durante muitas horas, o momento de abraçar os seus entes queridos.

Logo após o desembarque, os militares do Exército foram colocados em camionetas, que os esperavam junto ao ponto de desembarque, sendo distribuídos por várias unidades ao longo do País, estando para isso já preparados vários comboios. Para as unidades foi enviada uma mensagem proibindo os militares regressados de falar sobre o que se havia passado na Índia.

Guiné 1973-1974
Agravamento da situação política-miltar

A Indepedência da Guiné

Nos anos de 1973 e início de 1974 a Guiné vai ser fértil em acontecimentos da maior importância, que ocasionaram significativos danos para os interesses e objetivos do Governo Português.

O assassinato de Amílcar Cabral em 20 de Janeiro de 1973, irá provocar uma radicalização militar nos comandantes do PAIGC, e também reforçará a decisão que Amílcar Cabral já havia tomado em 1972, de declarar, no decorrer de 1973, a independência da Guiné.

É assim que, em 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé, o PAIGC proclama unilateralmente a independência da República da Guiné-Bissau, sendo de imediato reconhecida por mais países do que os que então mantinham relações diplomáticas com Portugal.

Em 02 de Novembro de 1973, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconhece a independência da Guiné-Bissau e a ilegalidade da ocupação portuguesa – Resolução A/3061 (XXVII).

Esta situação internacional era passível de criar as condições para que, se legitimasse uma intervenção militar externa elevando o nível da guerra para um patamar convencional, para o qual as nossas forças estavam completamente impreparadas.

A Situação Militar

No mês de Março de 1973 faz o aparecimento no Teatro de Operações o míssil terra-ar Strela-2 que, logo nesse mês e em início de Abril consegue abater cinco aeronaves portuguesas (dois Fiat G91, dois DO-27 e um T-6).

Esta nova e eficiente arma e os seus efeitos, obrigam a Força Aérea Portuguesa a alterar significativamente a anterior forma de executar as suas missões. As Forças Armadas Portuguesas perdem então o controlo absoluto do espaço aéreo que até então detinham e que, sem dúvida, representava a sua maior vantagem operacional.

As restrições colocadas ao voo das aeronaves fizeram-se sentir de imediato em duas áreas críticas:

Nas evacuações de militares feridos. A Força Aérea passou a não fazer evacuações de feridos ou doentes de aquartelamentos mais sujeitos a ataques. A moral dos combatentes, que já não era a melhor, sofreu um forte abalo. Os militares passaram a não ter a certeza de que, em caso de ferimento em combate ou doença, seriam rapidamente evacuados para o Hospital Militar de Bissau, como anteriormente acontecia.

No apoio de fogos. Quando se verificavam flagelações a aquartelamentos portugueses, as aeronaves da Força Aérea atuavam com extrema rapidez sobre a guerrilha interrompendo as suas ações ofensivas. A partir do momento que as bases de fogos da guerrilha passaram a estar protegidos pelos mísseis Strela-2, já não era possível essa interrupção da ação ofensiva por parte das aeronaves portuguesas, o que permitia aos guerrilheiros do PAIGC, instalarem as suas bases de fogos, regular o tiro e bater com eficácia e precisão o interior dos aquartelamentos.

Recuperação do tenente Miguel Pessoa pelo grupo do alferes Marcelino da Mata, depois do Fiat G91 que pilotava ter sido abatido por um míssil Strela 2, no dia 25 de Março de 1973. O piloto conseguiu ejetar-se Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Recuperação do tenente Miguel Pessoa pelo grupo do alferes Marcelino da Mata, depois do Fiat G91 que pilotava ter sido abatido por um míssil Strela 2, no dia 25 de Março de 1973. O piloto conseguiu ejetar-se Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.
Destroços do Fiat G 91 da Força Aérea Portuguesa, abatido no dia 28 de Março de 1973, por um míssil Strela 2, na Guiné, tendo perdido a vida o seu piloto tenente-coronel Almeida Brito. Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Crédito fotográfico Roel Coutinho. Destroços do Fiat G 91 da Força Aérea Portuguesa, abatido no dia 28 de Março de 1973, por um míssil Strela 2, na Guiné, tendo perdido a vida o seu piloto tenente-coronel Almeida Brito. Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Crédito fotográfico Roel Coutinho.

O Cerco a Guidaje

Em 8 de Maio de 1973 tem início um violento ataque a Guidaje, aquartelamento português sobre a linha de fronteira Norte com o Senegal e é minada e emboscada a estrada para Binta, junto ao rio Cacheu, a sua principal via de reabastecimento.

Os ataques sobre o aquartelamento e sobre a estrada para Binta sucedem-se, causando inúmeras baixas. Em Guidaje os mortos em decomposição são enterrados no local. São deslocadas para o local várias unidades de tropas especiais. Durante esse mês vão em auxílio de Guidaje a totalidade do Batalhão de Comandos Africanos, elementos de dois Destacamentos de Fuzileiros Especiais, de mais uma Companhia de Comandos e uma Companhia de Paraquedistas, cerca de 1 000 homens em reforço.

Só com este enorme reforço de forças foi possível quebrar o cerco a Guidaje o que só efetivamente se verifica a 12 de Junho.

Evacuação de Guileje - 22 de maio

No Sul, em Guileje, o quartel estava sujeito a fortes bombardeamentos. A inexistência de evacuações, de apoio aéreo e de reforços, determinaram que o comandante operacional da zona, em 22 de Maio de 1973, desse ordem para evacuar o quartel, destruindo ou danificando viaturas e armamento que ficaram para trás.

Pela primeira vez na história da Guerra Colonial um aquartelamento era evacuado face à pressão militar da guerrilha.

Os militares e população seguiram para Gadamael, um aquartelamento na margem esquerda do rio Cacine, que não tinha condições para receber um tão grande número de homens. A partir de 31 de Maio o PAIGC ataca fortemente Gadamael e obriga um elevadíssimo número de militares e muita da população a procurar abrigo nas margens do rio. De 300 militares terão ficado em Gadamael cerca de 30 militares.

A Marinha evacua para Cacine os militares e elementos da população que se encontravam refugiados nas margens do rio, estimando-se o seu número total, militares e população, em cerca de 1 000 homens, mulheres e crianças.

A Manobra Retardadora

Devido à gravidade da situação militar, realizou-se em Bissau no dia 08 de Junho de 1973, uma Reunião de Comandos com a presença do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, general Costa Gomes, com o objetivo de analisar a situação militar no terreno, de que resultou a orientação – remodelar o dispositivo, trocar espaço por tempo.

A situação aconselhava a um retraimento do dispositivo militar português abdicando da posse de boa parte do território da Guiné e do controlo das suas populações para se concentrarem num Reduto Central.
A soberania portuguesa seria assim apenas formal e o Reduto Central seria militar e politicamente cada vez mais difícil de defender.

De novo os Bodes Expiatórios

Devido ao agravamento da situação militar e perante as insistências do general Spínola de se enveredar por uma via negociada para a Guiné, Marcello Caetano afirma ao general:

“Para defesa global do Ultramar é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo caminho a outras negociações”
Marcello Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro 1974

A partir deste momento ficou claro para os militares que, tal como na Índia, o governo de Lisboa, não tendo soluções políticas para a guerra da Guiné, iria deixar que as Forças Armadas fossem derrotadas, assacando-lhes depois a totalidade das culpas, tornando-as, uma vez mais nos “Bodes Expiatórios”.

Os militares do Movimento das Forças Armadas estavam completamente cientes de que a solução para a guerra que travavam era política e não militar. Tal como na Índia o poder político preparava-se para, na Guiné, e na iminência de uma derrota militar, culpabilizar os militares pelo desaire. Outra vez os Bodes Expiatórios.

Documento “O Movimento, as Forças Armadas e a Nação”, aprovado na reunião do MFA de Cascais a 5 de Março de 1974.

#50anos25abril